UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (3) – por Lúcio Valium

 

Le Mirroir, by Pablo Picasso 1932

ANTONÍMIAS

Sair da cama após duras batalhas por bocados de sono. Azuis laranja nascem na escuridão enquanto olho o rio. Escrever-te na sala de máquinas de alta temperatura. Afastado de vozes e vacuidades. Reencontrar o doente do 24 e ignorar os figurantes da sala central. Algumas antonímias na jarra do dia.

Bem vistas as coisas uma delícia num rasgo cósmico. Assim me apresento à geometria demente da eternidade. Com o casaco insondável que me deste. E me é querido na sua compostura irreal. Com sublinhados de alfaiataria ébria. Diz-me o do 24 que estou a andar mais lentamente e com cadência melancólica. Coitado dele o mesmo lhe acontece. Mas tem ainda argúcia para detectar traços novos na história repetida dos homens. Saberá ler os olhos. Quem terá sido o que terá lido pergunto-me. Conhece certamente a poesia do não escrito. As palavras que nos olham por dentro. Encontros ao nascer do dia com o inesperado. O belo nas garras de uma fêmea. O único ocupante do quarto 24 é livre em seu pensamento de bebedor solitário.

Na verdade há uma lentidão nos passos. Mas apesar do feroz ataque da insónia a disposição é boa. Ler no espelho a tua escrita foi o melhor dos vinhos. Sempre gostei de palavras em vidro. De sensuais letras vermelhas. E vi o dia nascer na rua.

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by Salvador Dali

 

PARTIR

Apagar a instituição da fórmula doida do dia. Quero que saibam da não presença nas ditas sessões inadiáveis. Ostentar a mudez. Desaparecer. E sem gráfico misturar acaso nas radiações prescritas. Acordar e deitar páginas de livros pela janela. Sair deixando a cama em desarrumo. Cigarros por apagar na gaveta. Químicos ao ar. Sapatos emoldurados por cuecas usadas. Destroçar o texto mental e seguir o avesso do lento cianeto. Uma vadiagem de corpos com vidas inventadas na estrada. Não preparar o saco. Nem a manhã.

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LINHASTEXTURAS

Limpo os olhos em telhados oblíquos. Nas grandes e espessas ramagens ondulando. Em insidiosas estruturas de metal. E filas de janelas opacas.

No cinzento tumular de paredes de mármore. Deixo sair os olhos para lá das paredes altas. Ver é uma dança de linhas. Uma matemática de luz. Arquivo de planos. Assim se olha o tempo. É como colher flores e vê-las cair à mesa como neve fina. Devagar. E depois um outro olhar nas cores desmaiadas. Assim também a ferrugem geométrica nas clarabóias.

Nos amantes o calor dos corpos junta-se à deambulação dos olhos. O sabor dos corpos desenha também o olhar.

Mas os olhos libertam-se das grades do corpo. E vagueiam sozinhos.

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LETARGIA

As sirenes cortam-me os ramos sinápticos. Esfacelam-me a circunspecção. Percorro os longos corredores como um boneco de pano. Depois de mais uma insónia. Caminho lentamente numa letargia arrogante. O corpo em desejo de lagartixa. Quietude na pedra de sol. Sossego nos olhos desfocados.

Já quase ao fim da tarde cruzo-me com o homem das frases curtas. E dos silêncios longos. Convida-me para um café sem dizer nada. Só um leve movimento de cabeça. Depois diz-me o do 24 cuida do inventário e do memorial. Não deixes o embuste adoecer os braços. Magoar o olhar. Não abandones as páginas acrescenta. Despeço-me e abraço-o levemente para sorver algum teorema invisível. Murmura ainda evita as repetições. E já subo as escadas para uma varanda no terceiro. É um sítio para inadaptados. Aí procuro um pensamento. Ocorre-me um. Usar a força de ir quando ninguém vai. Com a intensidade do verde nas rochas da maré vasa. Não é necessário pensar mais agora. Resta a leveza de ir. De fazer.

O tempo é a porta da taberna. E a inteligência da carroça acomoda os corpos.

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DESREALISMO

Mais uma noite com o diabo nos lençóis. Ando meio doido. Hoje não falei com ninguém nem quero. Sento-me na sala principal com os olhos fechados. Ouço a tagarelice doentia como uma língua desconhecida. Não li nada. Olhei um título. Cezarine. É outro estilo. Imagino-te a escrever uma palavra outra para outra palavra. Deambulo um pouco e na esquina do bar esbarro no do 24. Já tomou seis cafés. Chama-me para um canto. Ficamos sentados a falar sem tema. E diz em certo ponto da conversa real e ismos alimentaram a ganância de todos os poderes. Tudo foi glorificado nos pomposos corredores dourados. Nenhum ismo a não ser o que os nega poderá deixar-nos dormir. Todos sugados pelo holofote vil acabaram internados em alas para alienados. Galerias lucrativas. E acrescenta um desrealismo em invenção contínua é o que me vem após lamelas de comprimidos nocturnos. Não seguirei as ondas ornamentadas que conduzem ao lodo fatal.

E continua religião política finança são a face teatral do roubo desenfreado.

A escravatura está abençoada. O Cezarine era um dos nossos diz olhando o chão. Também era um desrealista. Usou uma pinha no chapéu. E não precisava de absolutos. Eu penso o do 24 delira. Sem lei enquanto centenas de utentes passam agarrados aos seus apetrechos. Todas as vozes as mesmas. Sem únicos. Pelo contrário o do 24 à sua maneira e o filho do ourives têm singularidade.

Imagino-te a dançar com eles. Com saias curtas de cigarro em punho.

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ILUSTRAMAS

A instituição está um pandemónio. Doutos bustos tentam amaciar as mentes gerais. Mas a mistura frio/quente desnorteia os ocupantes. Um em pijama gritava contra as de bata azul. Desaparecem horas dos planos. Tempo ganho. Todos tentam que não lhes roubem tempo. E ninguém tem tempo para nada. Nada de único. O almoço foi uma balbúrdia. Qualquer manjedoura é mais harmoniosa. Na cantina o do 24 quis dar com uma frigideira na cabeça do delegado. Proibiram os jornais. Pouco grave. Terá de aumentar a imaginação. Há quem saia para beber. Alguns hálitos são horrorosos. Não os dos bebedores mas os dos que falam demais. Alguns não se lavam. O secretário-chefe tem umas eloquentes e perpétuas manchas sob os olhos mortiços. Agora usa camisolas vermelhas debaixo da indumentária. O retórico-de-serviço parece ter sido banhado com uma fina película de caramelo. É um doce. Quando fala dá ideia que se baba. Alguns ficam vermelhos à sua passagem. Do destravado do 24 é que ele não se aproxima. É um homem fino o do 24. Por vezes anda com camisas sem mangas. Fuma dentro das instalações. Fica sozinho num gabinete longas horas. Sentado ao fundo não abre a boca nas reuniões. Há instantes em que parece muito fatigado mas de repente fala que nem um doido e ri-se como um desalmado. Vai consumindo substâncias incatalogadas. Não se percebe o seu corte de cabelo. Só lê escritores marginais. Não acha piada às piadas. Escreve em pequenos blocos com um coto de lápis. De bom grado abandonaria estas paredes. Há amiúde um desencanto nos seus olhos. Será qualquer coisa política ou terá a ver com literaturas penso muitas vezes quando o deixo só. Ou outra coisa mais estética. Parece que o do 24 nunca deixou de se sentir só. Mas não quero acreditar nesse ponto. Decido que será uma inquietude estética que o atormenta. Entretanto no corredor seguinte já é outro. Reinventa-se e sai dos gabinetes fedorentos como um senhor de irreprimível dimensão humana. Assim o vejo. Eu que sendo aqui um desterrado vivo as delícias da fuga nocturna. A hospedaria é o covil das ideias à solta. Talvez por isso haja noites tão inquietas como o vento endiabrado e a jangada pareça ser puxada pela carroça numa estrada esburacada. Mas não era isto que tinha para lhe dizer senhora. Pode atirar estas folhas pela janela. Que se percam nas chuvas as palavras. O que queria dizer-lhe é que a sua pele me salva. Que o calor do seu corpo me liga às raízes do tempo. Saiba a senhora que todas as manhãs a beijo dormindo. Sempre que regresso à instituição trago a sua doçura nos lábios. Gretados do vinho ou da humidade vaginal ela ajuda a sará-los. E erguendo alto a minha bandeira negra lhe digo (para que não esqueça jamais) É PRECISO EXISTIR!

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PATOLOGIA

Desculpe menina a invasão. Uma desconhecida doença me assola. São tremuras de tempo e de escrita. É como se o tempo nunca chegasse e como se nunca pudesse esquivar-me da ligação às palavras. Mesmo quando estou a viver os momentos mais felizes. As palavras sugam-me e pavoneiam-se no íntimo. O tempo repetidamente parece fugir-me. Imagino sempre um tempo que já não é aquele. Perdoe a menina a sinceridade e abençoada seja pelos anjos Oleg por me dispensar a sua atenção. Não que a queira sufocar. Mas não me importava que ficasse o dia todo a ler linhas destas mãos. Escrever um ininterrupto dia sabendo-a lendo seria de uma ebriedade inefável. Terá cura esta invulgar doença é a questão que lhe deixo. Para teses e reflexão. Conto pois com a sua ajuda para uma terapia caridosa. Seja por decreto vaginal ou hipnose pelo vinho estarei nas suas asas. Quer dizer algas.

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SONOTERAPIAS

Claro o escuro ajuda. O silêncio outrossim. Não o desarranjo mental. Senhora é sono e som o teor do telegrama. O transe sónico como erva aromática. O sono delicado enquanto travessia subaquática. Durma querida senhora das noites inquietas. Pudesse este seu devoto oferecer-lhe a mais infernal das trovoadas.

A mais demencial chuvada. Sons para encantar os recônditos líquenes do ser. E o seu dormir seria um doce abandono. Um perfume de morfina nas sinapses. Depois haveria uma frescura felina no regresso. Os dias e os ofícios veriam então os seus bailados cósmicos. Perdoe a este servo os seus desvios. E descanse a pele na areia quente. Depois espere que uma estrela-do-mar lhe penteie os cabelos e saia. Poderá encontrar-me na esplanada dos turcos. Um vinho me acompanhará ao fim do sol. Antes terei deambulado pela cidade. Em conversa íntima com seres raros. É uma linguagem muda que só alguns entendem. Aqueles com quem bebi. E agora também que assim lhe falo a senhora perceba o que não sei dizer. Mente em vadiagem urbana. Desalmados poemas nunca escritos.

Coração golpeado pela desmesurada dor dos homens. Fúria íntima contra tiranetes. O esterco desumano.

Espero-a pois senhora na sua arte feliz. O meu o seu tempo.

E dois vinhos sobre a vida.

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COVIL

Chegou o tempo das sombras. Ficar encafuado nos ofícios da cave.

Abandonar o lustroso simulacro vendido como vida. Permanecer no verde sombrio do escritório.

Sorver as frescas essências invisíveis. Silêncios e meigas coreografias. O som das margens inóspitas do grande rio. Ruas desertas de antigos pescadores. Casas esventradas por eras irreprimíveis. E árvores imensas.
Dormir num tempo réptil. Imaginar longos peixes do inconsciente. Fábricas em enciclopédias antigas. Pequenas cidades deprimidas. Escritos de antropólogo contra a servidão.

Namoro com pernas descobertas.

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ARMÁRIO

Havia uma hospedaria no mapa da cozinha
Um sono de jangada com velas de circo
Lençóis de pijama antepassado
Químicos e gavetas arqueológicas
Candeeiros em cortinas usadas
Cal nas pinturas e graxa de sapato fêmea
Havia livros exaustos aflitos
Janelas melancólicas do pó dos carris
Passos de pele desenhada
Asas de borboleta escritas de cigarro
Havia seres com o desapego de uma cabana
Camélias e escorpiões voando no espelho
Um lírio à chuva no coração dos jantares
Cadernos negros de inquietude
Suores insondáveis luas psiquiátricas
Fogo dorido e um bosque secreto
Havia uma lógica de pássaros nómadas
Fugas para ver as danças no deserto

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Lúcio Valium – Um ser em desvio, sem lugar! Um homem vivo, em desordem! Um forasteiro que nos caminhos encontrou palavras e perdeu moradas!