TEM PATRICIO NOS SETS BRASILEIROS – por Danyel Guerra

FERNANDO DE BARROS (Foto: Leo Feltran)

“Silvino Santos não foi mais um nome para os empoeirados arquivos de cineastas primitivos. Soube sempre colocar sua consciência profissional acima de quaisquer especulações esteticistas”           

                                 Alex Viany

Em Portugal, está ainda por inventariar e historiar, de modo sistemático, abrangente e rigoroso, a muito estimável contribuição dos imigrantes lusos para o fomento, incremento e desenvolvimento do cinema brasileiro.

A crônica dos feitos lusitanos nas latitudes tupiniquins  remonta mesmo às épocas primevas da arte sétima. E o prócere Aurélio da Paz dos Reis desempenha papel de protagonista. Em janeiro de 1897, o pioneiro, nascido no Porto, filmou um documentário no Rio de Janeiro, captando imagens da realidade surpreendida na Avenida Rio Novo. Nem dois meses se tinham passado sobre o dia 12 de novembro de 1896, data em que o cinematografista desvelou, na sua cidade, na tela do Teatro do Príncipe Real, os seminais experimentos concebidos com o Kinematógrafo Portuguez (KP). Os holofotes se acendiam para ‘Saida do Pessoal Operário da Fábrica Confiança’, um minuto de maravilhamento.  KP, assim, designava ele o mirabolante mecanismo engendrado pelos irmãos Lumière, o Cinématographe.

O Leal pioneiro

Após este prólogo, a aventura cinematográfica dos descendentes de Seu Cabral se iniciaria no dealbar do século XX, tendo como primeiro agente o minhoto António Leal. Nascido em 1877, em Alvarães, município de Viana do Castelo, Leal aportou às Terras de Santa Cruz com 21 anos, trazendo na bagagem o diploma do Magistério Primário, obtido  em Braga. Antes de se dedicar ao cinematógrafo, foi professor do ensino primário, montou um ateliê de fotografia e trabalhou como fotojornalista na revista ‘O Malho’. Tendo apre(e)ndido o essencial da técnica fotocinegráfica, encetou uma prolífera carreira nos plateaux.

A 5 de novembro de 1905, Leal exibiu uma série de filmes de atualidades, curtas naturalmente imberbes e elementares. Um dos mais significativos registros testemunha a inauguração da carioca Avenida Rio Branco, a 7 de setembro de 1904, por Rodrigues Alves, então presidente da República do Brasil.

Três anos depois, na sequência da abertura de inúmeras salas de projeção, ele fundou a Photo Cinematographica Brasileira e a Labanca, Leal & Cia, ao lado do italiano Giuseppe  Labanca. Em sucessão, Leal colocou no cartaz as fitas ‘Duelo de Cozinheiras’, ‘A Mala Sinistra’, ‘Nas Entranhas do Morro do Castelo’,  ‘Os Capadócios da Cidade Nova’, ‘Os Guaranis’ –codireção com Labanca-  e produziu  ‘Os Estranguladores’(1908).

Este último, dirigido pelo italiano Francesco  Marzullo, com cerca de 40’ de duração, seria a primeira fita a explorar  o filão dos enredos de crimes, sucessos noticiados com estrépito pela Imprensa, que apaixonavam a opinião pública. Além dessa proeza, ‘Os Estranguladores’ está catalogado como a primeira obra de ficção do cinema nacional.

Destaque-se, também, na safra do cineasta vianense, a direção de fotografia em ‘Noivado de Sangue’  (1909), igualmente suscitado por ocorrências do foro criminal, decalcada de reportagens dadas a estampa na Imprensa sensacionalista. Em 1915, Leal assinou  ‘A Moreninha’, adaptação da novela homônima de Joaquim Manuel de Macedo. No ano seguinte, o hiperativo produtor/diretor correu as cortinas para ‘Lucíola’, um estimulante êxito de público, adaptando o quinto romance de José de Alencar. Pujante e dinâmico, este precursor  manteria ativo seu labor fílmico até 1947, ano de seu falecimento.  Atividade que se estendeu à representação. Nesse capítulo, viajou para a “terrinha”, tendo sido escalado para o cast de ‘Os Crimes de Diogo Alves’, 1911, de João Tavares, segundo filme de ficção português, onde interpreta o papel de um médico.

O vovô Francisco

Pertencem, outrossim, a um cineasta vindo de terras d’além mar os louros de ser o autor do mais antigo filme de ficção brasileiro preservado nos arquivos da Cinemateca Nacional. Seu nome é Francisco Santos. Antes de capitular ao fascínio da novel arte, ele foi empresário teatral e ator em Pelotas (Rio Grande do Sul).

Uma cópia sobrevivente, com pouco mais de 4’, foi descoberta e recuperada no curso de uma pesquisa do historiador  Antônio Jesus Pfeil. A comédia ‘Os Óculos do Vovô’ (1913), onde Seu Chico desempenha a personagem principal, salienta-se da safra da Guarany Fábrica de Fitas Cinematográficas. Entretanto, ele dirigiu também os documentários ‘A Mulher do Chiqueiro’ e ‘Marido Fera’, baseados em fatos verídicos, relatados, de modo exagerado, nos tabloides coevos.

A Santos é também creditada  a direção de ‘O Crime de Banhados’, 1914, alegadamente a primeira longa-metragem –projetada em quatro capítulos-, do cinema nacional. Um drama policial, que reconstitui uma chacina ocorrida em abril de 1912, na Fazenda do Passo da Estiva, no município de Rio Grande, Rio Grande do Sul.

Silvino Santos

Os arquivos históricos do nosso cinema creditam igualmente o nome de Silvino Santos, nascido em Cernache do Bonjardim, Sertã,em 1886. Emigrando para o Brasil, com 13 anos adolescentes, passou a residir em Belém do Pará, onde se dedicou a atividades comerciais, tal como a maioria de seus compatriotas. Mudando-se, em 1908, para a cidade de Manaus – na época a faustosa e reluzente capital da borracha-, Santos orientou seus talentos para a fotografia e sem demora partiu no “rastro do El-Dorado” cinematográfico. É da sua autoria o documentário ‘Amazonas, o Maior Rio do Mundo’, de 1918. E dirigiu o cultuado ‘No Paiz das Amazonas’ (1921), cumulado de aplausos, quando exibido no Cinema Pathé, ao Boulevard des Italiens, em Paris, e em outras cidades europeias. Um filme de culto, com lugar obrigatório, sem favores, na memória da sétima arte planetária.

Cineasta da selva! Eis o cognome com que Selvino, perdão, Silvino se viu crismado por críticos e historiadores. À maneira de um Glauber Rocha avant la lettre (uma ideia na cabeça, uma câmera na mão, os pés na chã realidade), ele ousou ser o primeiro a irromper Amazônia misteriosa adentro, atravessando hirsutas florestas e caudalosos rios, contatando com tribos indígenas. Inusitadas revelações memorizadas no celulóide numa década de epopéias.

Eduardo Chianca de Garcia

Chianca e de Barros

E a saga lusíada continuou, nos anos 40, tendo como herói um dos realizadores em maior destaque em Portugal na década de 30. Na senda do êxito de ‘Aldeia da Roupa Branca’, 1938, repercutido nos écrãs brasileiros, Eduardo Chianca de Garcia foi contratado pelo seu confrade, o prestigiado Adhemar Gonzaga. O mentor da Cinédia confiou ao diretor português a adaptação do romance ‘Pureza’, de José Lins do Rego. No ano seguinte, 1941, ele realizaria ’24 Horas de Sonho’  para a mesma companhia, protagonizado por Dulcina de Moraes, uma das grandes referências, ao tempo, do teatro brasileiro.

Seria sua despedida dos sets e das telas. Chianca viria a dedicar-se a direção de shows no Casino da Urca, no Rio de Janeiro, e a crônica jornalística em periódicos brasileiros e portugueses (’Diário Popular’).  E igualmente a concepção e encenação de cortejos e desfiles alegóricos e históricos. É da sua lavra o desfile comemorativo do quarto centenário da fundação, a 26 de março de 1549, de Salvador da Bahia, saudado com boas críticas dos media.

O derradeiro contacto de Chianca com o cinema ocorreria em 1952, assinando o argumento de ‘Appassionata’, de  Fernando de Barros, naquele que assoma como  o registro mais logrado deste seu pupilo, tendo merecido uma positiva nota crítica do ‘Le Monde’.

O lisboeta de Barros viajara com Chianca para ser seu assistente direcção em ‘Pureza’. Um diligente braço direito. Quando viajou para o Rio, Fernando previa regressar a Portugal no final da edição. Todavia, acabou  se “appassionando” pelo país e nele se radicou até a morte, em 2002, festejado como o mais notável crítico e consultor de moda masculina do Brasil(1).

Ousando pôr em prática seus dotes na direção, Fernando assinaria ‘Inocência’, em 1949, ao lado de Luiz de Barros, uma produção da compatriota Carmen Santos. Contratado nos inícios dos anos 50 para o cargo de produtor-geral da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, com sede em S.Bernardo do Campo ( S.Paulo), de Barros coabitaria ainda alguns meses com o diretor-geral, o lendário cineasta Alberto Cavalcanti.

Duas linhas apenas para evocar o nome de Armando de Miranda. Após assinar o rumoroso ‘Capas Negras’, 1947, estrelado por Amália Rodrigues e Alberto Ribeiro, Miranda emigraria para o Brasil, em 1951. Nos 20 anos seguintes, rubricou seis filmes que, sublinhe-se, se inscrevem no segmento do cinema comercial  sem  grandes veleidades artísticas.

Julgo que me será perdoado o convencimento de ter logrado, com este breve resumo histórico, lançar alguns lampejos de luz sobre os cometimentos de cidadãos portugueses nos estúdios e ecrãs do país tropical.

Nota
Mais detalhadas informações sobre a vida e a obra de Fernando de Barros estão disponíveis na cronibiografia ‘O Português do Cinemoda’, de Danyel Guerra, editada em 2015, pela Douro Editorial.

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Danyel Guerra nasceu na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, Brasil,  num novembrino dia de Vênus, sob o signo de Escorpião. No ano em que Lygia Fagundes Telles publicava ‘Ciranda de Pedra’, seu romance inaugural.
Editou e/ou publicou os livros ‘Em Busca da Musa Clio’ (2004), ‘Amor Città Aperta’ (2008), ‘O Céu sobre Berlin’ (2009), ‘Excitações Klimtorianas’ (2012), ‘O Apojo das Ninfas’ (2014), ‘Oito e demy’ (2015), ‘O Português do Cinemoda’ (2015), ‘Os Homens da Minha Vida’ (2017) e ‘Corpo Estranho’ (2021).