O PAÍS ONDE OS POETAS MORREM ANTES DE NASCER – por César Afonso

 

O País Onde os Poetas Morrem Antes de Nascer

Notas contra a imobilidade do cânone e a ausência de futuro na crítica literária portuguesa.

Introdução

Portugal é uma nação de poetas. De Camões a Pessoa, de Sophia a Herberto Hélder, a história literária portuguesa consolidou-se numa galeria de nomes que moldaram o imaginário nacional e, em muitos casos, internacional. No entanto, este legado poético que orgulhosamente se cultiva é, paradoxalmente, uma das razões que poderá explicar o estagnamento da poesia contemporânea no país — não por falta de criação, mas por ausência de visibilidade. A academia, em particular, tem-se mostrado resistente à renovação crítica, preferindo estudar, reeditar e reverenciar os poetas já consagrados, enquanto negligencia, quase sistematicamente, o pulsar de novas vozes, as margens férteis da criação, os lugares onde a linguagem se reinventa.

Neste ensaio, propomos refletir sobre a responsabilidade da academia e do circuito crítico na estagnação do reconhecimento da nova poesia portuguesa. Partindo da análise de revistas literárias, projetos de investigação e estudos contemporâneos, argumentaremos que o foco exclusivo nos cânones impede a identificação e a promoção de uma poética emergente, plural e inovadora. Esta falta de renovação crítica poderá ser, aliás, uma das razões que ajuda a compreender por que motivo Portugal — país com tradição poética fortíssima — nunca viu um dos seus poetas distinguidos com o Prémio Nobel da Literatura.

Mais do que uma denúncia, este texto pretende ser um apelo: pela abertura à diferença estética, pela escuta do inédito e pelo reconhecimento de que a literatura não se faz apenas na consagração do passado, mas sobretudo na coragem de imaginar o futuro.

  1. O olhar académico centrado no passado

A crítica literária portuguesa, enraizada nos circuitos universitários e nas revistas de referência, tem revelado uma tendência persistente: a concentração quase exclusiva na análise e valorização de poetas consagrados. Embora a atenção ao cânone seja natural e, até certo ponto, necessária, o problema emerge quando essa centralidade se transforma em exclusividade. A nova poesia, que pulsa nos interstícios digitais, nas publicações marginais, nos blogs e nos coletivos independentes, raramente encontra espaço na crítica formal, nos programas universitários ou nas publicações académicas.

Ida F. Alves, no seu estudo sobre revistas de poesia contemporânea em Portugal, aponta para esta assimetria crítica, ao demonstrar que publicações como Relâmpago, Cão Celeste e Telhados de Vidro — embora fundamentais na cena literária — privilegiam quase sempre autores já estabelecidos, mantendo um circuito fechado de leitura e reconhecimento. A própria autora reconhece que, mesmo com o crescimento de formatos digitais e alternativos de circulação poética, o olhar institucional continua colado ao passado: “as revistas literárias revelam uma ação hesitante em relação à descoberta ou consagração de vozes novas, preferindo operar como veículos de reiteração do cânone.”

Este fenómeno não é apenas uma questão de preferência editorial: é um reflexo de uma cultura académica que valoriza a segurança do que já foi legitimado em vez do risco estético. A crítica torna-se, assim, mais arqueológica do que prospectiva. Em vez de escavar o futuro da literatura, dedica-se a sedimentar as glórias do passado. Esta postura é visível nos programas curriculares das universidades, onde os estudos poéticos se mantêm centrados em nomes do século XX, com escassa abertura para fenómenos pós-2000 ou para autores não representados pelas grandes editoras.

O efeito deste conservadorismo crítico é duplo: por um lado, impede a circulação de novos autores num espaço de legitimidade; por outro, limita o próprio campo de pesquisa literária, que se torna repetitivo, fechado, autorreferencial. Como escreve Charles Bernstein, “não há poesia viva sem crítica viva” — e a crítica viva, por definição, deve estar disposta a errar, a descobrir, a acolher o estranho. Sem essa abertura, a poesia portuguesa contemporânea corre o risco de permanecer num estado de invisibilidade prolongada, ainda que tecnicamente vibrante, emocionalmente intensa e intelectualmente inquieta.

  1. Margens como motor de inovação

Se a academia se fecha num olhar retrospetivo e centrado no cânone, é nas margens — geográficas, editoriais e digitais — que encontramos o verdadeiro laboratório da poesia contemporânea portuguesa. Longe das vitrines institucionais, multiplicam-se vozes que desafiam formas, reinventam a língua, interrogam o presente com uma urgência que a crítica literária tradicional parece incapaz de acolher. Estas margens não são zonas de carência: são territórios de invenção.

O projeto “Novas Poéticas de Resistência”, desenvolvido entre 2007 e 2011 pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, foi pioneiro na tentativa de mapear e valorizar a criação poética situada fora dos grandes centros e das editoras estabelecidas. Dirigido por Graça Capinha, o projeto não apenas produziu antologias, como também criou arquivos multimédia e realizou encontros que revelaram a vitalidade de uma poesia feita em blogs, revistas locais, coletivos poéticos e contextos sociais alternativos. Segundo os investigadores envolvidos, a resistência não era apenas temática ou política: era formal, cultural, institucional — uma resistência à forma como se legitima e consome a poesia em Portugal.

Paralelamente, a Oficina de Poesia, também sediada na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tem desempenhado desde 1996 um papel fundamental na criação de espaços de experimentação e partilha. Através de workshops, publicações e encontros, a Oficina propõe um modelo de prática poética que rompe com a rigidez académica e valoriza a expressão subjetiva, a oralidade e a ligação entre poesia e vida quotidiana. Mais do que formar “poetas”, forma leitores ativos, agentes críticos e criadores de comunidade.

Estas experiências revelam que, enquanto a crítica se mantém ocupada com os grandes nomes, há uma outra tradição — como lhe chamou Marjorie Perloff — em formação contínua. Trata-se de uma tradição não institucional, onde a poesia não se mede por prémios ou programas de estudo, mas pela sua capacidade de tocar, transformar e resistir. Muitas destas vozes marginais (como Ana Deus, Luís Filipe Cristóvão, Inês Dias, entre outros) têm criado obras inovadoras, com impacto em circuitos independentes, mas continuam fora dos horizontes da crítica académica.

A ausência de diálogo entre estes dois mundos — o da crítica institucional e o da criação marginal — empobrece ambos. A poesia precisa de ser lida, discutida, inserida em redes de reconhecimento; a crítica, por sua vez, precisa de se rejuvenescer, abrir-se ao desconhecido, àquilo que ainda não sabe classificar. Nas margens pulsa o novo — e é esse pulsar que faz avançar a arte.

  1. A outra tradição: caminhos teóricos para além do cânone

O conceito de “outra tradição” tem sido mobilizado por teóricos contemporâneos da poesia para nomear aquilo que se escreve fora dos eixos legitimadores tradicionais — e, por isso mesmo, o que mais intensamente desafia e renova a linguagem poética. Marjorie Perloff, uma das mais influentes vozes da crítica moderna, defende que há uma “poesia do risco” que não se inscreve nas fórmulas da lírica confessional nem nos moldes clássicos da tradição ocidental. Esta poesia, muitas vezes marginalizada, seria, segundo a autora, o verdadeiro espaço onde a literatura se reinventa.

Charles Bernstein, cofundador do movimento norte-americano da Language Poetry, vai mais longe ao afirmar que “a tradição é aquilo que se recusa a ser nomeado como tal”. Ou seja, a verdadeira tradição é sempre subversiva, descontínua, crítica da norma — e, nesse sentido, incompatível com os processos de canonização passiva que muitas academias promovem. A crítica, segundo Bernstein, deve estar atenta às formas de resistência formal: ao experimentalismo, à intertextualidade desobediente, à escrita como gesto simultaneamente político e poético.

Em Portugal, esta “outra tradição” encontra ecos nos estudos de Cristina Néry Monteiro, que se debruça sobre o papel das revistas literárias como espaços de resistência para as poetas mulheres. Ao estudar revistas como Ítaca, Palavra, Relâmpago ou DiVersos, Monteiro conclui que estas publicações funcionam não só como alternativa editorial, mas como verdadeira contra esfera crítica, onde se dá voz ao que está fora da norma: formas híbridas, poesia feminista, escrita experimental, intersecções entre arte e política. A sua análise revela como estas revistas se tornam “lugares de fala” num país onde a crítica académica ainda hesita em lidar com o que escapa à tradição masculina, urbana e centralizadora da poesia portuguesa.

Esta tradição alternativa, ainda que fragmentária e dispersa, partilha um princípio comum: a recusa da homogeneidade. A sua poética emerge do cruzamento entre linguagens, da oralidade, do corpo, da performance, da política, da margem — não como vitimização, mas como estratégia estética e epistemológica. O que está em causa não é apenas a forma como se escreve poesia, mas a forma como se concebe a própria literatura, os seus lugares de produção, circulação e legitimação.

Ignorar esta “outra tradição” não é apenas um erro crítico: é um gesto de exclusão cultural. É impedir que a literatura portuguesa dialogue com o seu tempo e com as suas múltiplas vozes. E, talvez mais gravemente, é bloquear a possibilidade de que a poesia portuguesa contemporânea se projete internacionalmente com a força transformadora que a distingue.

  1. Consequências da estagnação crítica: o Nobel ausente

Portugal, país de riquíssima tradição poética, nunca viu um dos seus poetas ser laureado com o Prémio Nobel da Literatura. A ausência torna-se ainda mais expressiva se compararmos com países de menor dimensão literária internacional, mas que souberam projetar autores contemporâneos através de redes críticas, políticas editoriais e estratégias culturais atentas ao tempo presente. A questão não é de qualidade — pois abundam, entre nós, poetas de excecional mérito —, mas de visibilidade e de renovação dos mecanismos de consagração.

A estagnação crítica, alimentada por uma academia que prefere reverenciar o passado a descobrir o presente, contribui de forma direta para esta invisibilidade. Sem crítica ousada, sem redes de internacionalização bem estruturadas, sem renovação dos cânones de leitura e estudo, a poesia portuguesa torna-se um património encerrado em si mesmo. Paradoxalmente, quanto mais se celebra a excelência do que foi, menos se promove o que está a ser. O culto dos grandes mortos torna-se uma espécie de sombra sobre os vivos.

O caso de Herberto Hélder é ilustrativo. Aclamado como o maior poeta português da segunda metade do século XX, Hélder recusou prémios e exposição mediática — mas foi, também, vítima de uma crítica que nunca soube ou quis internacionalizá-lo de modo sistemático. A sua consagração plena foi póstuma, e mesmo assim, limitada ao circuito lusófono. Já nomes como Eugénio de Andrade ou Sophia de Mello Breyner, mais traduzidos, não tiveram o apoio crítico e institucional sustentado necessário para que pudessem figurar entre os grandes candidatos a um Nobel — como aconteceu com autores espanhóis ou escandinavos, cujas academias e Estados investiram fortemente na promoção cultural.

A responsabilidade é partilhada: das instituições académicas, das editoras, das estruturas culturais do Estado. Enquanto não se construírem dispositivos de legitimação que incluam as vozes emergentes — com espaço para diversidade estética, descentralização geográfica e abertura formal — Portugal continuará a celebrar os seus poetas no interior de um espelho, sem que a sua poesia atravesse fronteiras.

O Nobel não é, por si só, um fim. Mas é um símbolo poderoso do reconhecimento de uma literatura viva, plural, atenta ao mundo. A ausência portuguesa não denuncia a falta de valor da sua poesia — denuncia, sim, a inércia de um sistema literário que falha em reconhecer e projetar o novo, o inquietante, o que está por vir.

Conclusão

A poesia portuguesa vive, hoje, um paradoxo: ao mesmo tempo que se reconhece a sua riqueza histórica e simbólica, negligencia-se o presente em que ela verdadeiramente respira. O apego institucional ao cânone, reforçado por uma academia conservadora e por estruturas culturais pouco permeáveis à inovação, bloqueia o surgimento de novas vozes no espaço de legitimidade crítica. Como consequência, aquilo que poderia ser um tempo de reinvenção poética transforma-se num ciclo de repetição e apagamento.

A ausência de um Prémio Nobel para a poesia portuguesa não é sintoma de inferioridade literária, mas antes de uma falha coletiva na forma como se escuta, se promove e se internacionaliza a criação contemporânea. A estagnação crítica, o medo do risco, os comodismos da consagração acumulada impedem a literatura de cumprir o seu papel mais nobre: o de ser espelho e vanguarda da condição humana.

É tempo de inverter este ciclo. A crítica precisa de se reaproximar da criação. A universidade deve abrir as suas portas às linguagens do agora. As instituições culturais têm de perceber que o futuro da literatura portuguesa não se constrói apenas com arquivos, mas com escuta, coragem e abertura.

Promover os novos poetas não é um ato de caridade estética — é um investimento na vitalidade da língua, no lugar de Portugal no mundo e, acima de tudo, na dignidade criativa de uma geração que escreve não para repetir o que já foi dito, mas para dizer o que ainda não teve nome.

Referências

Alves, I. F. (2019). Revistas de poesia contemporânea em Portugal: entre o cânone e a margem. Revista Portuguesa de Literatura Contemporânea, 12(3), 45–68.
Capinha, G. (Org.). (2007-2011). Novas poéticas de resistência. Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra.
Hélder, A. R. (2010). Herberto Hélder: Biografia e obra (A. Ramos Rosa, Autor). Editorial Letras.
Monteiro, C. N. (2015). Revistas literárias e a afirmação da voz dos poetas mulheres em Portugal. Revista de Estudos Literários, 8(2), 102–120.
Perloff, M. (1981). The poetics of indeterminacy: Rimbaud to Cage. Northwestern University Press.
Bernstein, C. (1998). Close listening: Poetry and the performed word. Oxford University Press.
Mexia, P. (2018). A poesia hoje: Crítica e reflexão. Lisboa: Edições Culturais.
Deus, A. (2017). Vozes da margem: Entrevistas e perspetivas na poesia contemporânea portuguesa. Revista Digital de Literatura, 4(1), 23–37.

C. A. Afonso

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César Alexandre Afonso nasceu em Vinhais, em 1962, é Licenciado em Psicologia Clínica, Psicodramatista pela Sociedade Portuguesa de Psicodrama, Especialista em Comportamento Desviante e Ciências Forenses pelas Universidades de Medicina de Lisboa e Porto. Professor Convidado do ISCSP e ISPA. É autor diversos livros de Poesia e Romance desde 1982, sócio da SPA. Sócio fundador da Academia de Letras de Trás-os-Montes, Membro da Academia de Letras e Artes de Portugal.

MUNDOS DAQUI E D´ALÉM (III). O VASO PRECIOSO MUITO VALIOSO – por Adelina Andrês

 

MUNDOS DAQUI E D´ALÉM (III). O VASO PRECIOSO MUITO VALIOSO (I)

O VASO PRECIOSO MUITO VALIOSO

(Primeira Parte)

Às vezes a Lua, lá no céu, não se vê logo porque é nova. É Lua nova não se vê. Mas está lá na sua límpida invisível transparência. Veem-se as estrelas tantas tantas longe tão longe e algumas tão mais longe e tão mais longe ainda que são só pequenos pontinhos pequeninos de luz que se sabe forte a luzir a tremeluzir a brilhar. E algumas outras são de tão mais longe ainda que só sabemos que lá estão, e pronto. Porque estão tão mais longe e mais longe ainda e ainda e ainda que só se pode é acreditar. E pronto! São como a Lua nova. Não se vê, e está lá, e acredita-se! E pronto. Continuar a ler “MUNDOS DAQUI E D´ALÉM (III). O VASO PRECIOSO MUITO VALIOSO – por Adelina Andrês”

DA VIDA QUE A MORTE OCULTA – por Artur Manso

Em memória de Eduardo Alves Ribeiro (1956-2025)

                             O justo, ainda que morra cedo, terá repouso. Velhice venerável não é longevidade, nem é medida pelo número de anos.

Liv. Sabedoria, 4: 7-8

                            Talvez um indivíduo deva considerar que a sua própria morte é o último fenómeno da natureza.

                         Stephen Crane

É comum no espaço onde me movo discutir a minha crença/fé a partir da religião judaico-cristã, onde fui educado, assumindo me mais cristão que católico, à maneira do tolerante e liberal J. J. Rousseau. Assim sendo, para que não restem dúvidas sobre o assunto que irei tratar, a vida e a morte que já desenvolvi no ensaio Breve é toda a vida. Para uma pedagogia da morte e do morrer (2021), começo com as belas palavras de Paulo, ainda em vida, mas com a morte no horizonte: “Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé. Desde agora, a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor, justo juiz, me dará naquele dia; e não somente a mim, mas também a todos os que amarem a sua vinda”. 2 Timóteo, 4:7-8. Na Apologia de Sócrates, quando o mestre ateniense procura refutar as acusações de que é alvo, na sua demanda pela verdade e justiça já tinha afirmado, também, que tal compromisso resultava das ordens que tinha recebido do Deus. Portanto na excecionalidade de muitas personalidades, a evocação de um Deus, ou deuses, como supremo ordenador daquilo que é dado à existência, é algo que se repete com frequência. A troca de ideias mais viva surge sempre em torno das questões-limite, nomeadamente a morte e como o Criador, se for esse o termo adequado, parece ser cruel ao consentir que as crianças sofram e morram e que uma boa parte das mortes precoces, caso isso seja termo adequado, envolvam seres humanos realmente bons, daqueles que acrescentam luz à luz, que têm o dom de iluminar a escuridão. Continuar a ler “DA VIDA QUE A MORTE OCULTA – por Artur Manso”

O INVISÍVEL E O ABSOLUTO EM GUERRA JUNQUEIRO – por Alexandre Teixeira Mendes

O INVISÍVEL E O ABSOLUTO EM GUERRA JUNQUEIRO

– Sobre a edição de Joaquim Domingues de Escritos Espirituais

JUNQUEIRO, GUERRA (2025) ENSAIOS ESPIRITUAIS.

Muitas são as razões que tornam compreensível a organização e edição por Joaquim Domingues de Guerra Junqueiro Ensaios Espirituais – Notas à margem de uma filosofia, 2025. Graças à compilação de escritos inéditos do autor da Velhice do Padre Eterno – que datam de 1890-1904 – e textos afins – mas congeminações esboçadas que são simultaneamente anotações provisórias ou imperfeitas – embrionárias – de significação (in) consistente – permitem-nos hoje apreender melhor o seu percurso metafísico-espiritual e em que o sagrado (“tremendum”) e o divino ou a mística – a ágape – afiguram-se como temas centrais – subjacentes – da sua doutrina. Será possível compreender a sua obra – especulativa a ajuntar à poesia e até ao fim da vida – como o corolário “plenificante” de um processo intelectual e interior (autocontraditório) – do tipo subjectivo-existencial ou procedimental heterodoxo? Parece-nos, portanto, que o seu ultravoltaireanismo ou o vítor-hugismo na sua juventude não é menos importante que o franciscanismo final vazada numa cosmovisão “orante”. Não pretendemos discutir aqui as influências culturais – como ponto de passagem – o ser-em ou estar-em – que se revestiram de carácter episódico ou ocasional e que lhe serviram de modelo para o pensamento e para a acção. A ideologia do progressismo modernizante ou conservador – republicano – liberal-democrático – não pode ser dissociado do panfletarismo discursivo-poético – arbitrário – benéfico ou maléfico – muito corrente no seu tempo – à altura da história e da imediatidade revolucionária – plásticamente presente nos seus versos – sendo necessário ou desejável questionar nessa conexão os leitmotiv – mas, antes, chamar a atenção para o discurso filosófico – em seus próprios termos – na convicção da centralidade de uma fé religiosa ou filosófica – da ética ou de um universalismo moral judaico-cristão – insistindo, por exemplo, no amor do próximo e da natureza e, portanto, na continuidade de uma atenção ao amor divino e gravitação em torno de Emanuel (que traduzido significa “Deus connosco” Mt. 1:23). Como quer que se descreva o vértice da síntese junqueiriana privilegiada – poetizada – une-se, outrossim, a um pendor religioso e espiritual – até aos seus últimos redutos – converte-se estruturalmente num hino querigmático (categórico-soteriológico) ou num dizer ou numa escrita paraclética (ver a introdução de J. Pinharanda Gomes “A Oração Cristo-Cósmica de Guerra Junqueiro”, in Guerra Junqueiro, Oração ao Pão. Oração à Luz (Lello ed., 1997). Mas na poética de Guerra Junqueiro – tão digna de substância metafísica – convivem (explicitamente) as retóricas radicais e as ideias contrárias e contraditórias. Na predileção das compulsões estético-literárias fundacionais ou consubstanciais ao anti-clericalismo – temático-epocal – cristalizadas em alguns dos seus poemas maiores – e inerente às definições doutrinais e outras fórmulas conceptuais ao modo de Renan e de toda a literatura francesa do século XIX – na paternidade das revoluções e da propaganda – mostra-se curiosamente – e se fortalece – na sua fase final – enquanto auto-exibição do absoluto – a cristologia. Continuar a ler “O INVISÍVEL E O ABSOLUTO EM GUERRA JUNQUEIRO – por Alexandre Teixeira Mendes”

Athena Revisitada IV – Ricardo Amorim Pereira

Nesta Edição,  convido-vos a reler o Editorial da Edição nº23, escrito por Ricardo Amorim Pereira. Aconteceu AQUI

A Inteligência Artificial e suas repercussões no mercado de trabalho

Um horário laboral para o século XXI

O ano de 2022 ficará para a História como tendo sido aquele em que, pela primeira vez, um sistema de inteligência artificial entra na vida quotidiana do cidadão comum. Em novembro desse ano, a empresa OpenAI lança o já famoso ChatGPT, facto acompanhado por outros serviços semelhantes, entretanto, lançados. Assim, e num ápice, a Humanidade apercebe-se do seu real estádio de desenvolvimento, provavelmente bem superior ao que se conjeturava.

Enquanto uns vão ascendendo a um céu de felicidades, esta revolução leva outros a se petrificarem com receios. Entre os principais motivos de preocupação apontados está o impacto que tais tecnologias poderão vir a causar no mercado de trabalho, havendo quem garanta que, num prazo não muito distante, uma grande percentagem das atuais profissões poderá vir, total ou parcialmente, a desaparecer. Continuar a ler “Athena Revisitada IV – Ricardo Amorim Pereira”

TRÊS POEMAS – por A. Dasilva O.

O caso português

Somos um povo
com um nó na garganta
quando pega em armas
é para se suicidar

♣♣♣

O caminho da água das pedras

Tudo começou com um amor à primeira vista
trocado entre Eva e Adão numa casa de pasto
Tasco do Paraíso numa noite de fado vadio

Abraçados entre juras de amor impossível
foram para o ninho de amor fazer o Livro
Às cinco pancadas
Numa guilhotina

♣♣♣

Um papagaio refractário

Tirei o assassino que há em mim
ao sol pendurei-o com uma corda ao pescoço
de tão contente
começou a declamar

No alto da ignorância
Sou uma criança
Lucida

♦♦♦

a. dasilva o., 1958, poeta e editor em extinção. Da vasta obra, basta destacar as publicações: Poeta bom é poeta morto-vivo, Ed. Mortas, 2020; Canção Inóspita, Eufeme, 2020; FOIOQUEUDISSE; Diários Falsos de Fernando Pessoa, Ed. Mortas, 1998; Correspondência Amorosa Entre Salazar e Marilyn Monroe, Ed. Mortas, 1997. Criou e editou várias revistas como: Arte Neo e a revista Filha da Puta. Criou e realizou em dose dupla As Conferências do Inferno; Os Encontros com o Maldito em colaboração com o grupo de teatro Contracena. Co-fundou e dirigiu a Rádio Caos onde realizou entre outros programas: A. Dasilva O. Fala ao País. Edita actualmente a revista Estúpida.

ALGUMAS NOTAS SOBRE POESIA – por Celso Gomes

Certa feita, tomando um café no Odeon na Cinelândia, comprei um opúsculo de um poeta que passou vendendo seus livros artesanais. Em casa, li o pequeno caderno de poemas: um amontoado de versos malfeitos e sem sentido, mas bastante sinceros.

Aliás, é preciso acrescentar que todo poema medíocre é extremamente sincero e que toda grande poesia possui um fundo irredutível de falsificação, de mentiras, de astúcia. Faltava ao autor saber que poesia não é ornamentar a palavra, mas subtrair dela, de espremer dela, o seu maior silêncio. Ao final do livro, perguntei-me: porque falar tanto de si mesmo se nada foi perguntado? Depois, fiquei pensando acerca dos motivos que levam um sujeito a escrever versos, publicá-los e sair pelas ruas a vendê-los. Obviamente, não cheguei a nenhuma conclusão, apenas a algumas reflexões: Continuar a ler “ALGUMAS NOTAS SOBRE POESIA – por Celso Gomes”

RESEÑA A LIVRO DE ZLATAN STIPISIC – por Claudia Vila Molina

 

Reseña crítica a

Banderas de un imperio hundido

ZASTAVE POTONULOG CARSTV

de Zlatan Stipišić (GIBONNI) 

El poemario Banderas de un imperio hundido del cantautor y poeta croata Zlatan Stipišić (GIBONNI) del año 2024 y publicado por la prestigiosa editorial puerto riqueña Isla negra está compuesto por poemas en croata, con traducciones al español e inglés. En principio, el título encierra numerosos rasgos entrelazados con la vida, Dios, la fe, el amor de pareja, la familia, entre otros; aunque, estos conceptos son vulnerables al quiebre y al rompimiento en la voz de cada poema. Continuar a ler “RESEÑA A LIVRO DE ZLATAN STIPISIC – por Claudia Vila Molina”

DE BEM COM A (SUA) MÚSICA – por Danyel Guerra

NOTA PRÉVIA

Há décadas que a vida artística de Ângela Ro Ro pairava no perigeu, cada vez mais afastada do apogeu dos anos 80 e 90. Uma década atrás, ela ainda tentava superar a a fase de quarto minguante, buscando o usufruto de um novilúnio. Todavia, este mês de setembro, sua lua se precipitou na escuridão do eclipse total. No passado dia 8, a menina rebelde da MPB não resistiu a uma infecção pulmonar. Em eclipse perpétuo não ficará, todavia, o precioso reportório registrado ao longo de 46 anos de carreira. Esse patrimônio cultural da música brasileira
prosseguirá brilhando num perene plenilúnio. Ro Ro continuará aprontando, causando escândalo para alegria, alegria de milhões de fãs.

Angela Ro Ro

 

O sândalo perfuma o machado que o golpeia
                                                  Buda.

 

“Agora, finalmente, estou feliz da vida.” Vai para uma dúzia de anos disquei um nº de fone e do outro lado do fio escutei o afável alô de uma aloprada menina do Rio. Acendendo na fala um halo verde esperança, a mina trauteou Feliz da Vida. .“Pra que fugir de ser feliz da vida” Nesse ensejo, uma lua nova parecia estar despontando no seu firmamento artístico. O regresso ao plenilúnio dos anos 70 e 80 não seria uma ideia extravagante. O esplêndido talento de intérprete continuava vigoroso. Talento que sempre soube se aliar à exímia pulsão inventiva da compositora. Desde os alvores, esse binômio se mostrou ágil na proposta de uma praxis capaz de harmonizar numa fusão melódica a MPB com as simpatias e empatias pelo jazz e pelo blues. Continuar a ler “DE BEM COM A (SUA) MÚSICA – por Danyel Guerra”

VOTAR É UM DIREITO E UM DEVER -por Fernando Martinho Guimarães

Este ano de 2025 é eleitoralmente cheio. Tivemos as eleições legislativas nacionais, as da Região Autónoma da Madeira e teremos as eleições autárquicas.

O eleitorado é convocado a escolher entre diferentes projectos e propostas político-partidárias. Esta escolha é feita, como sabemos, através do voto. Os cidadãos têm a oportunidade de, democraticamente, eleger os seus representantes para os órgãos locais, regionais, nacionais e europeus. Continuar a ler “VOTAR É UM DIREITO E UM DEVER -por Fernando Martinho Guimarães”

20 DE DEZEMBRO DE 1975- por Francisco Fuchs

 

Yvonne Daumerie (fevereiro de 1927)

Para Yvonne Daumerie

Retornei à Guanabara em meados de 1971, pouco antes de completar dez anos de idade, pois Alípio Ramos, o homem que se tornou meu pai, levou-me para morar com ele quando perdi minha mãe. Foi então que conheci sua esposa, Dona Yvonne, que passei a chamar de madrinha, e a mãe dela, Madame Jeanne, que viria a falecer quase nonagenária. Fui alojado no quarto junto à escada. Nele havia, a um lado, uma varanda com duas poltronas brancas de ferro e um pequeno cômodo anexo onde livros assentavam em brancas estantes de madeira; do lado oposto, dois degraus conduziam a um minúsculo lavabo. Da varanda enxergava-se um bom pedaço do Aterro e do mar, vista que foi minguando até desaparecer por completo atrás dos edifícios que o milagre econômico foi erguendo na praia do Flamengo. Continuar a ler “20 DE DEZEMBRO DE 1975- por Francisco Fuchs”

(….) A LUTA DO MRPP – por Francisco Coutinho

18 de Setembro de 1970.
- Atritos, confrontos, rupturas.
E todos aqueles que se orgulham por terem feito a luta do MRPP

O dia 18 de Setembro de 1970 – em que Vidaúl Ferreira, João Machado, Fernando Rosas e Arnaldo Matos iniciaram a reunião na qual estudaram a construção de um partido operário -, constitui a data da fundação do peculiar Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado, que em 1976 originou – a 26 de Dezembro, dia de aniversário de Mao Tsé-Tung – o Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses (PCTP/MRPP).

Um movimento gerado sem sair do solo lusitano – composto pela EDE, por operários da margem norte do rio Tejo e pela RPAC -, em pleno combate pelo derrubamento do Estado Novo, pelo cessar da guerra nas então colónias portuguesas no continente africano e pela independência das mesmas, numa oposição permanente à corrente pró-URSS.

São muitos aqueles que, sob os pseudónimos, desenvolveram o gosto pela escrita através do “Luta Popular” – o órgão central, várias vezes multado e inclusivamente proibido.

Há quem continue na rotina do partido. Imensos são os militantes que se foram afastando dela e passando a independentes, conforme temos na nossa família. Há também os que foram aderindo a outros partidos – como o PS, o PPD/PSD e o PRD -, algo comummente condenado por sectaristas. Fernando Rosas, muitos anos depois, foi também co-fundador do BE, onde se mantém. E outros ex-membros formaram a UMLP. São diversas as acções cívicas e sociais às quais estão vinculados. A maioria, em qualquer circunstância, continua envaidecida ao partilhar numerosas e preciosas memórias (em sessões públicas, nos livros, nas revistas e nos jornais), sobre madrugadas a colar cartazes secretamente e a pintar deslumbrantes murais, que junta aos dias de forte porrada com grupos afectos ao social-fascismo e ao marcellismo / salazarismo.  E tanto que houve mais.

Talvez a história de um encantador partido seja tudo menos merecedora de sujidade. No entanto, existiu e em momentos diversos.

Foi este uma escola de mulheres e de homens – muitos inscritos, outros simpatizantes – cujas actividades passam no plano mediático (no meio dos quais podemos encontrar Adelaide Teixeira, Ana Gomes, Aurora Rodrigues, Diana Andringa, Dulce Rocha, Maria João Rodrigues, Maria José Morgado, Violante Matos, Martins Soares, João Isidro, Freire Antunes, Saldanha Sanches, João Araújo, Mega Ferreira, António Melão, Danilo Matos, Horácio Crespo, José Lamego, Vítor Ramalho). Continuar a ler “(….) A LUTA DO MRPP – por Francisco Coutinho”

A SÍNDROME DE MNEMOSINE (…….) NA ERA DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL – por José Paulo Santos

Mnemosine, a deusa da memória

A SÍNDROME DE MNEMOSINE — UMA NOVA ENTIDADE PSICOLÓGICA NA ERA DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Introdução

O homem é um ser que esquece.
— Paul Ricoeur

Na mitologia grega, Mnemosine, mãe das Musas, era a personificação da memória, uma força criadora e ordenadora do saber humano. Hoje, assistimos ao seu desdobramento tecnológico: a Inteligência Artificial (IA) tornou-se o novo repositório coletivo da memória humana. Mas essa exteriorização não é neutra. Ela está a transformar profundamente a forma como pensamos, sentimos, aprendemos e nos relacionamos connosco mesmos. Surge assim um novo fenómeno social emergente: a Síndrome de Mnemosine.

Trata-se de um distúrbio psicológico e cultural caracterizado pela substituição crescente da memória, do pensamento crítico e da criatividade humana por ferramentas de IA, resultando numa perda progressiva de autonomia intelectual e identidade epistémica. Este ensaio propõe a criação dessa nova entidade clínica, apoiada em investigações nas neurociências, psicologia cognitiva, filosofia da tecnologia e estudos educativos. Explora-se ainda o impacto desta síndrome nos jovens, na educação e no desenvolvimento cognitivo-emocional.

I. As Raízes Míticas e Filosóficas: Mnemosine como Fonte de Conhecimento e Identidade

Na tradição helénica, a memória não era apenas a capacidade de recordar eventos passados. Era o fundamento da identidade pessoal, da sabedoria e da cultura. Como escreveu Platão na Mênon, a alma humana teria acesso a verdades imutáveis através da anamnese, ou seja, da recordação. Esta visão sugere que a memória é um ato consciente, dinâmico e constitutivo do Eu. Continuar a ler “A SÍNDROME DE MNEMOSINE (…….) NA ERA DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL – por José Paulo Santos”

UMA NUANCE NAS NÓDOAS VIII – por Lúcio Valium

 

ESCOVA

Ia em vários anos de ofícios quando resolvi dedicar-me à construção de pequenos barcos. Mas nunca soube navegar. Embora tenha conversado algumas vezes com o diabo ele navegador batido não me transmitiu segredos. Fiquei entregue à minha papelada. Conheci muitos que incorporaram os preceitos negociais. Foram bons clientes de deus. Que hei-de fazer pergunto-me atónito. Talvez seja melhor aprender a fazer remendos. A questão é que eu ainda estava vivo. Mas tinha um certo asco a tarefas enclausuradas. Não quer dizer que fosse muito teimoso. Nunca pedi que me ensinassem piano. Também sei que fui eu quem foi embora. Havia uma certa curiosidade. E pensava no que seria um ser liberto andar à procura de conhecimento. Naquela altura eu já precisava de tempo e uma janela chegava para ouvir a noite.

Andava nestes passos mentais quando esbarro com o do 24 junto à biblioteca. Trazia livros que lhe escorregaram das mãos. Ao apanhá-los tentou esconder os títulos. Mas pude ler um título Rapsódia e Miniaturas. Convidou-me para um galão. Estava frio e era bom uma bebida quente. Fomos ao Café Cavalo Negro. Bebeu devagar e em silêncio. Depois pediu dois brandes. Ler é um ato complexo afirmou em seguida. Pense em tudo que contêm os livros. Se soubermos procurar podemos encontrar coisas preciosas. Mas a vida, a vida é o mais importante. Contudo o cérebro pede-me leitura. É um alimento um remédio. Liga linhas perdidas para fazer o assombro de uma voz. Continuámos a beber noite dento. Quando cheguei dormias com a luz acesa. Sobre a mesa de cabeceira estava o mesmo título que vi nas mãos do gajo do 24. Deitei-me e abracei-te. Ouvia-te dormir. Sentia o calor da tua pele a deliciar-me a noite. Continuar a ler “UMA NUANCE NAS NÓDOAS VIII – por Lúcio Valium”

TRÊS POEMAS INÉDITOS – por Manoel Tavares Rodrigues-Leal (1941-2016)

Um poema inédito do caderno A Noite (1967)

meus olhos doem
de rua
do conceitual sucessivo anoitecer
recuam
de dúvida ou tempo
que não muda
movimento de ser ao sabor do
quarto
emigração de forte luz
entre os dedos
apontados fixados
num braço
apenas contacto
pela noite entro
na loucura de dentro

Lx. 25/7/67
(Coligido por Luís de Barreiros Tavares) Continuar a ler “TRÊS POEMAS INÉDITOS – por Manoel Tavares Rodrigues-Leal (1941-2016)”

TECNOLOGIA, EDUCAÇÃO E DEMOCRACIA – por João Pedro Vidal

Hoje em dia, muita gente acha que sabe muito sobre o mundo e sobre as coisas só porque vê coisas nas redes sociais. É nelas que se concentra um dos maiores fluxos de comunicação e disseminação de informação, o que é fantástico, mas também aterrador. Aquele hábito de pesquisar ativamente, que se verificava nos primeiros tempos da internet, praticamente desapareceu. Em vez disso, a internet tornou-se um espaço de consumo, onde os utilizadores consomem só o que os algoritmos decidem mostrar. Muitas vezes, sem se aperceberem, cedem a autoridade sobre o que é verdadeiro ou relevante ao que aparece no ecrã. Agora, é normal as pessoas terem uma opinião, por mais disparatada que seja. Toda a gente se sente confiante para dar a sua opinião. O problema surge quando aquilo que deveria ser encarado como uma opinião pessoal e subjetiva, como um saber informal ao que os gregos chamavam doxa, é agora adotado como conhecimento rigoroso, verdadeiro e objetivo. Esta distorção séria do conhecimento ganha força numa época em que a verdade é cada vez mais relativa. Vivemos tempos em que a objetividade está a ser destruída pela tirania narcisista da subjetividade. Antigamente, as pessoas debatiam de forma racional, mas agora parece que só interessa o barulho. A opinião de um influencer parece valer mais do que a de um perito, não porque é mais verdadeira, mas porque chega a mais pessoas. Neste novo sistema, o valor de uma opinião não depende de ser coerente ou adequada à realidade, mas da capacidade dissuasora do comunicador. Continuar a ler “TECNOLOGIA, EDUCAÇÃO E DEMOCRACIA – por João Pedro Vidal”

O PROBLEMA DAS ILHAS DE CALOR URBANAS – por Ricardo Amorim Pereira

O Aumento do Albedo Urbano como Estratégia de Mitigação das Ilhas de Calor em Portugal

As cidades, enquanto espaços de concentração de população, de atividades económicas e de inovação, enfrentam um dos fenómenos ambientais mais preocupantes da atualidade: as ilhas de calor urbanas (ICU). Este termo designa a diferença térmica registada entre as áreas urbanizadas e as zonas rurais circundantes, geralmente mais frescas. Embora a urbanização traga inúmeros benefícios em termos de desenvolvimento económico e social, a sua forma de expansão e os materiais utilizados no ambiente construído acabam por gerar um desequilíbrio térmico que apresenta implicações profundas no ambiente, na saúde e no consumo energético. Continuar a ler “O PROBLEMA DAS ILHAS DE CALOR URBANAS – por Ricardo Amorim Pereira”

FICHA TÉCNICA DA EDIÇAO 32/ JUNHO 2025

 

EDIÇÃO E PROPRIEDADE: Pencil Box – Multimédia, Ldª-

 ISSN 2184-0709

DIRECÇÃO: Júlia Moura Lopes

DIRECTOR ADJUNTO – Artur Manso

Logótipo e SEO : David Fernandes

Email: revista.athena2017@athena

Paginação Web: Júlia Moura Lopes

Apoio Web: David Fernandes e Luís Guerra e Paz

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COLABORARAM NA EDIÇÃO Nº 32

JUNHO DE 2025

CAPA  – Force Amour Rage (c.1915-1916)  de Amadeo de Souza-Cardoso
EDITORIAL :  “DA ADOLESCENCIA E DA JUVENTUDE” POR ARTUR MANSO.
COLABORARAM:

Adelina Andrès, Artur Manso, Cecília Barreira, Claudia Vila Molina, Danyel Guerra, Fernando Martinho Guimarães, Filipe Duarte de Paula, Francisco Fuchs,  Henrique Miguel Carvalho, Idalina Correia Da Silva, Jaime Vaz Brasil, José Paulo Santos, Jefferson de Oliveira, Lucio Valium, Luis Fausto, Manuel Igreja Cardoso, Marianela Tiranti Gattino, Moisés Cárdenas, Ricardo Amorim Ferreira, Robert Miller,  Sandra Guerreiro, Vinicius Comoti.

DA ADOLESCÊNCIA E DA JUVENTUDE – EDITORIAL POR ARTUR MANSO

DA ADOLESCÊNCIA E DA JUVENTUDE. EQUIVOCOS E OMISSÕES

Recentemente ocorreram quatro episódios sobre a vida dos adolescentes a iniciar a juventude, que alarmaram os frequentadores das redes sociais e consumidores de séries, o novo entretenimento de quase todos. Falo de Adolescence (2025), Adolescência em português, dos criadores Jack Thorne e  Stephen Graham, e realização de Philip Barantini. O enredo gira em torno de Jamie Miller (Owen Cooper), um estudante inglês de 13 anos que é preso por ter assassinado uma colega da escola. A trama, só por si, não traz nada de novo porque jovens assassinos de seres humanos da mesma idade ou de idades diferentes, são constantes ao longo da história da humanidade: no passado, no presente e no agora. Nos primórdios da internet tal como a conhecemos, e ainda longe das redes socias, mesmo que em contexto diverso, já tinha sido adaptado ao cinema (1990) o romance ficcional de William Golding, O deus das moscas (1954), onde é descrito, o inaudito grau de crueldade entre os jovens em situação limite. Entre outros exercícios cinéfilos, veja-se também o filme de Hector Babenco, Pixote, a lei do mais fraco (1980) onde se pode conferir todo o tipo de violência dos mais jovens, mas essencialmente, um quotidiano dentro dos centros educativos juvenis onde a violência física e verbal entre todos, as crianças e jovens que deveriam ser cuidadas, e os cuidadores descuidados, onde apenas vigora a lei do mais forte, no confronto constante físico e verbal, com mortes à mistura, de uns e outros: os que devem ser educados e aqueles que deveriam educar. Estranhamente este ambiente que era tolerado nos centros de reinserção juvenil, migrou, como se observa na referida série, para o ensino universal e obrigatório, sendo agora quase normal em qualquer escola, de qualquer ciclo, em qualquer lugar. Portanto, a nova realidade sob o signo da internet e redes sociais, e os grupos que por aí pululam para levar os jovens instáveis a abraçar ideários extremistas e anti humanos é só mais um passo na concreção da maldade inerente à comunidade humana. Estes movimentos seguem na linha de outros igualmente perversos e violentos ligados a organizações sociais e religiosas de culturas ocidentais e não ocidentais, que também foram bem sucedidos no recrutamento de fieis às suas causas sem o recurso ao ciberespaço. Para nos situarmos, convém, portanto, referir que a crise da sociedade e da escola que a integra já não é de agora, apenas as circunstâncias mudaram, nada mais. O que se segue é a posição sobre o tema de quem há mais de 50 anos se dedica a aprender e a ensinar.

O que há, de novo, na adolescência e na juventude num mundo global onde a violência está presente no quotidiano de cada um, nas notícias, nos écrans, na família, no bairro e agora na internet com expoente máximo nas redes sociais? A que se deve tanta histeria acerca dos impulsos mais básicos dos seres humanos? Precisou o mundo ocidental de ver uma infeliz trivialidade, que sendo um comportamento limite, se repete em todos os tempos e lugares, para questionar a evolução tecnológica e o pouco sentido que se encontra nas comunidades escolares? Talvez sim, porque se estes comportamentos não são novos, o facto de agora, quando ocorrem, envolverem adolescentes e jovens em idade escolar exageradamente obrigatória até aos 18 anos ou aí perto, é recente.

A ser assim, convém esclarecer alguns equívocos que se prendem com os padrões ocidentais de educação e do conceito que se passou a fazer da adolescência e juventude que nunca foram bem entendidos e agora encontram-se sobrevalorizados. As crianças, os jovens e os adultos são, por natureza, egoístas, interesseiros e egocêntricos. A diferença está que na situação de adultos, cada ser humano pensa naquilo que diz e faz, antecipando as consequências, enquanto as crianças e os jovens agem emotivamente, sem se preocuparem com o desfecho dos seus atos que em idades mais precoces, nem sequer estão em condições de avaliar. Era bom que as crianças fossem os seres puros e simples tal como são apresentadas desde os textos bíblicos “deixai vir a mim as criancinhas porque delas é o reino dos céus” (Mateus, 19, 14) ou a criança como protótipo do bom selvagem que Rousseau (1712-1778) elogia. No primeiro caso Novalis esclarece que a criança dos Evangelhos não é a criança mimada dos tempos modernos, os pequenos tiranos, mas que aí se apresenta o espírito indistinto da infância. No segundo caso, Rousseau valorizando as caraterísticas próprias de infância, que não são as de um adulto em potência, também adverte: “Toda a maldade procede da fraqueza; a criança, porque fraca, é má; dai-lhe forças, torná-la-eis boa”. Por sua vez, Jean Cocteau na ficção As crianças terríveis (1929) começa por falar dos “instintos tenebrosos da infância. Instintos animais, vegetais, cujo exercício é difícil de surpreender, porque a memória não os conserva mais que a recordação de certas dores e porque as crianças se calam quando os adultos se aproximam. Calam-se e retomam ares dum outro mundo. Esses grandes comediantes sabem eriçar-se, de repente, de picos como um bicho ou armar-se de humilde doçura como uma planta, sem nunca divulgarem os ritos obscuros da sua religião. Sabemos apenas que ela exige artimanhas, vítimas, julgamentos sumários, terrores, suplícios, sacrifícios humanos.”

Compete, portanto, à sociedade e nela à escola atenuar a maldade das crianças educando-as livremente para a partilha, o respeito, a autonomia responsável, o acolhimento do diferente. Se as sociedades continuarem a forçar a educação escolar das crianças nos moldes pré definidos e facciosos atuais, o cenário descrito na referida série só irá piorar porque a criança sentir-se-á cada vez mais fraca, será mais maliciosa, porque a sociedade e a escola não a ajudam nem a estimulam no caminho da bondade, da compreensão e da partilha que precisa de trilhar. Este poderá ser o melhor dos mundos possíveis como sustentava Leibniz (1646-1716) e parodiava ou contrapunha o enciclopedista Voltaire (1694-1778) no escrito Cândido ou do otimismo (1758), com o terramoto de Lisboa de 1 de novembro de 1755 à mistura, mas não é, nunca foi, nem será, o mundo ideal, seja porque for. Vejam-se as oportunas e contundentes considerações que o poeta e crítico Charles Baudelaire (1821-1867) teceu ao estado de natureza, onde, entendia só haver abusos e crimes da pior espécie. Fora do mundo construído pela humanidade baseado em valores, normas, regras morais e respeito de uns pelos outros, reina apenas a barbaridade, o terror e a morte, argumentário suficientemente exposto em A invenção da modernidade (Relógio D’Água, 2006). Com o mesmo sentido, mas com uma profundidade mais próxima da essência da poesia, Guerra Junqueiro no volume póstumo Ensaios espirituais (2025), refere: “Só a dor infinita produz o amor absoluto […]. O perfeito vive do imperfeito, como a chama vive do combustível. O mal é a condição do bem, o erro a condição da verdade, o crime a condição da virtude”.

A civilização e a cultura são o resultado de atos violentos ou da limitação da violência no agregado social, de uma consideração pessimista da condição humana, porque mesmo no registo mais benigno de Rousseau e do Evangelho cristão, a falta está sempre presente. Terão sido de Jesus as seguintes palavras: “Não pensem que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. Pois eu vim para fazer que o homem fique contra seu pai, a filha contra sua mãe, a nora contra sua sogra; os inimigos do homem serão os da sua própria família”, Mateus 10, 34-36. Sei que a passagem continua com um referente teológico, mas isso não apaga estas primeiras linhas que devem ser lidas e meditadas em contexto social e escolar laico porque efetivamente traduzem as características básicas da organização social. Séculos antes, Hesíodo no Mito das Cinco Idades já referia que a quinta Idade, aquela que era a sua e continua a ser a nossa, a raça de ferro, era uma raça de homens que têm “as fontes grisalhas. O pai não será igual aos filhos. Nem estes a ele. Não haverá amor entre irmãos, como era antigamente. Aos pais logo que envelheçam eles os desonrarão, insultá-los-ão com palavras duras. Honrarão antes o criminoso e o insolente. A justiça será a violência e a vergonha não existirá” (cf. Hesíodo, Trabalhos e dias, 109-200). Desde aí até à realidade atual, onde nas palavras de Jorge Amado, as crianças aprendem no ventre materno onde “se fazem psicanalisar para escolher cada qual o complexo preferido, a angústia, a solidão, a violência”, a condição humana, na sua essência, tem sido uma perda contínua e acentuada, sem naturalmente estar em causa o reconhecimento efetivo dos enormes progressos no mundo ocidental no reconhecimento de uma igualdade social efetiva: das crianças, das mulheres, das raças, das minorias de qualquer proveniência.

Mais perto de nós, olhemos os desenhos animados, momentos lúdicos da educação dos mais novos no ideário de Walt Disney (1901-1966) que promove os contos infantis de todas as tradições. E o que temos aí? Fábulas em torno do bem e do mal passadas às crianças e aos jovens onde impera a violência e o triunfo sobre a mesma, exponenciadas pelas mais recentes sagas dos super heróis dirigidas ao universo juvenil: Super homem, Batman, Mulher maravilha, Homem aranha, Capitão américa, Thor, Volverine… Há de facto por parte das sociedades e das culturas a perceção de que o processo natural da vida é violento, competindo a cada um relativizá-lo e empenhar-se efetivamente para que o bem, a verdade e a paz triunfem, mesmo que a espaços. Tal desiderato não é fácil porque até os hinos nacionais de praticamente todos os países são bélicos, apelos constantes à luta de uns contra os outros, do duro triunfo de cada povo sobre os seus adversários. Nenhum é de inclusão, todos são de fragmentação e se mais não houvesse, num mundo perfeito, não há barreiras entre uns e outros porque no princípio o mundo era uno, habitado pela mesma Humanidade.

E se os gregos antigos já se queixavam que o mundo não tinha salvação porque os indivíduos em idades jovens apenas diziam disparates e agiam despropositadamente, referindo os educadores que cada criança e jovem devia ser tratado como se fosse um pau torto, tendo os mais velhos, com a educação prestada, que os endireitar, a que os modernos acrescentaram, veja-se por exemplo John Locke (1632-1704), a imagem de crianças e jovens como uma espécie de tábua em branco onde os ensinamentos do dia a dia devem ser fixados: ciência e conhecimento, normas e regras de vida, do fazer e do agir. A violência gratuita entre os mais novos sempre foi uma realidade, mesmo a verbal e a de género. Classificar uns e outros e umas e outras de feios e feias, cromos e cromas, anões e escadotes, esqueléticos e anafados, narigudos, orelhudos, etc, infelizmente foi e é uma prática social tolerável. A diferença agora é que as designações locais passaram a globais, o que demorava tempo a saber-se e muitas vezes só quando estava resolvido se tonava público, é, agora, pré anunciado para todos e em todo o mundo sem qualquer pudor e sentido de responsabilidade. A juventude sabe que as consequências pelos atos que anunciam e de facto praticam, serão nulas ou quase: os direitos da infância e da juventude atenuam a quase totalidade das transgressões. Sempre foi consensual que a infância e a juventude são fases complicadas da vida, alheadas, ainda, de um saber, de uma experiência e de uma vivência, que permita distinguir com clareza o bem e o mal. E hoje como ninguém parece distingui-lo, desde os pais, aos professores, passando pelos políticos que nos governam e aqueles que dirigem as igrejas, a situação não melhora, antes pelo contrário: passamos todos a habitar na era dos coitadinhos!

Os jovens hoje passam muito tempo ou quase todo o tempo isolados? Isso não é verdade, porque o convívio dos jovens com os mais velhos sempre foi reduzido. Uns e outros sempre se separaram entre eles, os mais novos, na sua solidão, nos quartos ou outros aposentos, ou em qualquer lado com quem quer que fosse mais próximo das suas idades. E estavam muito mais horas isolados numa espécie de autogestão, porque a escola não era obrigatória e a que havia, por norma, só ocupava uma parte do dia: ou a manhã, ou a tarde. Sim: não tinham computadores nem smartphones ligados a todo o momento a tudo e a todos. Mas esta nova realidade até proporcionou muito mais tempo de convívio e presença de uns com os outros do que nos tempos idos, mesmo que agora haja a particularidade de estarem sentados na mesma sala, na mesma mesa, no mesmo restaurante, todos os membros de uma família, que escolhem entreter-se na proximidade ausente uns dos outros, porque todos permanecem em silêncio a olhar o ecrã que têm à frente: o pai não sabe o que a mãe está a ver, esta não imagina o que o pai está a escutar e os filhos, em atitude mimética veem e ouvem o que querem e lhes apetece, todos eles de headphones nos ouvidos.

Ora se a escola pretende moldar as crianças e os jovens a um certo estilo de vida e a uma determinada interpretação da realidade, como pode a sociedade, as famílias e as pessoas permitir uma internet negra ao serviço das crianças e jovens? São os pais que devem vigiar as crianças? Em parte, sim, em parte, não. E como o podem fazer quando as crianças crescem sem compreender bem a quem pertencem?: se ao pai, se à mãe alternadamente; se contra o pai ou contra a mãe na maior parte dos dias; se como seres em crescimento a que apenas se provê o conforto mínimo e as necessidades básicas? Se seres vagantes entre uns e outros, seres em confusão entre laços de toda a espécie: daqueles que por natureza são os seus; dos que apenas lhe pertencem por afinidade; dos que têm que partilhar sem desejar ou querer. E nesta confusão, vem ainda o Estado decretar no espírito da lei o superior interesse da criança, que devia apenas consistir no bom senso e na obrigação estrita de cada criança ser cuidada e protegida por todos: família, sociedade, Estado. O resto é entretenimento porque se sabe, recorrendo aos dados das ciências, que até uma certa idade a criança toma as decisões de forma egoísta e emocional, sem perceber nem antes nem depois de as tomar, as reais consequências dos seus atos. Este período acontece até à designada, na terminologia antiga, Idade da Razão, que é a idade em que cada membro da espécie humana, de forma livre, consciente e racional está em condições de avaliar as consequências dos seus atos, distinguir o bem e o mal, e assumir a responsabilidade pela sua conduta, qualquer que ela seja. A idade da razão, durante séculos, era apontada próximo dos 7 anos.

Os tempos mudaram, é certo. Mas os seres humanos continuam a nascer e a desenvolver se exatamente da mesma maneira. Na generalidade, nascem ou com um corpo biológico e fisiológico masculino ou feminino que desenvolvem ao longo do tempo. Sob o signo da cultura woke que se tem tornado quase lei de Estado, o que fazem as sociedades e as escolas? Começam desde o inicio a confundir questões de natureza com apropriações de cultura. Não se escolhe ser masculino ou feminino: nasce-se, genericamente, feminino ou masculino. O género nada tem que ver com o preconceito que se instalou de que sendo neutros na infância, então, quando na adolescência as naturais transformações fisiológicas e biológicas trouxerem a cada um o interesse sexual, a vontade, o desejo e o prazer de partilhar o corpo com o corpo de outrem, possam escolher sem preconceitos, para a satisfação dos instintos carnais, seres de um ou outro género. Essa escolha não tem nada a ver com a educação: haverá sempre exceções, mas por norma, como bem narra o mito do andrógeno que Platão expõe em O banquete, 189d-193e, narrativa semelhante à de outras culturas e civilizações sobre o mesmo assunto, inicialmente, os seres humanos encontravam-se unidos por troncos esféricos e ao tentar invadir a residência dos deuses, o Olimpo, Zeus castigou-os cortando-os ao meio, fazendo de um, dois, representando cada um metade de um todo de que se encontra afastado, mas que afincadamente procura a outra parcela. O desejo pela união é aqui representado pelo Amor. Quando se encontravam unidos uns seres eram femininos, originados da terra, outros masculinos, originados do sol, o andrógeno (que participa de ambos) originado da lua, é o único originariamente heterossexual. Os que foram cortados de Andróginos sentem atração por mulheres, os que foram cortados de Andros sentem atração por homens e mulheres e os que são cortes de Gynos sentem atração por outras mulheres. Era apenas isto que se transmitia a uns e outros. Mas a contemporaneidade não tendo que fazer a tantos intelectuais e eruditos que as suas escolas certificam, passou a desprezar as grandes narrativas porque são ilusórias, mesmo que integradoras, e apostou na compartimentação do conhecimento, onde para justificar o investimento feito na formação dos novos fazedores da ciência, passa a alimentar as ideias mais disparatadas e contraditórias sobre tudo e mais alguma coisa.

Também não me parece feliz a associação que a série e aqueles que a seguiram fazem do conceito incel no que diz respeito à teoria dos celibatários involuntários, associando o crime cometido à ideia de rejeição amorosa, neste caso, da figura masculina. Tentar convencer um jovem de 13 anos a alimentar comportamentos de rebaixamento e discriminação sobre o universo feminino, é algo que ao que parece abunda pela internet. Coisa diferente é associar um crime de um adolescente em transição, com a ideia de que as mulheres não gostam dele e dificilmente conseguirá uma relação física com elas, restando-lhe o celibato, a ausência de relações sexuais, que não deseja nem quer. Ora isto é um disparate porque os jovens, mesmo com a liberalidade sexual atual, iniciam, por norma, a sua vida sexual algum tempo depois dos 13 anos, e, na verdade, para ter sexo, hoje como sempre, é só preciso ter algum dinheiro e comprar momentos de prazer com alguém que livremente lhos disponibilize.

Se as mesmas constatações se repetem ao longo dos tempos por gente diversa e atenta, com a maciez dos adultos face àqueles que têm por obrigação educar, com a assunção de direitos sem lhes associar os deveres intrínsecos, com receio do principio da legalidade que prevalece sobre tudo e sobre todos, que sobrepõe o autoritarismo à autoridade, o que esperam das crianças e dos jovens que cedo se apercebem que dificilmente os seus atos lhes irão acarretar consequências graves? Veja-se o exemplo da frequência escolar: sob o princípio da autoridade e do respeito devido a uns e a outros, alunos e alunas que não acatassem os seus deveres básicos, como o respeito aos professores, aos colegas, ao restante pessoal escolar, bem como a frequência de aulas, eram rapidamente excluídos da escola e da frequência escolar. Agora, com a escolaridade obrigatória até aos 18 anos e com a liberalidade legalmente instalada na relação pedagógica, os meninos e as meninas sabem que podem ser mal educados e desrespeitosos com os professores e professoras, como sabem que ter mais ou menos faltas às aulas para nada interessa. Num caso e noutro, a legalidade exige que a escola os retenha por lá até aos 18 anos. Assim sendo, é natural que os professores e as professoras que para nada contam nestes procedimentos se ausentem por completo do processo educativo. Estão ali como uma espécie de guardadores de meninos e meninas que se revezam várias vezes por dia cumprido as diretivas de quem lhes paga, porque precisam de ganhar dinheiro para suprir às despesas. Nem os políticos e muito menos quem dirige as escolas, que na generalidade são mais intransigentes que os políticos de quem dependem, fazem o que quer que seja para lá de satisfazer os caprichos dos meninos e das meninas: sejam quais forem, eles e elas terão sempre razão. Os professores e as professoras tornaram-se os tiranos que a atualidade já não consente e as crianças e jovens, neste entretanto, fazem o que querem e como querem, porque sabem que os seus atos poucas ou nenhumas consequências adversas lhes irão acarretar. Shakespeare pronunciava-se assim, ou fazia dizer a uma das suas múltiplas personagens: “a desgraça destes tempos é que os loucos guiam os cegos” e Dostoievski (1821-1881) mais perto de nós e já inserido nas mudanças da modernidade relevava que “a tolerância chegará a tal ponto que as pessoas inteligentes serão proibidas de fazer qualquer reflexão para não ofender os imbecis”.

Não resta qualquer dúvida que as correções feitas, e bem, em assuntos de impacto universal que têm que ver como a sociedade se organiza e se estrutura, foram e continuam a ser da maior urgência e utilidade e devem obedecer ao respeito absoluto por todos os seres humanos independentemente do sexo, raça, religião, condição social, formação, etc: “Não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos são um”, refere-se em Gálatas, 3, 28.  Devemos ter presente que este é apenas um ideário a perseguir e que jamais será conseguido. Basta lembrar que no tempo da escravatura pelas novas terras da América os escravos e escravas quando eram alforriados, tornados cidadãos livres de pleno direito, esmagadoramente iam comprar outros cidadãos e cidadãs seus iguais, que submetiam à mesma escravatura de que tinham padecido, na ignorância de que permitir os mesmos direitos e exigir idênticos deveres a todos e a todas, é condição fundamental para uma sociedade mais justa. Mas confundir assuntos essenciais com opiniões e formas de vida particulares que acabam por se impor unilateralmente à imensa maioria que se torna silenciosa e compactua com o que não conhece e que os ignorantes certificados lhe transmitem, a coisa já é outra. A mudança, qualquer que ela seja, requer apenas simplicidade e bom senso, nada mais, pois como refere o matemático e filósofo Bertrand Russel: “A boa vida é aquela que é inspirada pelo amor e guiada pelo conhecimento”.

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Artur Manso, nasceu nos idos de 1964, pelo outono, ao cair das folhas, na aldeia transmontana de Izeda. Professor universitário que ao longo do tempo se tem dedicado à aprendizagem e ao ensino de pequenas coisas sob o signo da estética e da ética, do lugar que nos cabe no mundo e de como a beleza nos pode tranquilizar.

MUNDOS DAQUI E D´ALÉM (II)– por Adelina Andrês

VIVER NESTE CHÃO ou NASCER NATURAL(MENTE) CRESCER

Na noite e à luz acesa do interior de um quarto. No chão num tapete ao lado das botas do pai que não estava de momento. A trabalhar lá fora e o trabalho de parir cá de dentro. Que iria demorar pensava a mãe pela experiência passada e penosa da outra vez. O irmão tio não estava que tinha fugido de medo. De medo e de susto daquelas coisas que não conhecia nem queria. De medo e de fuga. Não demorou não demorou e nasceu logo. Só a espanhola vizinha apareceu e já estava tudo acontecido: a criança, a mãe, as botas e o tapete. No tapete. Foi só a ajuda de chamar a parteira para cortar o último cordão umbilical. Continuar a ler “MUNDOS DAQUI E D´ALÉM (II)– por Adelina Andrês”

ATHENA REVISITADA- III – Cecilia Barreira

 

…Na Edição Nº 16, em Maio de 2021, Cecília Barreira escreveu para Athena “ALGUMAS PALAVRAS SOBRE Jean Paul Sartre”.

Foi assim, aqui:

ALGUMAS PALAVRAS SOBRE JEAN PAUL SARTRE

As palavras já não residem nas historicidades em desalinho, mas procuram-se em mitos refundadores e alheios ao sagrado, maré ontológica de um nada em emergência, um caos de transitoriedades em abstinência, Sartre cruza-se com Simone de Beauvoir em 1929 através de René Maheu, persistências anódinas em cerejas sem Verão,

Inúteis as cadências, Continuar a ler “ATHENA REVISITADA- III – Cecilia Barreira”

FALA QUE NEM HOMEM – por Alexandre Malvestio

Não fosse a sua constante ausência a principal lembrança que eu tenho do meu pai na minha infância, eu poderia dizer que minhas maiores recordações são dele deitado sobre um banco de madeira entalhada no fundo de nossa sala de estar. Se eu estivesse entrando em casa, ou cruzando a copa em direção à cozinha, ou mesmo passando ali pelo hall onde uma reprodução barata da Monalisa nos contemplava da parede, eu o via. Na sala, com todas as luzes acesas, a janela escancarada, sem camisa, segurando o controle remoto em uma das mãos e mudando de canal freneticamente. Continuar a ler “FALA QUE NEM HOMEM – por Alexandre Malvestio”

“CIRCO POBRE” de Emilio Barraza Durán – reseña de Claudia Vila Molina

La neblina como un elemento “no humano” que expone múltiples interpretaciones del hablante lírico de “Café” en Circo Pobre de Emilio Barraza Durán

El tercer libro de poemas Circo pobre (2024) del poeta chileno y profesor de lenguaje Emilio Barraza Durán está pleno de imágenes ancladas en la crítica social y en la ironía, ello es parte de la antipoesía, como uno de los principales temas y recursos. En este amplio contexto, yo quiero analizar un punto literario que me parece muy relevante y es la forma en que el hablante lírico se expresa en el texto “Café” (102 ) el que está antecedido por “Lamentos míticos” (101 ) y en la página que continúa (103) “Ancianos jugando ajedrez”. Tomo el conjunto de estos tres textos, porque me parece interesante la ubicación y la interrelación de cada uno de ellos, dentro del esquema general del libro. En esta línea, el diálogo de estos tres poemas insinúa una especie de melancolía y resignación en torno a la suerte de un sujeto (a) chileno (a) que habita un lugar vulnerable y reiterativo (en relación con la impotencia imperante frente a un sistema socio político que lo atropella). En este conjunto, yo me detendré en “Café” como un texto caracterizado por un hablante lírico peculiar, cabizbajo, insomne y dubitativo que se expresa desde el lugar de la resignación y la melancolía: “Este café/ lleno de niebla/ que me toca tomar ahora”. Continuar a ler ““CIRCO POBRE” de Emilio Barraza Durán – reseña de Claudia Vila Molina”

HELENA SÁ E COSTA: AS TECLAS DA COERÊNCIA – por Danyel Guerra

Helena Sá e Costa tem um teatro com seu insigne nome no Porto natal.  Mas quem é Helena Sá e Costa?, indagará, curiosa, a esmagadora maioria dos portuenses. Que boas razões justificam que ela tivesse amadrinhado essa sala de espetáculos?, perguntarão os mais renitentes. A essas (im)pertinentes questões eu procuro responder nos acordes que se seguem, num recital a duas vozes. Continuar a ler “HELENA SÁ E COSTA: AS TECLAS DA COERÊNCIA – por Danyel Guerra”

“TEMPO DE TIGRE” E OUTROS POEMAS – por Felipe Duarte de Paula

Tempo de tigre

No início da manhã, um tigre espreita meu quintal.
Ignoro sua intenção, embora o olhar carente
insinue que está à caça de amizade.
Acontece que não converso com animais selvagens.
Atrás da janela cerrada, contemplo o balé do felino
que, andando de lá pra cá, pisoteia meu gramado.

No meio da tarde, insiste em passear por ali o animal.
Imagino que já devorou tudo que encontrou pela frente.
Não posso assegurar que essa seja a verdade,
mas, sem dúvida, antes minhas crenças do que miragens.
Todos sabem: não se brinca com bicho de instinto assassino.
Entregar-se à toa à morte seria pecado.

No fim da noite, além de um vulto, nenhum outro sinal
da fera que ao meu redor se fez presente.
Não tive medo, posso afirmar despido de vaidade.
E, apesar do tigre, despontam intactas as paisagens
que adornam a província. Chegou a hora de entoar o hino,
fortificar o muro, reforçar a porta e o cadeado.

♦♦♦ Continuar a ler ““TEMPO DE TIGRE” E OUTROS POEMAS – por Felipe Duarte de Paula”

O ATEU TEIMOSO – por Francisco Fuchs

 

Fragmento do Bailly encontrado no século XIV em Aparecida*

O ATEU TEIMOSO

Oswaldo era tão hiperbolicamente ateu que, além de não crer em Deus Pai, não acreditava em deuses nenhuns, fossem eles mães, entidades, pedras ou animais. Ao deparar-se com um lugar de culto, atravessava a rua; e ao dar uma esmola, coisa que acontecia com certa frequência, fazia questão de deixar claro que Ele nada tinha a ver com aquele pequeno gesto de generosidade. Continuar a ler “O ATEU TEIMOSO – por Francisco Fuchs”

MAIS TRÊS TEMPOS POÉTICOS – por Henrique Miguel Carvalho

COMÉDIA

e tudo ser
……………uma piada
 para quê?
…………..se apenas
para provar
…………..a sobranceria
…………..ao mundo

assim
……………ocultando,
mãos
…………..sobre a face,
o quão acima,
…………..quão alto
…………..à visão

da circunferência,
…………..se pensa ser,
e enganando,
…………..fútil
engraçado,
………….o próprio engano
………….enganador

que engana,
…………..num estúpido
movimento
…………..de lábios
…………..curvos para cima

 gáudio
…………..ou sofro,
o choro
…………..é a verdade
………….travessa

ao corpo,
…………..e a lembrança,
na carne,
…………..das águas
…………..da Criação

 mas o riso,
…………..demência
frívola,
…………..é Caos
…………..premeditado

ou a diminuição
…………..ontológica
de tudo,
………….. por ocultação
…………..imparcial

de um medo,
…………..de cuja sorte
só Deus
…………..é o imperturbável
…………..detentor

 candidez
…………..alva,
o choro
não ilude
…………..ou trai apenas
…………..confessa

apenas
…………..diz   eis-te,
sem palavras
…………..que vasculhem
…………..o sentido

quando rir,
…………..prazer banal,
troça
…………..ou faz-pouco,
movendo-se
…………..inveja, irmão
…………..da jovem

crueldade,
…………..como pranto
dito
ao contrário,
…………..por súbita
…………..repressão facial

 pois demora-se
…………..o riso?
na beleza
…………..de uma só face,
…………..ou apenas

a medindo
…………..por ostentação
e vaidade,
…………..para depois
…………..lhe esborratar

a pintura
…………..eis o segredo
de qualquer
palhaço,
…………..e o porquê
…………..da sua máscara

e não
…………..louvar a bravura,
o enfrentar
…………..elegante
do touro,
…………..sem cobrar
…………..bilhetes

à entrada
…………..para assistir
ao espectáculo
…………..final,
despindo
…………..o vulto
…………..à razão

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