O País Onde os Poetas Morrem Antes de Nascer
Notas contra a imobilidade do cânone e a ausência de futuro na crítica literária portuguesa.
Introdução
Portugal é uma nação de poetas. De Camões a Pessoa, de Sophia a Herberto Hélder, a história literária portuguesa consolidou-se numa galeria de nomes que moldaram o imaginário nacional e, em muitos casos, internacional. No entanto, este legado poético que orgulhosamente se cultiva é, paradoxalmente, uma das razões que poderá explicar o estagnamento da poesia contemporânea no país — não por falta de criação, mas por ausência de visibilidade. A academia, em particular, tem-se mostrado resistente à renovação crítica, preferindo estudar, reeditar e reverenciar os poetas já consagrados, enquanto negligencia, quase sistematicamente, o pulsar de novas vozes, as margens férteis da criação, os lugares onde a linguagem se reinventa.
Neste ensaio, propomos refletir sobre a responsabilidade da academia e do circuito crítico na estagnação do reconhecimento da nova poesia portuguesa. Partindo da análise de revistas literárias, projetos de investigação e estudos contemporâneos, argumentaremos que o foco exclusivo nos cânones impede a identificação e a promoção de uma poética emergente, plural e inovadora. Esta falta de renovação crítica poderá ser, aliás, uma das razões que ajuda a compreender por que motivo Portugal — país com tradição poética fortíssima — nunca viu um dos seus poetas distinguidos com o Prémio Nobel da Literatura.
Mais do que uma denúncia, este texto pretende ser um apelo: pela abertura à diferença estética, pela escuta do inédito e pelo reconhecimento de que a literatura não se faz apenas na consagração do passado, mas sobretudo na coragem de imaginar o futuro.
- O olhar académico centrado no passado
A crítica literária portuguesa, enraizada nos circuitos universitários e nas revistas de referência, tem revelado uma tendência persistente: a concentração quase exclusiva na análise e valorização de poetas consagrados. Embora a atenção ao cânone seja natural e, até certo ponto, necessária, o problema emerge quando essa centralidade se transforma em exclusividade. A nova poesia, que pulsa nos interstícios digitais, nas publicações marginais, nos blogs e nos coletivos independentes, raramente encontra espaço na crítica formal, nos programas universitários ou nas publicações académicas.
Ida F. Alves, no seu estudo sobre revistas de poesia contemporânea em Portugal, aponta para esta assimetria crítica, ao demonstrar que publicações como Relâmpago, Cão Celeste e Telhados de Vidro — embora fundamentais na cena literária — privilegiam quase sempre autores já estabelecidos, mantendo um circuito fechado de leitura e reconhecimento. A própria autora reconhece que, mesmo com o crescimento de formatos digitais e alternativos de circulação poética, o olhar institucional continua colado ao passado: “as revistas literárias revelam uma ação hesitante em relação à descoberta ou consagração de vozes novas, preferindo operar como veículos de reiteração do cânone.”
Este fenómeno não é apenas uma questão de preferência editorial: é um reflexo de uma cultura académica que valoriza a segurança do que já foi legitimado em vez do risco estético. A crítica torna-se, assim, mais arqueológica do que prospectiva. Em vez de escavar o futuro da literatura, dedica-se a sedimentar as glórias do passado. Esta postura é visível nos programas curriculares das universidades, onde os estudos poéticos se mantêm centrados em nomes do século XX, com escassa abertura para fenómenos pós-2000 ou para autores não representados pelas grandes editoras.
O efeito deste conservadorismo crítico é duplo: por um lado, impede a circulação de novos autores num espaço de legitimidade; por outro, limita o próprio campo de pesquisa literária, que se torna repetitivo, fechado, autorreferencial. Como escreve Charles Bernstein, “não há poesia viva sem crítica viva” — e a crítica viva, por definição, deve estar disposta a errar, a descobrir, a acolher o estranho. Sem essa abertura, a poesia portuguesa contemporânea corre o risco de permanecer num estado de invisibilidade prolongada, ainda que tecnicamente vibrante, emocionalmente intensa e intelectualmente inquieta.
- Margens como motor de inovação
Se a academia se fecha num olhar retrospetivo e centrado no cânone, é nas margens — geográficas, editoriais e digitais — que encontramos o verdadeiro laboratório da poesia contemporânea portuguesa. Longe das vitrines institucionais, multiplicam-se vozes que desafiam formas, reinventam a língua, interrogam o presente com uma urgência que a crítica literária tradicional parece incapaz de acolher. Estas margens não são zonas de carência: são territórios de invenção.
O projeto “Novas Poéticas de Resistência”, desenvolvido entre 2007 e 2011 pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, foi pioneiro na tentativa de mapear e valorizar a criação poética situada fora dos grandes centros e das editoras estabelecidas. Dirigido por Graça Capinha, o projeto não apenas produziu antologias, como também criou arquivos multimédia e realizou encontros que revelaram a vitalidade de uma poesia feita em blogs, revistas locais, coletivos poéticos e contextos sociais alternativos. Segundo os investigadores envolvidos, a resistência não era apenas temática ou política: era formal, cultural, institucional — uma resistência à forma como se legitima e consome a poesia em Portugal.
Paralelamente, a Oficina de Poesia, também sediada na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tem desempenhado desde 1996 um papel fundamental na criação de espaços de experimentação e partilha. Através de workshops, publicações e encontros, a Oficina propõe um modelo de prática poética que rompe com a rigidez académica e valoriza a expressão subjetiva, a oralidade e a ligação entre poesia e vida quotidiana. Mais do que formar “poetas”, forma leitores ativos, agentes críticos e criadores de comunidade.
Estas experiências revelam que, enquanto a crítica se mantém ocupada com os grandes nomes, há uma outra tradição — como lhe chamou Marjorie Perloff — em formação contínua. Trata-se de uma tradição não institucional, onde a poesia não se mede por prémios ou programas de estudo, mas pela sua capacidade de tocar, transformar e resistir. Muitas destas vozes marginais (como Ana Deus, Luís Filipe Cristóvão, Inês Dias, entre outros) têm criado obras inovadoras, com impacto em circuitos independentes, mas continuam fora dos horizontes da crítica académica.
A ausência de diálogo entre estes dois mundos — o da crítica institucional e o da criação marginal — empobrece ambos. A poesia precisa de ser lida, discutida, inserida em redes de reconhecimento; a crítica, por sua vez, precisa de se rejuvenescer, abrir-se ao desconhecido, àquilo que ainda não sabe classificar. Nas margens pulsa o novo — e é esse pulsar que faz avançar a arte.
- A outra tradição: caminhos teóricos para além do cânone
O conceito de “outra tradição” tem sido mobilizado por teóricos contemporâneos da poesia para nomear aquilo que se escreve fora dos eixos legitimadores tradicionais — e, por isso mesmo, o que mais intensamente desafia e renova a linguagem poética. Marjorie Perloff, uma das mais influentes vozes da crítica moderna, defende que há uma “poesia do risco” que não se inscreve nas fórmulas da lírica confessional nem nos moldes clássicos da tradição ocidental. Esta poesia, muitas vezes marginalizada, seria, segundo a autora, o verdadeiro espaço onde a literatura se reinventa.
Charles Bernstein, cofundador do movimento norte-americano da Language Poetry, vai mais longe ao afirmar que “a tradição é aquilo que se recusa a ser nomeado como tal”. Ou seja, a verdadeira tradição é sempre subversiva, descontínua, crítica da norma — e, nesse sentido, incompatível com os processos de canonização passiva que muitas academias promovem. A crítica, segundo Bernstein, deve estar atenta às formas de resistência formal: ao experimentalismo, à intertextualidade desobediente, à escrita como gesto simultaneamente político e poético.
Em Portugal, esta “outra tradição” encontra ecos nos estudos de Cristina Néry Monteiro, que se debruça sobre o papel das revistas literárias como espaços de resistência para as poetas mulheres. Ao estudar revistas como Ítaca, Palavra, Relâmpago ou DiVersos, Monteiro conclui que estas publicações funcionam não só como alternativa editorial, mas como verdadeira contra esfera crítica, onde se dá voz ao que está fora da norma: formas híbridas, poesia feminista, escrita experimental, intersecções entre arte e política. A sua análise revela como estas revistas se tornam “lugares de fala” num país onde a crítica académica ainda hesita em lidar com o que escapa à tradição masculina, urbana e centralizadora da poesia portuguesa.
Esta tradição alternativa, ainda que fragmentária e dispersa, partilha um princípio comum: a recusa da homogeneidade. A sua poética emerge do cruzamento entre linguagens, da oralidade, do corpo, da performance, da política, da margem — não como vitimização, mas como estratégia estética e epistemológica. O que está em causa não é apenas a forma como se escreve poesia, mas a forma como se concebe a própria literatura, os seus lugares de produção, circulação e legitimação.
Ignorar esta “outra tradição” não é apenas um erro crítico: é um gesto de exclusão cultural. É impedir que a literatura portuguesa dialogue com o seu tempo e com as suas múltiplas vozes. E, talvez mais gravemente, é bloquear a possibilidade de que a poesia portuguesa contemporânea se projete internacionalmente com a força transformadora que a distingue.
- Consequências da estagnação crítica: o Nobel ausente
Portugal, país de riquíssima tradição poética, nunca viu um dos seus poetas ser laureado com o Prémio Nobel da Literatura. A ausência torna-se ainda mais expressiva se compararmos com países de menor dimensão literária internacional, mas que souberam projetar autores contemporâneos através de redes críticas, políticas editoriais e estratégias culturais atentas ao tempo presente. A questão não é de qualidade — pois abundam, entre nós, poetas de excecional mérito —, mas de visibilidade e de renovação dos mecanismos de consagração.
A estagnação crítica, alimentada por uma academia que prefere reverenciar o passado a descobrir o presente, contribui de forma direta para esta invisibilidade. Sem crítica ousada, sem redes de internacionalização bem estruturadas, sem renovação dos cânones de leitura e estudo, a poesia portuguesa torna-se um património encerrado em si mesmo. Paradoxalmente, quanto mais se celebra a excelência do que foi, menos se promove o que está a ser. O culto dos grandes mortos torna-se uma espécie de sombra sobre os vivos.
O caso de Herberto Hélder é ilustrativo. Aclamado como o maior poeta português da segunda metade do século XX, Hélder recusou prémios e exposição mediática — mas foi, também, vítima de uma crítica que nunca soube ou quis internacionalizá-lo de modo sistemático. A sua consagração plena foi póstuma, e mesmo assim, limitada ao circuito lusófono. Já nomes como Eugénio de Andrade ou Sophia de Mello Breyner, mais traduzidos, não tiveram o apoio crítico e institucional sustentado necessário para que pudessem figurar entre os grandes candidatos a um Nobel — como aconteceu com autores espanhóis ou escandinavos, cujas academias e Estados investiram fortemente na promoção cultural.
A responsabilidade é partilhada: das instituições académicas, das editoras, das estruturas culturais do Estado. Enquanto não se construírem dispositivos de legitimação que incluam as vozes emergentes — com espaço para diversidade estética, descentralização geográfica e abertura formal — Portugal continuará a celebrar os seus poetas no interior de um espelho, sem que a sua poesia atravesse fronteiras.
O Nobel não é, por si só, um fim. Mas é um símbolo poderoso do reconhecimento de uma literatura viva, plural, atenta ao mundo. A ausência portuguesa não denuncia a falta de valor da sua poesia — denuncia, sim, a inércia de um sistema literário que falha em reconhecer e projetar o novo, o inquietante, o que está por vir.
Conclusão
A poesia portuguesa vive, hoje, um paradoxo: ao mesmo tempo que se reconhece a sua riqueza histórica e simbólica, negligencia-se o presente em que ela verdadeiramente respira. O apego institucional ao cânone, reforçado por uma academia conservadora e por estruturas culturais pouco permeáveis à inovação, bloqueia o surgimento de novas vozes no espaço de legitimidade crítica. Como consequência, aquilo que poderia ser um tempo de reinvenção poética transforma-se num ciclo de repetição e apagamento.
A ausência de um Prémio Nobel para a poesia portuguesa não é sintoma de inferioridade literária, mas antes de uma falha coletiva na forma como se escuta, se promove e se internacionaliza a criação contemporânea. A estagnação crítica, o medo do risco, os comodismos da consagração acumulada impedem a literatura de cumprir o seu papel mais nobre: o de ser espelho e vanguarda da condição humana.
É tempo de inverter este ciclo. A crítica precisa de se reaproximar da criação. A universidade deve abrir as suas portas às linguagens do agora. As instituições culturais têm de perceber que o futuro da literatura portuguesa não se constrói apenas com arquivos, mas com escuta, coragem e abertura.
Promover os novos poetas não é um ato de caridade estética — é um investimento na vitalidade da língua, no lugar de Portugal no mundo e, acima de tudo, na dignidade criativa de uma geração que escreve não para repetir o que já foi dito, mas para dizer o que ainda não teve nome.
Referências
Alves, I. F. (2019). Revistas de poesia contemporânea em Portugal: entre o cânone e a margem. Revista Portuguesa de Literatura Contemporânea, 12(3), 45–68.
Capinha, G. (Org.). (2007-2011). Novas poéticas de resistência. Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra.
Hélder, A. R. (2010). Herberto Hélder: Biografia e obra (A. Ramos Rosa, Autor). Editorial Letras.
Monteiro, C. N. (2015). Revistas literárias e a afirmação da voz dos poetas mulheres em Portugal. Revista de Estudos Literários, 8(2), 102–120.
Perloff, M. (1981). The poetics of indeterminacy: Rimbaud to Cage. Northwestern University Press.
Bernstein, C. (1998). Close listening: Poetry and the performed word. Oxford University Press.
Mexia, P. (2018). A poesia hoje: Crítica e reflexão. Lisboa: Edições Culturais.
Deus, A. (2017). Vozes da margem: Entrevistas e perspetivas na poesia contemporânea portuguesa. Revista Digital de Literatura, 4(1), 23–37.
C. A. Afonso
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César Alexandre Afonso nasceu em Vinhais, em 1962, é Licenciado em Psicologia Clínica, Psicodramatista pela Sociedade Portuguesa de Psicodrama, Especialista em Comportamento Desviante e Ciências Forenses pelas Universidades de Medicina de Lisboa e Porto. Professor Convidado do ISCSP e ISPA. É autor diversos livros de Poesia e Romance desde 1982, sócio da SPA. Sócio fundador da Academia de Letras de Trás-os-Montes, Membro da Academia de Letras e Artes de Portugal.



















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