UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (4) – por Lúcio Valium –

INVERNIAS

Enquanto corre o teu banho quente
as gaivotas fazem círculos demorados no azul
e ouve-se um saxofone desvairado.
Há pouco falavas da neve e de hospitais
desta luz invernal e de arroz.
Dei-te a manta
e compus as roupas da jangada.
Agora falas do cenário que avistamos da janela.
Um frágil amarelo a escorrer entre a
lã imensa de chumbo fumegante
que se eleva para lá dos telhados
por cima do mar.
Já quase noite
vestes o corpo de calças.
Na cozinha falas de aviões
e polémicas publicitárias.
E da tua cidade nas palavras da pobre jornalista
que serve a encenação enquanto
cortas o alho para a panela.
Depois vens ao corredor escuro
contar uma cena de estrangeiros no restaurante
por causa das línguas e dos lucros.
Os gestos e as atitudes.
E já tens os crepes de legumes prontos.
É hora de sair e dizes
que há pessoas que viajam ao passado
e continuas a falar sozinha na cozinha.
Perguntas se há hora marcada.
Ainda temos de ir comprar um salpicão
e vinho
Mas antes tens que secar o cabelo. Continuar a ler “UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (4) – por Lúcio Valium –”

CONTO DE NATAL – por Manuel Igreja

 

O MENINO DO RIO

Nem ele mesmo conseguia explicar, mas desde que sabia de si, o menino sentia uma enorme atração pelo rio. Encantava-se com o fluir da água, ora calma e muito quieta como se fosse a pele do rio, ora revolta, como se com a sua fúria o rio quisesse mostrar descontentamento e tomar os lugares que são seus. Continuar a ler “CONTO DE NATAL – por Manuel Igreja”

AS NÚVENS ABRIRAM OS LÁBIOS – de Maria Fraterna

 

Depois de dilacerados os dias de calor, voltava a chuva à vida das pessoas que aos primeiros pingos do céu resmungavam, contra as pérolas frescas que escorregaram por algumas frinchas da alma.

No Parque Nacional da Peneda-Gerês caminhava um grupo num passeio pedestre para observação da natureza ambiental, quando dentro do trilho começou o forte temporal.

O coração da floresta transformava-se num esguicho de águas esparsas e desalinhadas, sem encontrar saída ou buraco.

Com esta chuva o grupo olhava a montanha velha da serra, e as escarpas envolventes: tudo se admirava ao longo do trilho.

Se a esperança não fosse evocada nas poucas possibilidades, deste Gerês cheio de contraste, à mistura da chuva, eles acabariam todos submersos no rio. Continuar a ler “AS NÚVENS ABRIRAM OS LÁBIOS – de Maria Fraterna”

POEMAS – de Maria Gomes

VICTOR BREGEDA - Past, Present, and Future 
© Victor Bregeda – Past, Present, and Future

 

1

Mais do que deuses, precisamos do limiar do sagrado
do lugar onde bebem as aves,
de regressar ao silêncio de uma noite ida;
mais do que deuses, precisamos do anúncio súbito
da clemência implorada
dos trabalhos do mar;
mais do que deuses, precisamos do homem, da pele do homem,
da sua peugada
sobreposta à penumbra da flor nascida.
Mais do que deuses, precisamos da fronteira da meia-noite
do círculo lunar do grande rio
que corre no sangue da terra humilde. Continuar a ler “POEMAS – de Maria Gomes”

DOIS – por Paulo Weidebach

Ele falava alto, muito alto. Tão alto que sua voz batia no teto. Ricocheteava, batia e rebatia, atingia a alma, estremecia a calma. E falava errado. Menas, pobrema, enfiava o dedo no nariz, coçava suas partes íntimas em público. Era rico, abastado, estudado. Viajou o mundo todo, sempre com os agentes de viagens dos ricos e famosos. Continuar a ler “DOIS – por Paulo Weidebach”

RESENÃ DE “AMORES Y DESAMORES” DE CLAUDIA VILA MOLINA – por Rodrigo Verdugo Pizarro

Adentrarse en la obra poética de Claudia Vila Molina -la que permanece  mayormente inédita- con la excepción de su primera obra “Los ojos invisibles del viento”, más textos suyos que han sido publicados en diversas revistas nacionales y extranjeras, revistas que están mayormente adscritas a lo que es el movimiento surrealista actual por ej. Revista Athena de Portugal, Revista Materika de Costa Rica, etc, implica detallar al menos una de las filiaciones de esta escritura, para no referirnos al concepto de influencias, que según lo conversado con Claudia me parece más exacto. Continuar a ler “RESENÃ DE “AMORES Y DESAMORES” DE CLAUDIA VILA MOLINA – por Rodrigo Verdugo Pizarro”

RECEITUÁRIO DE SONHOS – por Wander Lourenço

 

Receituário de sonhos através da literatura

Em sua obra intitulada A interpretação dos sonhos, o psicanalista Sigmund Freud explicita que esforçar-se-ia por elucidar os processos a que se devem a sua estranheza e a obscuridade, ainda que pouco ou nada que aborde a sua natureza essencial possibilite uma solução final para qualquer dos enigmas dos sonhos. Deste modo, aviso aos navegantes: a crônica não se predispõe a elucidá-lo, absolutamente; entretanto, se inclina a utilizá-lo como metodologia de leitura, que prognostica a prevenção como modo eficaz de combate às aflições psíquicas do Homem pós-moderno. Neste compasso, eis que se prescreve o Receituário através da literatura, sob forma de breve contribuição ao estado de saúde mental do Leitor, que se quer são e hígido em lucidez. Assim sendo, o indivíduo apto ao ato de Ler anteceder-se-ia ao diagnóstico clínico, subscrito pela consternação agônica do espírito, às margens do abismo da existência que, por vezes, impele o ser humano ao suicídio físico ou moral. Continuar a ler “RECEITUÁRIO DE SONHOS – por Wander Lourenço”

EDITORIAL – EM LOUVOR DO EFÉMERO – por Rodrigo Costa

Em Louvor do Efémero

… Continua a ter-se por sabor a injusto o fim das coisas e dos seres a que nos apegamos. E, tratando-se de coisas e seres que amemos, o desaparecimento provoca, para além do desconforto, a reformulação no modo como passamos a olhar tudo o que nos rodeia, sendo a consciência abalada pelo reconhecimento de que a nossa evolução depende da importância que atribuirmos ao efémero e, consequentemente, ao desprendimento como defesa que ameniza os ímpetos do Instinto de Posse —instala-se a certeza de ser ilusão sentirmo-nos mais do que usufrutuários. Continuar a ler “EDITORIAL – EM LOUVOR DO EFÉMERO – por Rodrigo Costa”

UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (3) – por Lúcio Valium

 

Le Mirroir, by Pablo Picasso 1932

ANTONÍMIAS

Sair da cama após duras batalhas por bocados de sono. Azuis laranja nascem na escuridão enquanto olho o rio. Escrever-te na sala de máquinas de alta temperatura. Afastado de vozes e vacuidades. Reencontrar o doente do 24 e ignorar os figurantes da sala central. Algumas antonímias na jarra do dia.

Bem vistas as coisas uma delícia num rasgo cósmico. Assim me apresento à geometria demente da eternidade. Com o casaco insondável que me deste. E me é querido na sua compostura irreal. Com sublinhados de alfaiataria ébria. Diz-me o do 24 que estou a andar mais lentamente e com cadência melancólica. Coitado dele o mesmo lhe acontece. Mas tem ainda argúcia para detectar traços novos na história repetida dos homens. Saberá ler os olhos. Quem terá sido o que terá lido pergunto-me. Conhece certamente a poesia do não escrito. As palavras que nos olham por dentro. Encontros ao nascer do dia com o inesperado. O belo nas garras de uma fêmea. O único ocupante do quarto 24 é livre em seu pensamento de bebedor solitário.

Na verdade há uma lentidão nos passos. Mas apesar do feroz ataque da insónia a disposição é boa. Ler no espelho a tua escrita foi o melhor dos vinhos. Sempre gostei de palavras em vidro. De sensuais letras vermelhas. E vi o dia nascer na rua. Continuar a ler “UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (3) – por Lúcio Valium”

5 POEMAS DE “FILHOS DE ABEL”- por André Rosa

Poema 1

Os carros correm como que eu não tenho pressa

Os carros correm como que eu não tenho pressa
As faixas separadas de mim

De repente a buzina me interessa que os carros sejam exatamente assim
Faróis ao auto!
Velocidade é fim
Parada inglesa
Parada de taipas
Parada XVI Continuar a ler “5 POEMAS DE “FILHOS DE ABEL”- por André Rosa”

D´A UTOPIA DO CARNAVAL SEM FIM – de Bernardo Almeida

Remoto

O som do mar
a ricochetear
nas fronteiras
invisíveis
da inóspita imensidão

Chão em desintegração
queda, apupo, alienação
E o oceano, em derrisão,
impassível – a compor
a canção da criação
do infinito
Íntima transformação
no ínfimo átimo universal Continuar a ler “D´A UTOPIA DO CARNAVAL SEM FIM – de Bernardo Almeida”

ESCRITOS DE LUZ E DE SOMBRA – por Cassiano Russo

by Ondosan Sinaa

O Espírito do Niilismo

Eu sigo o caminho das nuvens escuras. Sou como o Sócrates de Aristófanes. Sim, sou um sofista. Minha função é levar a dúvida aonde houver fé. Mas não se enganem, meus senhores, não sou um pregador, sou apenas alguém que duvida. Só isso. Nas horas de folga, duvido de mim mesmo, pois carrego o espírito da dúvida, que dissemino por todo o globo. E vocês, com suas certezas, precisam entender que fabulações de mau gosto não são melhores do que a estória de chapeuzinho vermelho. Eu não sou o lobo mau que devora a avozinha.

Continuar a ler “ESCRITOS DE LUZ E DE SOMBRA – por Cassiano Russo”

A VIAGEM DO ELEFANTE – por Celso Gomes

A VIAGEM DO ELEFANTE         

Em maio deste ano, publicamos na Athena o artigo Quem Porfia Mata a Caça, no qual procurávamos analisar o romance O Homem Duplicado de José Saramago. O tempo passou, outras leituras vieram e me esqueci por completo do escritor português até que li uma notícia antiga sobre sua doença em um jornal do Rio de Janeiro, meses antes, de Saramago ressurgir nos cadernos literários brasileiros com entrevistas e um novo livro publicado: A Viagem do Elefante. Continuar a ler “A VIAGEM DO ELEFANTE – por Celso Gomes”

RESENÃ A “PUPILAS DE LOCO” DE VICTORIA MORRISON – por Claudia Vila Molino

Leer este libro implica adentrarse en la pequeña y gran muerte, como sombra que levita en forma trascendente y no opone resistencia. Sabiendo que en nuestra cultura occidental la actitud frente al suceso de la muerte lleva consigo una gran carga de temor, desgarramiento y dolor frente a un hecho ineludible, como es enfrentarse cara a cara con el temor a lo desconocido. Debido a esto, asombra esta hablante quien transita desde el inframundo hacia el exterior, en cierta medida su poética posee sesgos del gótico, llevado a nuestra época contemporánea. Ella descansa en las aguas mortuorias adquiriendo naturalidad y como una transeúnte con experiencia en estos lugares se desplaza hacia la vida y luego vuelve a sumergirse en los hábitos del antiguo mundo. Continuar a ler “RESENÃ A “PUPILAS DE LOCO” DE VICTORIA MORRISON – por Claudia Vila Molino”

TEM PATRICIO NOS SETS BRASILEIROS – por Danyel Guerra

FERNANDO DE BARROS (Foto: Leo Feltran)

“Silvino Santos não foi mais um nome para os empoeirados arquivos de cineastas primitivos. Soube sempre colocar sua consciência profissional acima de quaisquer especulações esteticistas”           

                                 Alex Viany

Em Portugal, está ainda por inventariar e historiar, de modo sistemático, abrangente e rigoroso, a muito estimável contribuição dos imigrantes lusos para o fomento, incremento e desenvolvimento do cinema brasileiro. Continuar a ler “TEM PATRICIO NOS SETS BRASILEIROS – por Danyel Guerra”

UM GATO É UM GATO É UM GATO – por Fernando Martinho Guimarães

 

by kirsten bühne

Do gato se pode dizer o mesmo que se diz da tradição: já não é o que era. Mas como o gato não faz a mínima ideia do que isso quer dizer, continua sendo o que sempre foi, o único ser que nos olha sempre de cima para baixo. Na impossibilidade de o domesticarmos, tudo indica que o gato tomou, algures no tempo, talvez há nove mil anos, a iniciativa de nos domesticar. A medida mais recente é a invenção da internet e das redes socias, cuja serventia mais prolífica consiste no facto de podermos partilhar pequenos filmes de e com gatos. Neste processo, não é de desprezar o filme Aristogatos que nos faz crer que toda a gente quer ser gato. E, porque esta metamorfose está destinada ao fracasso, ficamo-nos pelo arremedo de ter um gato…em casa. Trata-se, como é fácil de ver, de mais uma estratégia de gato. Continuar a ler “UM GATO É UM GATO É UM GATO – por Fernando Martinho Guimarães”

POESIA – de Francis Kurkievicz

 

MAGO

Na floresta para Waldberta
O guia perde o poeta.
Na serpentecostal selva remotta
Um criancião paracleto
O aguardava com sinais cristântricos.
Do cóccix à pineal
Pousou o mestre a mão
E alçou alucifeéricos fogos pecúlios
Despertando-lhe uma pedagogia petrográfica aprendiz.
E o poeta petiz
Reencontrou-se guia apóstata
Ifá de Orumilá.
Axé! Ave! Amém!

Continuar a ler “POESIA – de Francis Kurkievicz”

TRÊS TEMPOS POÉTICOS – de Henrique Miguel Carvalho

by Plato Terentev

CONVIDADO

ao cair
            do astro maior
aguardo,
             felicitações
             remotas

que pelo
            nome
nunca o dizem,
             até que
             — é sempre assim,
um estranho
             de maneiras
             inconcretas Continuar a ler “TRÊS TEMPOS POÉTICOS – de Henrique Miguel Carvalho”

POESIA de – Lua Pinkhasovna

 

Espelho de Afrodite

Entre constelações, esferas rochosas, violentas estrelas mortiças e cintilantes cometas, nascer Vênus pode ser considerado uma afronta ao restante dos planetas
Pisando em trompas, ventres, ovários e vulvas e aquela mistura que poucos sabem ao certo o nome, lambuzo-me de sangue menstrual derramado nas ruas
Há polícia? O que há? Será que alguém me escuta? É claro que não, eu sou notícia corriqueira de uma realidade fantasticamente banal
O sangramento da violência não é repudiado, apenas é visto com asco aquele que mostra que sou um ser próprio, forjada em minha natureza
sem ser sexy, sendo apenas espécie
e que sinto por fora e por dentro me desmanchando em vermelho Continuar a ler “POESIA de – Lua Pinkhasovna”

A ÚLTIMA CEIA COM AS ESTRELAS – por Madalena Medeiros

“The Sacrament of The Last Supper”by Salvador Dali

 

Na eternidade boreal…

Vislumbra-se rumos dissipados em névoas!
Fragrâncias fortes e inesquecíveis,
Patentes num céu boreal.
Onde vou cear e adormecer esta noite?

Volvido nos rodopios da noite boreal,
As minhas Asas esbatem-se, num
Céu turquesa e anil, reluzem
beijos eternos de seres florescentes.

Felizardos dos eternos olhos!
Sentados em estrelas, donos
De um universo escuro e eterno,
Pincelam singelas e extemporâneas vidas.

Eternidade boreal! És sobejamente,

Luz de milhares de anos,
Despertar do adormecido,
E de estrelas que cintilam
aos olhos famintos de indignos de ti!

♣♣♣

ALCANÇADA A TUA LUZ, ELA É…

Mundo invisível, leve e solto
Em que as penas, são POESIA!
Onde a alvura é daltónica
Aos olhos do Ser espiritual…

Ouvem-se Gargalhadas e correrias,
nas estradas de luz em série!
Avistam-se Campos de feno matizado,
Em telas exuberantes e infindáveis..

 

Continuar a ler “A ÚLTIMA CEIA COM AS ESTRELAS – por Madalena Medeiros”

7 POEMAS DO CORAÇÃO (…) – por Maria Toscano

… de trevos e rosas imaculadas
by hernan pauccara

1.

há muitas palavras para mentir e apenas uma para a verdade.
no jardim das maravilhas da minha vida
jazem vários caules hercúleos,
eternamente iluminados pela seiva
interna
a correr desde o coração.
morrerei já não jovem, sei-o agora.
e do passar dos tempos sei, também agora,
que as convenções podem matar o brilho de um olhar
uma covinha no rosto
um arrepio na nuca.
só que nunca o amor será vencido.
mora em lugar altaneiro
onde poucos acedem
de onde muitos desabam
– ali
ao alcance da tal palavra pura. Continuar a ler “7 POEMAS DO CORAÇÃO (…) – por Maria Toscano”

PUEDE OCURRIR – por Moisés Cardenas

by Trinity Kubassek

En el pueblo de Brujas vivía una mujer blanca de ojos negros, quien llamaba la atención de los hombres por sus senos turgentes y caderas anchas. Por su cuerpo fue objeto de halagos por parte de muchos pretendientes, quienes la desearon con fines sexuales, mas no como compañera eterna. Continuar a ler “PUEDE OCURRIR – por Moisés Cardenas”

3 POEMAS DE “AZUL INSTANTÂNEO”*- por Pedro Vale

É preciso viver sem paixões.
Mergulhar no absoluto anonimato,
Permanecer morto ou vivo até ao fim.
Aclamar o tumulto escuro e bruto.
Encenar o drama clemente e lento.
Sentir um amor ideal por anjos nebulosos.
Descobrir um novo fundo de poesia e aguardar
uma voz que nos ordene docilmente:
– Não te movas, nem te inquietes,
nem traias o que
ainda não
és.

Continuar a ler “3 POEMAS DE “AZUL INSTANTÂNEO”*- por Pedro Vale”