A ÚLTIMA ESCURIDÃO DE GONZALES – por Jaime Vaz Brasil

Imagens de Lourdes Ximenes

Gonzales entrou em casa como quem procura barulho na sombra. E tudo estava escuro demais. Com isso, nem sombra apareceu. Fez dois ruídos opacos. Um quando tentou abrir a porta sem acordar a dobradiça velha. Outro, quando quis acender a luz. Compreendeu a escuridão e sacou lentamente o punhal. A lâmina foi retirada como se não pudesse roçar o couro que a abrigava no mais dos tempos, onde o aço e o gume descansam pulsando para um quando. Todo o punhal um dia há de encontrar seu destino. Sua dança no vento para a verdade final. Quando não tanto, vai vivendo no talho que falqueja a carne assada em algum fundão de campo: coisa pequena, mas não menos útil. Gonzales moveu o punhal como se temesse um impossível reflexo, enquanto os olhos procuravam se acostumar com o negrume forjado. Sabia por quem. E não à toa na lua nova. A luz elétrica em Rio Negro era coisa muito nova. Poucos meses. E, pelo que se conta, benfeitoria e bênção das mãos do Coronel Moreira.

Quando Silvino, o filho de Gonzales, começou a trabalhar nos campos do dito Coronel, aviso não faltou. E o Coronel deu pelo sumiço de umas ovelhas, depois um borrego… Junto, a fama de Silvino nas rinhas e no carteado poderiam antecipar alguma coisa sombria. Também aquelas melenas até os ombros, vincha larga na testa, a pele do rosto não guardando parecência de quem trabalha no solaço do campo. Mas nada disso parecia tirar o sono de nenhum deles: ladrão, Silvino não era. O que nunca poderia ter acontecido, e sempre fora a recomendação mais repetida de Gonzales para o filho, era outra coisa.

Silvino era um moço forte, de feições quase rudes, atenuadas pelo cabelo tratado com exagerado zelo. Motivo de risos miúdos aqui e ali pelos outros peões do Coronel Moreira. E tem na história a moça Virgínia, filha do Coronel, que não escondia muito os olhares que atirava para Silvino. E nisso poderia se resumir tudo o que aconteceu.

Não demorou para que surgisse o boato. Ela teria se deitado com um dos peões, e só poderia ser o mais jovem, o mais ajeitado, o da cabeleira vistosa. O Moreira, que sempre acabava sabendo de tudo, pessoalmente tratou de esfolar a filha até tirar sangue. A fivela do cinto se cravando na carne dela enquanto gritava puta, sua puta, eu criei uma filha puta. Ela chorando aos pedaços, a dor sucumbindo a cada cintaço, o barulho surdo, o grito que já nem vinha, até que apagasse num desmaio. O Coronel não chamou médico nem nada. Mandou trancar o quarto e as empregadas que dessem comida e panos com água.

No mesmo dia Gonzales ficou sabendo da situação na casa dos Moreira. Assim que encontrou Silvino, a coisa entre os dois ficou tão escura quanto a casa que hoje espera a encruzilhada dos gumes.

E foi a bem da verdade que Silvino se ajoelhou na frente do pai. Não fiz nada, meu pai. Não fui eu. Juro. Tanto foi a conversa que Silvino acabou por confessar algo que jamais imaginaria admitir: não gostava de mulher, nunca tinha se acostado com nenhuma. Aquelas idas à cidade, aquele cabelo, aquele jeito estranho que os outros comentavam, enfim, tudo fazia sentido. Gonzales ouviu tudo em silêncio, parecia ter sido esfaqueado, a dor aguda roendo, a respiração trancada, a carne em febre, a escuridão pressentida. Silvino ajoelhado, chorando de medo e vergonha, a fala entrecortada, cabeça baixa se apoiando na mão esquerda. Gozales deu um tapa seco na mão de Silvino, como a dizer merda de cabelinho enfeitado, merda de filho… Silvino fez a mala naquela noite e combinaram – sem palavras – não se encontrarem nunca mais.

Gonzales poderia ter ido na manhã seguinte falar com o Coronel Moreira. Se contasse, a vida de Silvino estaria a salvo, mas a honra dele e dos que o precederam, morta para sempre. Gonzales conhecia Moreira há tempo suficiente, embora os dois não se encontrassem com freqüência. Sabia de coisas que nem deveria saber. Mas memória é um bicho que escorrega nos dedos, e só se entrega na hora que deve. Quando soube que a moça Virgínia passou o que passou nas mãos do Coronel, só haveria paz se ele fosse ao tirano com o chapéu na mão, cabeça perteando do chão, e contasse a verdade do filho, a desonra toda. E se sujeitasse – coisa muito provável – à desconfiança, depois ao riso debochado do Coronel, e bem depois alguma fala como cada um carrega a sua cruz, Gonzales…

A idéia de encontrar o Coronel nessas circunstâncias foi banida rapidamente por ele. É bem verdade que agora, enquanto mal respirava com o punhal erguido, a idéia tornou. Mas era tarde. Além do mais, já que todos morrem, então que o motivo valha alguma coisa.

Se a moça Virgínia passou aquilo tudo na mão dele, era de esperar o pior. Assim que Silvino partiu, Gonzales afiou o punhal. Afiou como quem esculpe no aço o tempo, a sorte e o futuro. Naquela noite, não dormiu. Deitou-se, luz da varanda acesa, faca perto da mão direita. Na mesa de cabeceira, térmica com água para o chimarrão e outra com café. Quando os galos fizeram o amanhecer, Gonzales já estava sentado com o pensamento perdido e despedaçado. Temia um pouco pelo filho, outro tanto por ele mesmo. E a todo momento a visão pressentida do Coronel Moreira e sua fúria ou seu deboche. Um pensamento miúdo de procurá-lo aparecia em brevidade, mas a idéia de dobrar a espinha, a idéia da vergonha eterna era maior que o passageiro.

Quatro dias depois, precisou ir ao povoado. No caminho, tentava disfarçar o receio em cada dobrada da estradinha de chão batido. Cada árvore, cada curva, tudo cheirava à emboscada. Mais de uma vez ele desembainhou o punhal à toa.

Na bodega do Fulgêncio, tomou um trago ou dois e quase soltou a língua. O próprio Fulgêncio se antecipou com a cabeça, como a dizer fica quieto, não complica ainda mais as coisas. Pegou os mantimentos, ajeitou a mala-de-garupa e voltou sem pressa.

Chegou, era noite. Os cachorros não latiram, mas às vezes era assim. Talvez conhecessem o trote de quem era de casa. Por isso não estranhou. Mas quando tentou acender a luz, aí coração deu um repique e as pernas se afrouxaram de frio.

Pois então. Era de noite, a casa muito escura, punhal pulsando no punho: parecia vivo. Gonzales procurando tudo com os olhos enquanto os pés mal se moviam para formarem passos. A respiração era para dentro, economizando barulho no meio daquela escuridão tamanha.

Alguns instantes depois, a vista querendo se acostumar, Gonzales percebeu um vulto escorado na entrada da cozinha. Deu a volta muito devagar, com o silêncio treinado nas tardes de matear sozinho, com o silêncio plantado nos pés, e agarrou-se ao homem, por trás, de um tranco só.

O braço direito, que era um elástico. Desenhou uma foice curtinha no ar pesado e cravou duas vezes seguidas o punhal, na parte de cima da barriga do estranho. Na segunda vez, os dentes trincados, a cara de ódio, torceu o aço dentro do homem, que foi tombando devagar, golfando algum sangue pela boca e sem dar nenhum grito.

Cada punhal tem seu dia de prestança, dia em que o destino vem falar a última verdade. Para cada homem desse mundo um dia o escuro se clareia, seja pelo caminho que for. E venha de onde vier a luz. Não é assim? No céu mais escuro, cada estrela aparece mais. Do mesmo jeito, o espelho da lâmina pode refletir na cara da morte a última verdade, e desta ninguém foge.

Enquanto o corpo tombava amolecido, as mãos de Gonzales foram reconhecendo aquele corpo familiar, o cabelo até os ombros, e uma ou duas palavras que não nasceram.

Em seguida, os dois ajoelhados. Um mais morto do que outro.

 

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Jaime Vaz Brasil – Poeta gaúcho, com 7 livros públicados e vários prêmios, dentre os quais: Açorianos, Felipe d’Oliveira e Casa de Las Americas (finalista). Atua também como compositor, tendo vários poemas musicados e interpretados por vários parceiros, dentre os quais Ricardo Freire, Flávio Brasil, Zé Alexandre Gomes, Nilton Júnior, Vitor Ramil e Pery Souza.

7 comentários em “A ÚLTIMA ESCURIDÃO DE GONZALES – por Jaime Vaz Brasil”

  1. Lía María Blanco. diz:

    Realmente…gostei muito. A maneira de descrever, cada detalhe, fêz que a minha imaginação…soubesse antes, o que iría acontecer e quem sería, a vítima. Parabéns meu Amigo! Eu também escrevo…

  2. ROSA MAGALI SKLAGENBERG GOULART diz:

    Maravilhoso! Fiquei impressionada com a facilidade de, em poucas e bem articuladas frases, o autor gerar, na leitura, a sensação de estarmos presentes em cada cena descrita. O texto nos remete aos medos, às rejeições, aos limitadores culturais, morais e sociais, à finitude, aos amores, aparentemente, condicionais, mas, especialmente deixa margem a muita reflexão – reflexão dolorosa- acerca das mortes emocionais, que podem se estabelecer durante as relações humanas mal-resolvidas e as mortes fisicas, que muitos pensam, equivocadamente, teria o condão de aplacar as primeiras. Pai e filho já estavam mortos antes do evento morte. Mas, penso também, que, por mais estranho, que possa ser, se o conto fosse real, o filho, rejeitado e/ou morto, passaria a ter, na vida do pai que o matou/rejeitou, o espaço que era e deveria ter sido dele, desde o início da relação. Paradoxalmente, a morte pode reescrever e realinhar a vida daqueles que sobrevivem.
    Parabéns ao escritor!!!!

  3. Maria Augusta Xavier da Silveira diz:

    Muito bom mesmo, o início é quase poesia. Adorei. Palmas amigo Jaime, gostei por demais.

  4. AMARO GONÇALVES Jr diz:

    Baita! Este é um daqueles que Horácio usaria para ilustrar seu decálogo. Abração, mestre!!!

  5. Joelson Machado de Oliveira diz:

    Grande Jaime. Belo conto. Gostaria de te apreciar mais na prosa. Você é muito bom.
    Abraço Joelson Oliveira de Santo Antônio da Patrulha.

  6. Putz tu és muito bom também no conto! Gênio é gênio! Do teu fã Toninho.

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