BARANEK WIELKANOCNY – por Francisco Fuchs

Krzysztof estava atordoado. Não entendia porque Jadwiga ainda lhe delegava aquelas tarefas aparentemente fáceis, como comprar no mercado um Baranek Wielkanocny. Poucas coisas ainda eram fáceis para Krzysztof, mas Jadwiga parecia não entender ou não aceitar que assim fosse. Seu homem podia ser simples e até podia, àquela altura da vida, estar um pouco confuso, mas já havia construído mais casas do que era capaz de contar, abrigando dos rigores do inverno velhos e moços, letrados e iletrados, católicos e ateus; e mesmo sem ter jamais conhecido essas gentes, rezava diariamente para que vivessem em harmonia, pois, na sua visão, apenas assim poderia considerar completo seu trabalho. Continuar a ler “BARANEK WIELKANOCNY – por Francisco Fuchs”

PEQUENOS CONTOS -II de Jaime Vaz Brasil

Guilherme Tell e Eu

Meu primo ganhou de natal um arco-e-flecha. Treinávamos pontaria em latas, galinhas e árvores. Fizemos torneios. Ele era mais velho que eu, treinava mais e vencia sempre. Aí me convenceu a colocar uma maçã na cabeça. Se eu pudesse, contava como é sentir aquele zunido da flecha vindo, aquele friagem que amolece a gente e o barulho dos ossos da cara se rebentando enquanto a flecha entra: é tudo muito rápido.

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Meu Primeiro Fórmula Um

A mãe pediu que eu cuidasse do mano, ela ia sair. Ele ainda bebê de carrinho e eu sempre quis ser piloto de fórmula um. Os móveis atrapalhavam muito o meu desempenho. Tanto foi que experimentei empurrar o meu carro escada abaixo. Até hoje juro que foi acidente. Continuar a ler “PEQUENOS CONTOS -II de Jaime Vaz Brasil”

LEÃO NO OUTONO – por Paulo Ferreira da Cunha

 

Desenho de Paulo Ferreira da Cunha

I

 Cependant, il ne saurait s’agir d’un récit
 à clés, car nul ne possède la clé des songes.

 P. Debassac, Le lion et la demoiselle, Avertissement.

Sou um leão da cova dos leões de Daniel, desenterrado e fixadao em pedra andaluza.

Os meus onze outros irmãos ladeiam-me, suportando nós todos esta salva de água puríssima, estendida à sede e ao cansaço. Aqui, nesta Alhambra que nos acolhe no presente, eles são leões de pedra sem alma.

Mas eu, e eu só, sou um avatar, uma reencarnação, um clone ao menos (como vai alguém saber mesmo quem é, depois de Blade Runner?), do rei dos leões na cova dos leões. Creio que foi para minha proteção que o escultor me fez exatamente igual aos outros onze. Aparentemente, não tenho nenhum traço distintivo, posso passar despercebido. Há, é certo, dois irmãos meus com um sinal na fronte. Um triângulo, como conviria. E eles seriam os representantes das duas tribos eleitas, a de Judá e a de Levi. Mas a minha estirpe é a de Salomão, portanto anterior aos cismas…

Aqui na Hispânia para onde me trasladaram, tenho vivido incógnito e muito melhor. Deixem outros deliciar-se com a descoberta desses dois irmãos do reino dividido.

Desenho de Paulo Ferreira da Cunha

II

Sou o leão da cova dos leões de Daniel, já vo-lo disse. Mas isso, também vo-lo confesso (mais que confesso quero proclamar, e deixar em registo), de modo nenhum me envaidece. A vaidade é apenas um adorno supérfluo e sempre ridículo dos que não têm valor real. Mas não falemos dessas futilidades.

Apresento-me sem cartão de visita. Os cartões de visita são materializações curiosas dessa mesma vaidade de que falávamos. Todavia, podem ser até elegantes: quer na escolha subtil dos dizeres, quer na apresentação gráfica (do mesmo modo que podem ser horríveis e a consubstanciação do novo-riquismo, da ostentação, etc.). Só a elegância atenua um pouco o grave pecado da vaidade.

Perdoai-me que divago.

É a idade (são muitos séculos ao serviço…). Não sem que diga algo a propósito desse lugar comum que, muito contra minha vontade consciente, saiu dos arquivos do que se diz para o discurso que eu mesmo disse… Deplorável quando se fala pela voz e pelas ideias dos outros. Pois bem. Não acho que os velhos sempre se repitam porque desmemoriados. Alguns, sem dúvida que sim, será por esse motivo. Mas outros (devo dizer que os melhores), repetem (esbracejando contra o Tempo) porque querem gravar, para si e para os demais, memorabilia, os feitos e os factos que não suportam ver perderem-se pelos ralos da memória – pessoal e coletiva.

Certamente um dono de obra velho (teria sido o vizir judeu Ibn Nagrela?) mandou um jovem e possante escultor dar-nos forma neste pátio, para que ficássemos imortais. Pigmaleão, o escultor. Sempre apaixonado pela sua obra. Sinto que fui esculpido pelo amor, não apenas com amor. O que viria depois já não o recordo. Ou não importa. Porque as estátuas permanecem, e os escultores desaparecem. Como dói a perenidade da estátua.

Desenho de Paulo Ferreira da Cunha

III

Sou, pois, já me conheceis, o leão-rei da alcateia que poupou a vida do profeta, porque connosco falou o Espírito Santo. E que não tivesse falado. Certamente falou de várias formas: pois antes de nos ter dirigido a Palavra, já nós O ouvíamos sem que nos falasse. O Espírito Santo é, da Santíssima Trindade, certamente a mais subtil e complexa das Sagradas Pessoas. Ele é o Paráclito: ao mesmo tempo consolador e defensor, advogado mesmo em tribunal. Pois intercedeu por Daniel que injustamente havia sido condenado, e encontrou nos reis do reino animal, nos leões, pleno vencimento de causa.

Obviamente que Daniel merecia ser poupado. Desde logo, porque o suposto “crime” que teria praticado não era crime algum, pelo contrário apenas o livre (ontologicamente livre, só comprimido por normas e atos eles sim criminosos) exercício da liberdade religiosa, como se viria a dizer mais tarde, desde logo nesta Península Ibérica e nesta Europa no séc. XXI, de onde vos falo.

E sim, sou um leão velho, velhíssimo, primordial quase, mas também e afincadamente, conscientemente, um defensor dos Direitos Humanos. Não por moda, nem contraditoriamente, achando que tudo o que é a meu favor o é, e tudo o que me não convenha contra eles se revelaria.

Direitos Humanos, que um leão pode bem defender. Sem cuidar sequer de Direitos dos animais (contos largos, contos largos, em que não me vou embrenhar agora). Aliás, todos já entenderam que eu não sou um simples animal. O mítico leão nunca foi um simples animal. E um animal não é um simples animal…

Mas voltemos aos Direitos. É uma questão que ainda se coloca, que se coloca e colocará no futuro próximo decerto ainda muito, porque os Homens se desumanizam, e não respeitam essas manifestações elementares da sua dignidade enquanto Pessoas. O problema nem sequer, em tese, se deveria pôr. Uma sociedade minimamente civilizada não deveria mesmo ter essa matéria como tema, muito menos como pauta de atualidade. Tais adquiridos deveriam ser naturais. Dever-se-ia viver os Direitos Humanos como quem respira.

Mas isso é com outros. Não estamos nessa sintonia, no momento. “Traten otros del gobierno”, escreveu Luis de Gôngora. Embora uma canção de Paco Ibañez tenha chamado a atenção para os perigos da alienação… Bem sabemos, bem sabemos… Têm ambos muita razão, no meu entender de quem já viu coisas demais.

Entretanto, quando me petrificaram, aqui no Império da Andaluzia, terra de coloridos jardins, frutos suculentos e sombras amigas e suaves, entendi que não somos apenas uma vida. Era, aliás, fácil compreendê-lo, tendo a reminiscência do tempo da Babilónia.

Como vos disse, tenho gostado deste tempo de agora (tantos séculos já), apesar de preso a segurar  esta taça de límpida frescura.

Só que a prisão é ilusória. Quando andava pela terras do Médio Oriente, também me sentia um leão enjaulado. Entendes que um leão condenado a devorar condenados é de todos o principal prisioneiro e com  a pena mais cruel? Eles encontravam a liberdade na morte. Nós em cada morte que obrigados perpetrávamos, era um novo grilhão que acrescentávamos à nossa longa cadeia.

Desenho de Paulo Ferreira da Cunha

IV

Sou o leão, quase sem rosto, com um impercetível olhar esfíngico. Isso não me despersonifica, contudo. Há uma certa bonomia satisfeita (mau “satisfecho” é só o “señorito” de Ortega… e esse é realmente muito mau)  nesta minha situação presente. O tempo angustiado das sagas, epopeias e tragédias terminou. Na Idade dos Homens (que hoje se arrisca a dar lugar a uma idade pós-humana, desde logo desertificada do que de melhor eles inventaram, os Humanismos – pois se superaram, numa reinvenção), o melhor é não perder o pé no real. Manter a serenidade, e aproveitar minimamente a vida, em geral tão fugaz, tão traiçoeira até. Um ar sereno e até aparentemente feliz (ainda que de uma falsa felicidade, porque estulta e enganada, não consciente) ainda é o limite máximo que nos é dado viver. Como há um abismo entre o sangue que por mim escorria lá nas terras de Babel e a pétrea bonomia em que poso para a posteridade como representante de uma das doze tribos de Israel… Ironia do destino…

Falava em aproveitar a vida tão fugaz. Vida fugacíssima a dos que por aqui têm passado. E nem sequer me refiro aos tais “turistas” dos últimos séculos, e em especial destes últimos. Não entendi bem ainda o que julgam eles que captam quando apontam para nós uns aparelhos, por vezes luzentes. Disseram-me que a nossa imagem entra nesses artefactos e pode ser depois reproduzida. Mas que interesse terá possuir-se uma imagem bidimensional de algo aparentemente tridimensional, embora, como sabemos (segredo nosso) tenha muito mais dimensões? O nó da questão estará certamente na posse. Os Humanos (e os animais também) gostam de se apropriar de coisas (até de pessoas e ideias – mesmo de divindades), e de coisificar entidades não reificáveis.

Os Humanos estão alucinados com algumas miragens: o rei que queria matar Daniel tinha a febre do poder; os turistas são benévolos doentes da maleita do possuir, até paisagens, lugares, memórias. Há outros venenos que os possuem, mas esses são normalmente filtros ainda mais complexos, ardilosos e mesclados de virtude e vício, e deixá-los-ei para eticistas mais experimentados. Afinal, eu não conheci senão o sangue da cova dos leões e a placidez da sombra deste pátio.

Desenho de Paulo Ferreira da Cunha

V

O leão é também símbolo da realeza, e uma realeza sacra a que não podemos deixar de associar o rei Salomão, cujo nome consta do nosso complexo escultórico.  Nem precisava de tal ocorrer…

O leão (não me caberia a mim recordá-lo, mas vivemos tempos ignorantes), rei da criação, espécie de lugar-tenente de Adão para os animais aparentemente não humanos (porque sabemos que os animais falam, e se falam também pensam – e é óbvio que sentem: não teve Ricardo de Inglaterra um “coração de leão”?) é senhor do porte imponente e altivo (sem presunção, mas por natureza e dignidade própria) que todos lhe conheceis. Mas relendo estas palavras sinto-as não pomposas, mas parcas. A nobreza, o oiro, a magnânimidade, a independência criativa e o rasgo são traços nossos. Acrescentaríamos até a palavra soberania, se ela não se encontrasse hoje tão esfacelada e desfigurada em polémicas e dogmas muito restritos. Aliás, da definição que atribuem a Jean Bodin pouco se aproveitaria mesmo para o que é o poder e a responsabilidade do rei leão.

De qualquer forma, é um arquipélago de conotações que se concentra na imagem do leão. E tem de haver um qualquer choque na associação do leão com símbolos de conotação diversa.

Por exemplo: o leão é um grande felino, o felino dos felinos. O arquétipo do Felino. Não é um gatinho. Um leão feito gatinho doméstico brincando com crianças e uma bola multicolorida, ou um leãozinho inofensivo, sem garras e quiçá sem dentes, embalado no colo de uma moça como se fora um urso de peluche… Pior ainda o último. Não, não sei qual dos dois o pior, o mais descaracterizador.

Não posso sequer pensar nessas imagens…

Claro que muito degradante é o velho leão cansado a quem todos vão provocar ou mesmo molestar. Ou o leão desses circos arcaicos de que o malabarista escarnece, obrigados à pantomina e ao chicote.

Essas são páginas tenebrosas da nossa gente. E, contudo, tal como ocorre com os Humanos, os leões podem submeter-se por vontade própria. É possível a servidão voluntária, de que falava La Boétie. Complexa atitude, pouco leonina, e, convenhamos, certamente pouco humana também… Falando da dita “natureza humana”, na verdade um arquétipo tão pouco físico, tão pouco “natural”, romantizado, ou tornado estoico…

Desenho de Paulo Ferreira da Cunha

VI

Hoje, no universo das imagens fictícias ou técnicas, aquela boa parte do romance (ou de qualquer género ou subgénero de ficção) que consistia na descrição (de paisagens, interiores, roupas, ou até de traços humanos físicos), fica em algum apuro, em crise, em perda. Como pode a paleta linguística competir com as imagens virtuais, facilmente criadas ou manipuladas por meios computacionais?

A moça que afaga o pequenino (e indefeso) leão não tem na ficção um rosto. Tem-no, nas imagens oitocentistas ou dos começos de Novecentos, pela mente e pelo coração do profanador fotógrafo, que lhe emprestou o seu olhar fatal.

Mas a decisiva pergunta é como o leão de pedra consegue saltar para a foto, preto e branco amarelada, dessa moça com leão.

Aqui, no pátio a que justamente damos nome, sou um austero ainda que (creio) simpático monumento de pedra, que acabou de se restaurar há pouco mais de meia dúzia de anos, após uma década de polimentos e restauros. Sinto-me rejuvenescido, lavado, livre de poeiras e excrescências. Foi um ritual longo, esse, mas valeu a pena. Todos os rituais purificadores (que nos alijam de adjacências e restituem a depuração) elevam, assim como todos os que nos carregam de adornos nos rebaixam e pesam, ainda que pensemos o contrário. São palavras de um rei sem coroa.

Retirado do pátio, quando chegou a minha vez, tive uma espera de recreio desta petrificação, que equivale a um dos castigos do Hades helénico. Voltei ao purgatório em que, fixo, vou tentando redimir a vagância (ainda assim confinada) na cova antes de conhecer aquele que tinha no nome ser apenas Deus o seu juiz.

Digamos que fui instrumento da mão de Deus, poupando o profeta, e agora continuo espiando e redimindo-me pelos séculos afora, dos tempos em que, também enclausurado, era involuntária máquina de opressão e morte.

Não consigo deixar de pensar na fotografia de que falámos. Podemos interpretá-la de várias formas, como diverso significado pode ter esta minha guarda no pátio.

Ela parece poder também dar uma esperança de um mundo paralelo, em que adquira de algum modo vida, e encontre alguma forma de afeição e a possa irradiar também. Todos sabemos como o leão pode ser o cordeiro, e vice-versa. Basta ler o Apocalipse.

Os tais turistas, que são quem agora mais nos visita, mesmo os letrados e invetigadores que com um outro olhar de quando em vez por aqui passam, não querem de nós sentimentos; no máximo dos máximos nos tributarão admiração.

Desenho de Paulo Ferreira da Cunha

VII

Ora eu, leão de Beltessazar (assim lhe chamaram também), estou há séculos à espera de uma dupla de dons, que alguns diriam inatingível: a Liberdade e o Amor. Claro que são conceitos (“são conceitos!” Que digo eu? Como se o fossem antes de mais…) muito polissémicos…

Que saber disso para o poder desejar? Quantos filósofos se passaram neste pátio, quantos poetas, quantos senhores do poder, da paz e da guerra, quantos amantes… Todos por aquelas janelas nos fitaram ou deambularam em poses diversas em torno desta fonte da vida (fons vitae). E alguns cuidaram saber de uma cousa e da outra, e certos não pensaram vivê-las, ainda sem as pensarem muito.

Não importa: algo me segreda que são ambos objetivos que, necessitando embora de um contexto favorável (porque dependem de outros, e mesmo de sociedades realtivamente despoluídas e saudáveis, em que sejam possíveis), dependem sobretudo de cada um. Portanto, no meu caso, de me transfigurar, porque pedra, ainda que segurando uma taça de vida, não é argila para moldar uma coisa nem outra.

Mas, insisto: há milagres. Eu já fui um carniceiro. Vede-me ainda feroz e pulsante no quadro de Rubens.

E nesse século XIX, enquanto estava o meu invólucro aqui em Granada, posso ter momentaneamente visitado essa foto pretensamente exótica. Mas, evidentemente (não quero ser mal entendido), essa moça, cujo rosto nem sequer vi, não é nem o meu ideal de liberdade nem de amor. Olhem como ela me teria (se aquele leão tivesse realmente sido eu) de algum modo preso, aprisionado, domesticado. Estou nas suas garras. Talvez me pudesse dar a afeição superficial que se pode transferir para um qualquer boneco mais ou menos animado, ou… animal de estimação. É uma afeição (se o for…) de algum modo pueril, fútil, decorrendo decerto de um fundo inespecífico de carinho potencial que em mim terá fortuitamente poisado. Muito provavelmente animado pela relativa excitação e vaidade de se poder ter ao colo um leãozinho – coisa aparentemente paradoxal, e exótica.

Esse século XIX de uma possível (mas improvável, claro) liberdade condicional e condicionada é uma advertência contra a falsa liberdade e certamente também contra o falso amor. As múltiplas falsas liberdades e os inumeráveis traiçoeiros, ilusórios e erróneos amores – de miragem e de servidão também.

Digamos que numa primeira recusa, surrealista, mais me tentaria inverter as posições da foto. Pois que a figura humana é indefesa e o leão é magnânimo e não agressividade pura, pois que ela seria afinal a imagem do cordeiro, então seria o leão que deveria tomar conta dele. Por isso a moça poderia ser consolada, embalada, e (aí é que está o maior problema, de novo: e como ele hoje ressoaria!…): pelo menos implicitamente aprisionada.

Decerto é esta tentação nada mais que o meu complexo de carcereiro da cova dos leões, que emerge, que vem ao consciente. Em Herberto Helder não há um cão que tinha um marinheiro? A princesa de São Jorge e o dragão de Paolo Uccello não traz a besta por uma trela? E não é o leão rebaixado a glutão na Dame à la Licorne e a criatura pusilânime no Feiticeiro de Oz? Há certamente forças superiores às do leão, e se as heterodoxias referidas são permitidas, mesmo afrontando a dignidade leonina, bulir com o Feminino seria muito mais sacrílego. Não se deve tocar em mistérios muito profundos.

Além disso, entrar, por que forma fosse, nessa dialética do senhor e do escravo nunca foi libertação. E muito menos ainda, a fortiori, Liberdade. Amor tampouco.

Que imagem, então, colocar na minha mente, como visualização do que muito se deseja, e espera que venha a concretizar-se, pelo turbilhão magnético dessa força do querer, que alguns consideram invencível e infalível. Confesso que o não sei, nunca o tentei.

Desenho de Paulo Ferreira da Cunha

VIII

Shiuuu!… De novo estão a chegar trabalhadores de reparação do pátio. É uma manutenção de rotina, mas isso nos permitiu estas reflexões, sem ter de afivelar o sorriso esfíngico. Sim, só o alívio da prisão e das invasões bárbaras dos visitantes, com suas fotografias incessantes, me permitiu este desabafo.

Agora, honestos pedreiros e afins mesteirais virão embelezar o pátio, para que resista a mais uns séculos de reiterada e consentida profanação.

Sei que te devo ainda umas palavras, sobre o meu sonho, acalentado dia após dia, mês após mês, ano atrás de ano, sobre liberdade e amor.

Mas é impossível falar disso cercado pela indiscrição destes bravos empreiteiros. Requerer-se-ia recato, uma brisa de fim de tarde, e que eu saísse mesmo daqui, passeando pela savana, olhando o por-do-sol além dos embondeiros.

Não é muito importante. As minhas palavras seriam sempre as de uma metamorfose que está congelada há tempo demais na mesma fase. A borboleta tarda a revelar-se.

Pode ser que alguns destes trabalhadores me venha a transportar para um outro lugar. Oxalá não para defininhar num museu. Pode ser que uma outra imagem se projete sobre mim, numa espécie de upgrade, e eu me venha a volver em leão alado mesmo, concretizando o sonho dos meus primos assírios. E depois pelo Leão de São Marcos aqui mais perto, em Veneza.

O leão da cova dos leões do justo Daniel volvido o símbolo do Evangelista – só mesmo na confusão pós-moderna…

Não. Sejamos mais comedidos.

Há na mitologia hodierna de Nárnia, de C. S. Lewis, um bom leão, Aslan. Pode ser que, no seu enorme coração, ele se apiede de mim, e me venha a conceder as graças que eu não mereço, eu que fui o leão da cova dos leões, e também leão da coroa dos leões na resplandecente Granada, tierra sonãda por mi.

Isso será para mim melhor, certamente, que a justiça dos Homens (ou a sua História, outra espécie de tribunal), que não apenas continuam a caçar leões, como a caçar-se entre si. Por mim, afinal, só espero não acordar um dia num jardim zoológico, ou, pior ainda, como leão decorativo em entrada de casa de novo-rico.

Desenho de Paulo Ferreira da Cunha

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Paulo Ferreira da Cunha – Professor Catedrático e Director do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

Todos os desenhos usados são autor dos textos.

O ULTIMO SORRISO DE BEATRIZ- POR GISELDA LEIRNER

© Noronha da Costa

O ÚLTIMO SORRISO DE BEATRIZ

Meu primeiro dia de aula. O anfiteatro estava cheio. Era um pequeno espaço ocupado por cadeiras móveis e  ruidosas. Um palco ocupava grande parte da sala dividida em dois grupos por uma passarela que alcançava a porta de entrada e saída. Os alunos inquietos, procuravam se acomodar, prestando pouca atenção ás palavras do Diretor.

Só se fez silêncio quando uma jovem começou a caminhar pela passarela. Seus passos eram leves, deslizava  na  primeira demonstração de como uma atriz deve se mover. O vestido  de seda transparente ondulava em seu corpo  com as estampas que pareciam cobras lilases movimentando-se dos seios até os pés descalços, como se caminhasse sobre estrelas. Continuar a ler “O ULTIMO SORRISO DE BEATRIZ- POR GISELDA LEIRNER”

PEQUENOS CONTOS DE JAIME VAZ BRASIL

© Yang Cao, sem título

A Arte de Conquistar o Mundo

O exército do país A invadiu o país B. Morreram muitas pessoas nos dois lados. O país A, apesar de enfraquecido com as baixas, venceu. Mesmo debilitado, percebeu que amedrontara o país C, e isso o impeliu a invadi-lo. Outras mortes, mas a coragem já superava qualquer dificuldade. Pôs abaixo o país D. Mal terminaram a comemoração regada a vinho, tomaram posse do país E. Até que um dia, seus poucos soldados não contiveram o exército de meia dúzia de esfomeados do país Y que, a exemplo de J. Pinto Fernandes, não estava na história, mas aproveitou a situação e tomou posse com paus, pedras e pelegaços. Continuar a ler “PEQUENOS CONTOS DE JAIME VAZ BRASIL”

CONSERTO NO TELHADO – por Marcos Fernando Kirst

 

@JuliaML

Sabia que já não tinha mais idade para aquele tipo de coisa, mas mesmo assim tirou as teias de aranha da escada de madeira e encostou-a na parede do lado de fora da casa caiada, pronto para escalá-la rumo ao telhado, onde a antena parabólica aguardava por não mais do que uma pequena torcida para devolver a qualidade da imagem da televisão, pois que o jogo começaria dentro de poucos minutos. Continuar a ler “CONSERTO NO TELHADO – por Marcos Fernando Kirst”

AGORA, MORTA É INÊS – por Danyel Guerra

© Luís Guerra e Paz
      “Toldam-se os ares,/Murcham-se as flores;/
  Morrei, Amores,/Que Inês morreu”

 Manuel Maria du Bocage

Na plataforma rochosa de uma praia, algures no Universo, um fotógrafo clicka  closes da agreste,  severa paisagem. De súbito, a objetiva da câmera se vê velada por uma mão lutuosa, sinistra, nem tanto por ser a esquerda. Atrevida e inoportuna, a ponto de malograr o clichê. O visado não demora um átimo a adivinhar quem ousou a desfaçatez. Um ser fantasmático, fumos soturnos na expressão facial, se configura à sua frente. Continuar a ler “AGORA, MORTA É INÊS – por Danyel Guerra”

A VELHA DA RUA AMARGÓS- por Giselda Leirner

 

Como um rato. Pequena, cinzenta, aconchegada numa banqueta ao fundo de sua loja. Se assim pode se chamar uma porta na parede cujo interior escuro, coberto de livros, manuscritos, mapas, exala ao mesmo tempo um cheiro de poeira e umidade. Um hálito podre vem da boca da velha. Tudo se mistura à sombra suja e amarelada. Uma lâmpada pendurada de modo precário ilumina vagamente a única mesa que ocupa quase todo o espaço. No chão, pilhas de papéis. No fundo, um buraco cavado na parede onde se presume fique o WC-cozinha. Continuar a ler “A VELHA DA RUA AMARGÓS- por Giselda Leirner”

UM HOMEM SÓ PELE – por Jaime Vaz Brasil

Lonely man under wind blown tree — Image by © Howard J. Winter/Corbis

Não posso pegar vento, por isso quase não saio mais de casa. Até saio, mas é direto para o trabalho. Depois, de volta e depressa.

Quando eu era pequeno, me lembro um pouco disso de não tomar vento. Mas a situação era outra. Quando conheci Alice, conheci a paixão e suas maravilhas. Os abraços de Alice, os beijos de Alice, os braços que eram dois eram quatro eram oito braços, aquele carinho e aquele modo de me levar ao céu que só ela sabia. Assim que juntei uns dinheiros, casamos. E Alice cada vez mais aquilo tudo, os beijos, o modo com que me cavalgava inclinada sobre meu corpo, agarrando com força meus braços, os gritos e gemidos que não imaginei encontrar em mulher esposa. Quando nasceu nosso filho, Alice ficou diferente. O olho dela ficou de mirada única. Continuar a ler “UM HOMEM SÓ PELE – por Jaime Vaz Brasil”

RoMARIA DE FÁTIMA – por Danyel Guerra

“Nem que eu e a Mercedes Sosa tenhamos de ir a pé em roMaria de Fátima” .

Diogo estaca o passo à porta do cômodo e recua estupefato, a ponto de desviar o olhar. O que se passa, cariño? Parece que viste uma assombração.

Nem uma semana tinha passado  desde o momento em que Lúcia lhe ligara, anunciando promissoras sensações de comprazimento. Olá Diogo, tudo bem? Tenho uma novidade  para te contar. Meus pais vão a Fátima, no 13 de maio com a Jacinta e o Francisco. Quando me disseram fiquei  eufórica. Quase tive um desmaio. E já podes adivinhar o que vai acontecer….. Continuar a ler “RoMARIA DE FÁTIMA – por Danyel Guerra”

ANUNCIAÇÃO OU ANATOMIA DE AFRODITE- por Giselda Leirner

Sem titulo, 1985, de Artur Cruzeiro Seixas

Rosa era um ovo. Cheio e frágil. Acordava cedo. Não lembrava de sonhos. Assim que se levantava, punha uma polca no aparelho de som. Era seu único disco. Não tinha muitos pensamentos, e falava sozinha. Não foi sempre assim. É claro que nada é sempre assim. Rosa fôra loira, alegre, gostara de um homem e de arte sacra mais que tudo. Nunca saiu de sua cidade e sua cidade nunca deixou de ser Girona, terra cansada de uma Espanha negra e profunda.

Continuar a ler “ANUNCIAÇÃO OU ANATOMIA DE AFRODITE- por Giselda Leirner”

OS RATOS – por Uili Bergammín Oz

Os jogadores de cartas, de Paul Cezanne

– Vou perder. – sussurrei comigo mesmo, enquanto observava dois enormes ratos desfilando sobre o balcão. – Vou perder tudo esta noite.

Seu Genaro tentava enxotar os pestilentos com um pedaço de pano, algo que já fora cobertor há muito tempo. Era em vão. Quando dava por si, lá estavam eles sobre a tábua imunda, repleta de copos e garrafas vazias, como se velassem a batalha que se travava. Sim, uma batalha era aquilo, não um simples carteado. Um combate psicológico e campal. Eram olhares oblíquos, estratégias ousadas, fumaça, a tensão dos generais ao decidirem se atacam o inimigo ou defendem o território conquistado. O silêncio era de estourar os tímpanos. E não só a mesa, mas todo o boteco era o campo de guerra. Uma guerra de nervos. O bairro temia aquele recinto. Todos sabiam da bomba-relógio que lá havia. Continuar a ler “OS RATOS – por Uili Bergammín Oz”

REI E RAINHA DE UM CARNAVAL MICARETA por Danyel Guerra

Alain desenlaça, decidido, o amasso da frenética Romy. O que se passa, querido? Darling, o que passa daqui a uns segundos é o bus dos 33 minutos, não posso perdê-lo…! Ele ajusta, no orifício certo, a fivela prateada do cinto, selando a separação com um beijo fugaz nos lábios carmesins da garota. E sai disparado rua afora…senão vou tomar um chá de cadeira de meia-hora, completa aconchegando o cachecol black  & white ao pescoço e estugando a passada. E com apenas 33 segundos de atraso, um 33 se detém perante o solitário e ansioso passageiro.

Continuar a ler “REI E RAINHA DE UM CARNAVAL MICARETA por Danyel Guerra”

O DUELO FINAL – por Jaime Vaz Brasil

Basil Rathbone and Tyrone Power , no filme “The Mark of Zorro”, dirigido por Rouben Mamoulian

No porão, esperávamos o Águia. Atrasado, como sempre. Mas viria, cedo ou tarde. Viria com o nariz erguido, a roupa surrada e a tatuagem no braço que lhe valera o apelido. Iniciamos sem ele. Raimundo Sanchez estava com aquele casaco que o deixava ainda mais gordo, e foi desenrolando devagar a planta, desenhada em papel de embrulho. Olhamos em direção à porta: ninguém nos observava. O esquema todo abriu-se ali, clareira em mato de silêncio. Domingues, o manco, questionava os riscos de cada etapa. Quando mostrávamos a ele a fronte encurvada do seu medo, tentava se defender:

Continuar a ler “O DUELO FINAL – por Jaime Vaz Brasil”

… E NEM SEQUER ME VISTE – por Joaquim Maria Botelho

Imagem de Florian Gerbaud

(inspirado em um poema de Olavo Bilac)

Viu-a só uma vez. De relance. Loura, luminosa, clara. Cabelos cacheados emoldurando o rosto de menina, um olhar perdido, que num primeiro momento parecia estar focado sobre ele. Mas foram segundos. Passou pela frente da casa, retardando um tanto a caminhada – quem sabe ela voltava para mais um ligeiro estar abandonada sobre os cotovelos, na janela da casa bonita, bangalô florido, da Rua dos Ingleses. Não veio. E ele não teve mais como se demorar pela vizinhança. Podia ser tido como um malfeitor que espreita as casas para de noite roubar. Preferiu ir embora. Continuar a ler “… E NEM SEQUER ME VISTE – por Joaquim Maria Botelho”

DE VOLTA AO CAMPO DE CENTEIO, por Uili Bergammín Oz

Coisa engraçada a terra de nossa infância! Por mais que nos distanciemos, por mais que viajemos o mundo e conheçamos lugares fabulosos, jamais esquecemos dela. É o caso do meu campo de centeio, um cantinho escondido de Cotiporã, bucólica cidadezinha do interior. Sim, é lá que me refugiei durante anos, para recarregar as baterias, como gostava de dizer.

Mas, apesar dessa saudade que entra pela janela, não é sobre minha terra que desejo escrever agora. Ou, pelo menos, não dela propriamente dita, que o problema maior nestas artes de escrever é que lembrança puxa lembrança; e a saudade é um veneno para a folha branca. É sobre sonhos antigos que quero escrever hoje, a maioria deles, creio, mortos e enterrados por aqueles prados.

Quando eu era mais novo, piazote ainda, acreditava que o trovão é que matava e provocava estragos. Sim, eu acreditava em muita coisa. E foi por essa época, de inocência, se é que um dia inocente fui, que brotaram algumas aspirações. A época de Salinger, com seu maravilhoso livro “O Apanhador no Campo de Centeio”, seu estranhamento do mundo e ideais camuflados, que fez nascer em mim uma vontade de mudar o mundo. O mundo não, só o meu cantinho, que o mundo era grande demais para mim.

O fato, porém, é que pouco consegui mudar minha terra. Para ser sincero, pouco consegui mudar à minha volta. Pouco mudei, a não ser a mim mesmo. E foram dias difíceis aqueles, pois fui o que todos fomos na juventude: revoltados, incompreendidos, nos achando melhores do que os adultos, pois ainda não éramos tão ridículos. E eu era mesmo diferente, não sentia entusiasmo onde outros vegetavam cada fibra de seus seres. Entristecia-me a banalidade humana e o fato de estarmos caminhando rumo ao abismo, sem nos darmos conta. O fato de eu estar deixando o território mágico da infância e me lançando na vida adulta, onde dificilmente seria feliz. Essas coisas me preocupavam deveras.

Mas, como tudo que começa um dia acaba, desvaneceu-se também meu mundo utópico. Tudo são fases, dizia o poeta. Hoje, só de vez em quando lembro do antigo refrão: “Por favor, não me obriguem, eu, rapaz quadrado, a passar por buracos redondos”.

 Sim, hoje sou homem e aprendi que o que mata é o raio. Que o trovão nada tem a ver com os estragos e, se tem, é uma relação distante, apenas sensacionalismo. O que eu chamava “pacto de mediocridade” é um mal necessário e chorar pelo sofrimento alheio pode não ser hipocrisia, mas de nada resolve.

Entretanto, às vezes, “ah que saudades eu tenho da aurora de minha vida.” Quem dera nesse mundão que agora finjo ser meu, houvesse ainda um cantinho onde eu pudesse lembrar, onde eu pudesse ser. O velho campo de centeio à beira do precipício, onde eu pudesse outra vez salvar o mundo e as crianças e a mim mesmo.

Ora, ora, vejam só as tolices que torno a dizer! Parece que começo a acreditar em trovões novamente. Parece que Holden, o anti-herói do livro, renasce das cinzas, sussurrando em meu ouvido a iminente coisificação do humano, o despencar definitivo. E as pessoas ao meu redor apenas me olham e sorriem, de pena ou coisa parecida.

Coisa engraçada a terra de nossa infância. Por mais que nos distanciemos, nunca esquecemos dela. Nem dos sonhos realmente legítimos.

Uili Bergammín Oz é escritor, poeta e palestrante gaúcho. Já escreveu mais de 20 obras, entre contos, crônicas, poemas, novelas, adaptações e traduções.  Colaborou para jornais e revistas da Serra Gaúcha, além de ter apresentado programas de TV, sempre falando sobre leitura. Atualmente é apresentador do programa LiteraCura, canal do YouTube que estreou em janeiro de 2018. Seus textos já foram adaptados para o cinema, teatro, música, artes visuais, espetáculos de dança, corais e outros suportes artísticos. 

NOSSO TIO, TENENTE ALFREDO NUNES, CONTAVA HISTÓRIAS – por Jaime Vaz Brasil

Nosso velho tio Alfredo Nunes era tenente do exército. Depois de reformado, sempre que nos visitava, dizia dos acontecidos no tempo de quartel. Gostávamos de ouvir das manobras e dos exercícios de guerra. Nosso tio Alfredo era uma espécie de herói familiar. Ficávamos ao redor dele. Depois de uma cerveja que outra, desenrolava a língua. Já conhecíamos todas as histórias que o tio Alfredo poderia contar. Fazíamos reparos quando ele tropeçava num exagero que outro. Uma história nosso velho tio Alfredo repetia mais que as outras.

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SOLICITAÇÃO DE AMIZADE DE LOURDES BALLET – por Fernando Corona

 

Olavo entrou em seu apartamento e parou no meio da pequena sala para respirar profundamente, já que tinha por hábito não usar o elevador. Estava ofegante por ter subido dois lances de escada e também respirava fundo porque ao entrar sentira que das janelas escancaradas vinham uns ares de outono já com cara de inverno e isto para ele era sempre um cerrar de olhos, um transportar-se para tantos e tantos portos de sua larga vida que agora completava setenta anos.

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