Bestiário da Sombra
A morte é um lobo à espreita:
imóvel, mudo e pulsante.
(No olho, o gelo põe cores
de quem domina, distante.)
A morte é serpente rasa
e nos vive – de pequenos –
destilando em nossas veias
o seu mais lento veneno.
A morte é um urso hibernante
que dorme, imóvel e quieto.
(Mas quando acorda, nos chama
para o seu sono secreto.)
A morte é um tigre faminto
na farta mesa das horas:
num salto breve, a surpresa
que nos alcança e abraça.
A morte é um rato inquieto
em seus caminhos esquivos.
(Finge que foge assustado,
mas rói o porão dos vivos.)
A morte é águia à espreita
em seu voo mais rasante.
(Com suas as garras, nos prende
e nos some, num instante.)
Ou morte é pássaro leve
ave branca, de outra escola
que nos flutua em silêncio
enquanto abre a gaiola…
♣♣♣
O Adeus
O adeus nasce do instante
entre a palavra e o passo.
(Mas cresce vazio de colo:
estreito, e com todo espaço.)
E nos ensaia seus gestos
seus rituais, suas danças.
É tão esquivo de corpo
que mão nenhuma o alcança.
O adeus nos alimenta
entre a memória e o fato.
(Mas come além do que é boca:
é a fome longe do prato.)
E vive assim, desde cedo
na pele de toda gente.
Chega descalço ou de gala,
e nos faz ave ou semente.
O adeus planta uma sombra
no que seria ou que foi.
(Por que o olho da saudade
só abre um tempo depois.)
Ele é como se, na escada,
a perna fosse o tropeço.
Por isso, prende e liberta
e é sempre fim e começo.
♣♣♣
Coração de Milonga
Enquanto o tempo desenhava
teu rosto dentro do meu corpo,
saudade em dó menor cantei mil vezes.
Falei de nós, um tanto triste
e um bandoneón chorou comigo:
amor, quando é amor, não morre nunca.
(E pra fugir de cada sombra
da solidão, que erguia os olhos,
me disfarçei na dor de um sustenido).
Amor, quem sabe um dia desses
no espelho da milonga eu veja
teu beijo renascido num segundo.
Por ti, amor, cantei o mundo
em noites longas que aprendia
a amar em sol maior
e tempestades…
Amar nas ruas, bares, campos
amar em solos de guitarra.
Amar com toda voz
e em silêncio.
Amar como só poderia
meu coração de milonga.
Quem sabe ler paixões humanas
na vida, sempre tão estranha,
se o amor as vezes fecha toda casa?
Andei por mares, vales, luas
andei em pedras, muros, portos,
amor, varei coxilhas do avesso.
(E andei no rastro do teu nome
no meu cavalo de brinquedo
colhendo a flor azul que me pedias).
Amor, quem sabe um dia desses
na alma da milonga eu veja
a face calma e breve das respostas…
Por ti amor cantei o mundo
em longas noites que aprendia
a amar em sol maior
e tempestades…
Amar nas ruas bares campos
amar em solos de guitarra.
Amar com toda a voz
e em silêncio.
Amar como só poderia
meu coração de milonga.
♦♦♦
Jaime Vaz Brasil – Poeta gaúcho, com 7 livros públicados e vários prêmios, dentre os quais: Açorianos, Felipe d’Oliveira e Casa de Las Americas (finalista). Atua também como compositor, tendo vários poemas musicados e interpretados por vários parceiros, dentre os quais Ricardo Freire, Flávio Brasil, Zé Alexandre Gomes, Nilton Júnior, Vitor Ramil e Pery Souza.
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