EDITORIAL – A ARTE DA RESISTÊNCIA – por Jonuel Gonçalves

 

Fotografia de Paulo Burnay

 

Hipótese de trabalho sobre a guerra na Ucrânia *

O conflito armado na Ucrânia é um daqueles que tem várias datas de começo e não se sabe quando será a data de encerramento. Para o mundo, começou há um ano com a invasão russa, mas para os ucranianos vem pelo menos de 2014 com mudanças de poder em Kiev que desagradaram ao vizinho e às forças internas defensoras de relações especiais com ele. Continuar a ler “EDITORIAL – A ARTE DA RESISTÊNCIA – por Jonuel Gonçalves”

ATENA – por Filomena Barata


Escrever é como fazer uma tapeçaria. Escolher um nome como Atena para uma revista é assumir também o valor a cada letra e com ela construir com palavras, com pontos e nós, uma narrativa.

Mas lá iremos, pois há que lhe contar um pouco a história da divindade.

Na Mitologia, são conhecidas as várias esposas e amantes de Zeus/Júpiter.

Entre elas, lembramos a primeira, Métis, cujo atributo era a prudência.  E recordaremos o nascimento insólito da primogénita Atena. Continuar a ler “ATENA – por Filomena Barata”

ANTÓNIO – Cassiano Russo

Às vezes acontecia de Antônio Moura ter bloqueios criativos. Olhava para o papel e não conseguia escrever uma única palavra. Ele se sentava em frente à máquina de escrever, pensava em vários acontecimentos, porém nenhum deles lhe parecia digno de ser registrado. Nessas horas, era como se Antônio não soubesse mais transpor para o texto a vida que ele tanto admirava, o que lhe deixava à deriva de seus pensamentos a vagar pelo mundo. Era outro nessas situações de crise. Não, ele não encontrava inspiração nos momentos em que mais precisava escrever. Tinha crônicas a entregar para três jornais, sabia do que pretendia tratar, mas quando era chegada a hora do trabalho da escrita, então ele não era mais do que uma criança que ainda não conhecia as primeiras letras. Ficava horas se contorcendo em cima de uma frase, que ele reescrevia e apagava, por não encontrar a fórmula perfeita, pois não sabia que não há perfeição nesta vida, muito menos na escrita, algo tão pessoal e único, com todas as imperfeições de cada autor em sua labuta com as letras. Não, Antônio almejava a perfeição, queria ser um deus na arte de escrever. Jamais aceitaria um texto feito de uma tacada só. Como escritor, ele buscava filigranas. Por isso passava um dia inteiro para terminar um parágrafo, que para ele estava sempre incompleto e que ia para a redação assim mesmo, porque precisava do emprego. Continuar a ler “ANTÓNIO – Cassiano Russo”

SPAGHETTI E SOMBRINHAS JAPONESAS – por Danyel Guerra

Lisboa, 1981- Glauber Rocha tendo ao fundo um cartaz de ‘Raging Bull’, de Martin Scorsese.

   

“Ida Lupino, John Cassavetes e Glauber Rocha foram uma influência  fundamental para a minha formação. Seu Cinema continua sendo  uma inspiração para mim, enquanto cinéfilo e cineasta”   

 Martin Scorsese

 

 Feliz aniversário, Glauber!   

 Num incerto dia de um outono dos anos 70, Juan Luis Buñuel passeava por Saint-Germain-des-Prés, quando, de súbito, alguém cutucou seu ombro. Ao se virar,  logo reconheceu o cidadão. Trazia um pacote nas mãos e intimou Juan a acompanhá-lo. “Ele parecia ansioso, aflito mesmo”. Em passo acelerado caminharam até à margem esquerda do Sena. Continuar a ler “SPAGHETTI E SOMBRINHAS JAPONESAS – por Danyel Guerra”

TEXTOSTERONAS POLITICAMENTE IN CORRETOS – por Danyel Guerra

Desabafo da mãe de Marx- Em vez de estudar o capital, meu filho deveria ganhar o capital,

De um modo geral, a política se pode comparar aqueles filmes que contêm cenas eventualmente chocantes. Só que, no caso da política, são obscenas garantidamente chocantes. Continuar a ler “TEXTOSTERONAS POLITICAMENTE IN CORRETOS – por Danyel Guerra”

PETRARCA: AMANTE INFELIZ – por Eric Ponty

Laura e Francesco Petrarca

O idioma vernacular que ele usou ecoa em nossa linguagem própria, tanto literária como musical; e de sua personificação do amante infeliz como anti-herói se tornou um de nossos principais modelos. Petrarca foi um grande poeta lírico, mas também um psicólogo talentoso, cujas pesquisas sobre literatura das épocas e em sua própria psique o atraiu profundamente para as regiões onde a verdadeira culpabilidade e inocência são encontradas. Continuar a ler “PETRARCA: AMANTE INFELIZ – por Eric Ponty”

RECENSÃO DE “CALIFORNIAS PERDIDAS” – por Fernando Martinho Guimarães

Califórnias perdidas:
uma antologia de poesia açoriana

Californias perdidas é uma antologia de poetas e de poemas. O subtítulo diz-nos exatamente isso: Una muestra de poesía azoriana. De Antero de Quental a Emanuel Jorge Botelho. Nela se acolhem alguns dos poetas mais representativos do que, em cerca de século e meio, é exemplarmente configurável como exibição de uma identidade poético-literária e cultural – a assumida «açorianidade» a que Nemésio imprimiu cunho. Assim, para além dos nomes que constam do subtítulo, encontramos na presente antologia Roberto Mesquita, Vitorino Nemésio, Pedro da Silveira, Natália Correia, Eduíno de Jesus, Emanuel Félix, Martins Garcia, Álamo de Oliveira, J. H. Santos Barros e Urbano Bettencourt. Continuar a ler “RECENSÃO DE “CALIFORNIAS PERDIDAS” – por Fernando Martinho Guimarães”

POEMINHOS (51-60) – por Jaime Vaz Brasil

Foto by Edlson Silva

 

 

 

 

 

 

 

51.

Nenhum poema
esgota o tema.

Mas, quando bom,
põe a verdade

em estado
de estando…

52.

Dante, à porta do inferno:
– “Deixai, vós que entrais,
toda a esperança”.

Quintana retrucou, na entrada:
– “Esperança é uma espera que não cansa”.

Eu?
Ora… sentei num banquinho
e não disse nada. Continuar a ler “POEMINHOS (51-60) – por Jaime Vaz Brasil”

UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (5) – por Lúcio Valium

COMPASSOS

Somos os dois irmã. Passos lentos nos dias roubados em terra de além Tejo.

Tapas ao cair do escaldante sol. Nas bandas do azul sorvem nossas narinas ávidas. Há vidas, logo embelezem-se. Os olhos com planícies sem fim. Queijo muito fino. Aterrar lentamente. Uma folha na brisa. Nada de utopias nem psicanálise. Esquecidos exames institucionais e ignoradas recomendações. Só apalpar o instante. Inspirar as manhãs e seguir de mansinho. Sem pressa. Em trilhos vazios. Onde árvores antigas repousam. Foram arrumadas ali pequenas casas. E histórias de dor. Que a pintura oficial vai apagando. Com suas escrituras vampiras. Olhamos e sentimos a vida. O que ali sangrou. Continuar a ler “UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (5) – por Lúcio Valium”

ESCREVER- por Manuel Igreja

Escrever é procurar as palavras que urgem para que se desenhe o que sente. É entrelaçar os fios de que a alma é feita na vida que se tece enquanto esta vai acontecendo em madrugadas surgidas para serem vividas. É pontear as costuras onde por vezes se rasga o viver. É deleitar e sofrer. É clarear, mas também pode ajudar a escurecer. Continuar a ler “ESCREVER- por Manuel Igreja”

TRADUÇÃO E LEITURA DE POEMA DE EUGÉNIO DE ANDRADE – por Maria Toscano

TRADUÇÃO E LEITURA DE POEMA

DE EUGÉNIO DE ANDRADE, 

POR MARIA TOSCANO

VER CLARO
.

Toda la poesía es luminosa,
hasta
la más oscura.
El lector es el que tiene a veces,
en lugar de sol, niebla dentro de sí.
Y la niebla nunca deja ver claro.
Si regresar
otra vez y otra vez
y otra vez
a esas sílabas alumbradas
quedará ciego de tanta claridad.
Alabado sea si allí llegar.
.
Eugénio de Andrade – Prémio Camões 2001.
In “Los surcos de la sed”. Ed. Fundação Eugénio de Andrade, 2001.
Versión al castellano: Maria Toscano, Figueira da Foz, Portugal. 13 enero / 2023.

♣♣♣

VER CLARO
.

Toda a poesia é luminosa,
até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.
.

Eugénio de Andrade – Prémio/Premio Camões 2001.
In “Os sulcos da sede”. Ed. Fundação Eugénio de Andrade, 2001.

 

♦♦♦

Maria (de Fátima C.) Toscano, Doutora em Sociologia. Docente Universitária, Investigadora e Formadora. Coach e Trainer em Programação Neurolinguística.

 

 

“Por Descartes” de Yasmín Navarrete – Recensão de Moises Cardenas

El pensamiento del poemario Por Descartes de Yasmín Navarrete

 René Descartes fue un héroe del pensamiento, porque sus palabras las llevó más allá del papel, no solo dejó sus escritos, sino que plasmó una frase que dejó en el pensamiento de sus seguidores, pero también de todas las almas terrenales, al moverlas con la siguiente frase: «Pienso, luego existo», palabras que quedaron para la historia, ya que el filósofo en un estado de contemplación las escribió en su mente para dejarla escritas. Dicen que las palabras se la llevan el viento, pero lo que refirió Descartes, sin duda tuerce al ser humano, quienes van y vienen como trashumantes, algunos piensan y otros no, porque viven en sus propias hecatombes. No obstante, Descartes usó este pensamiento para referirse a la duda como estado de búsqueda de la verdad. Además, el dudar era una forma de hallar las respuestas a sus pensamientos. Por lo tanto, surge la pregunta, ¿dudamos? Y esto me trae el recuerdo de un profesor de filosofía que tuve cuando estudiaba la maestría en Filosofía, quien en una ocasión se me acercó y con una mirada taciturna y voz parsimonia me preguntó:
—¿Usted duda?
Cuando me hizo esa interrógate quedé pensativo, por lo tanto, Descartes hizo mella en mí, en el profesor y en muchos otros más, entonces pasaron los años y seguí pensando en Descartes, hasta que me topo con un poemario maravilloso, filosofal, existencial y pensamiento como lo es el libro Por Descartes de Yasmín Navarrete, publicado por Editorial Signo. La poetisa se conmueve con el filósofo y refleja su pensamiento de una forma somera, pero también intuitiva porque ella explora la duda, incluso se apodera de su ser, para debatirse sobre sus pensamientos que inclinan en su corazón.
La poesía de Yasmín Navarrete va desde la duda hasta la preocupación por las cosas, donde el amor está en sus versos, preguntándose por ese sentimiento que viaja en los astros. En el poema «Estrella oscura» la poetisa dice: Continuar a ler ““Por Descartes” de Yasmín Navarrete – Recensão de Moises Cardenas”

A IMPORTÂNCIA DA ECONOMIA CIRCULAR – por Ricardo Amorim Pereir

Tive já a oportunidade de, nesta Revista, comunicar sobre a importância da prática da reciclagem. Retomarei este tema. De uma forma crescente, as sociedades têm despertado para o facto de caminharmos por um trilho de insustentabilidade, no modo como exploramos os recursos naturais e poluímos o ambiente. É do senso comum que uma redução nos níveis de consumo contribui para o mitigar deste mal.  Este discurso anticonsumo, que não ouso contrariar, todavia, parece-me pecar por não conferir a devida atenção à vertente da chamada economia circular. Não me canso de referir que a apropriação do tema ambiental pelas correntes ideológicas das esquerdas extremadas, anticapitalistas, possivelmente, é parte do problema e não da solução. Entendamo-nos – a questão ambiental deveria estar acima de qualquer conflito ideológico. Trata-se de uma matéria de sobrevivência da espécie e de manutenção de qualidade de vida da mesma. Politizar o tema ambiental seria equivalente à politização de uma hipotética estratégia científica, desenhada com o fito de, no sentido de se evitar uma catástrofe global, se desviar um asteroide que se aproximasse do nosso planeta. Uma total falta de sentido, portanto. Continuar a ler “A IMPORTÂNCIA DA ECONOMIA CIRCULAR – por Ricardo Amorim Pereir”

Poemas* de Rolando Revagliatti

 

*Poemas de Rolando Revagliatti de su libro ‘Obras completas en verso hasta acá’:

 

Es un chico: no entiende

1

Duerme
                    mujer enroscada: se quedó dormida:
mujer que se queda dormida.

2

Ellos piensan que mi problema es que soy un idiota
Se equivocan: mi problema es que no soy un idiota.

3

Cuando sea grande mi mamá me va a conseguir una novia.

4

Diana Dors
inmiscuye sus tetas de nácar
en mi sopa
¡yeeeeaah!… Diana. Continuar a ler “Poemas* de Rolando Revagliatti”

ADALARDUS – por Rosa Sampaio Torres

 

 Introdução

Em número anterior desta revista Athena havíamos publicado artigo dedicado ao mítico bispo Wilkarius, “o Espada Gloriosa”, que com outros três cavaleiros de muito prestígio apoiaram a descida do Imperador Carlos Magno para a Itália no século VIII, tendo em vista auxiliar o papado a enfrentar os lombardos. Nesta oportunidade havíamos sugerido a associação deste grupo de dignitários com os quatro cavaleiros lembrados pelo historiador Giovanni Cavalcanti no século XV, varões muito religiosos saídos das proximidades de Colônia, do magnífico Castelo de St. Gilles (1). Continuar a ler “ADALARDUS – por Rosa Sampaio Torres”

PROFUNDIDADE E AUTOCONHECIMENTO – por Teresa Escoval

Foto by Francesco Ungaro

 

“Quem olha para fora, sonha. Quem olha para dentro, desperta.” (Carl Jung)

Ser profundo é buscar o desenvolvimento interno e externo, integrando constantes processos de ajustamentos criativos, tomando para si próprio a mudança, ao mesmo tempo que se processa o equilíbrio e a auto-regulação do corpo/mente/alma. Continuar a ler “PROFUNDIDADE E AUTOCONHECIMENTO – por Teresa Escoval”

A CARAMELA – por Via Plaza

 

Escapei enquanto ele se descuidou e deixou o portão aberto, não sei nem como eu fiz para correr com todos os filhotes que carrego na barriga. O homem que me maltratava naquela casa repetia que enquanto eu parisse, ele iria matar os meus bebês porque eram lixo: “Que nem você, cadela feia”, dizia ele com um cinto na mão prontinho para me bater com raiva. Continuar a ler “A CARAMELA – por Via Plaza”

HOMENAGEM AO POETA NICOLA MADZIROV- por Viviane Santana Paulo

 

Nicola Madzirov, poeta, editor e tradutor. https://www.poetryfoundation.org/poets/nikola-madzirov

A liberdade do não-pertencimento na

poesia de Nikola Madzirov

Em uma bela tarde, com a silhueta do vulcão Mombacho acima dos telhados das casas, na famosa Calle La Calzada, em Granada, na Nicarágua, conheci o poeta macedônio Nikola Madzirov. Na ocasião do VIII Festival Internacional de Poesia, em 2012, alguns poetas e eu tomávamos cerveja, sentados a mesa na calçada. Falamos de poesia brasileira e de outras nacionalidades, sobre ser poeta e muitas risadas ecoaram pela estreita ruela. Nikola Madzirov nasceu em 1973, em Estrúmica (a maior cidade no leste da Macedônia do Norte, perto da fronteira com a Bulgária), proveniente de uma família de refugiados das Guerras dos Balcãs. Ele conta que aos 18 anos, o colapso da Iugoslávia provocou uma mudança em seu senso de identidade – como escritor, levando-o  a reinventar-se em um país que se via como novo, mas que ainda era alimentado por tradições históricas profundamente arraigadas. No ano seguinte, Madzirov participou do Festival Internacional de Berlim e me presenteou a tradução para o alemão da coletânea de poemas Pedra Deslocada (Versetzter Stein). Assim traduzi alguns de seus poemas (do alemão para o português), publicados no Jornal Rascunho, em 01/10/2012. A revista semanal alemã Der Spiegel comparou a qualidade da poesia de Madzirov à de Tomas Tranströmer. Seus poemas foram traduzidos para mais de quarenta idiomas. Ele recebeu vários prêmios nacionais e internacionais, é editor da edição macedônia da Antologia da Poesia Mundial: Séculos XX e XXI, e um dos coordenadores do site internacional de poesia Lyrikline, com sede em Berlim, além disso, é membro do júri do maior prêmio internacional para este gênero literário, o Prêmio Griffin de Poesia, do Canadá. Continuar a ler “HOMENAGEM AO POETA NICOLA MADZIROV- por Viviane Santana Paulo”

DOIS CONTOS FANTÁSTICOS SOBRE A MÚSICA POPULAR BRASILEIRA – por Wander Lourenço

Chico Buarque e Caetano Veloso

I

O apoteótico e hipotético duelo entre Caetano Veloso e Chico Buarque de Hollanda

Dentre a produção musical brasileira, há de se destacar a excelência das letras trabalhadas por exímios artesãos do vocábulo que, em alguns casos, migraram da poesia de livro de modo a alavancar a MPB à categoria de World Music mais aclamada em todo território interplanetário, desde quando a canção “Coisinha do pai”, do sambista Jorge Aragão, estourou nas rádios marcianas nos fins do século passado. O que os extraterrestres não têm ideia, no entanto, é que entre os mestres do cancioneiro brasílico há inúmeras discordâncias sobre fatores mais diversos, que ora são veiculadas nos noticiários da Via Láctea; ora são silenciados pelas formadores de opinião pública. Continuar a ler “DOIS CONTOS FANTÁSTICOS SOBRE A MÚSICA POPULAR BRASILEIRA – por Wander Lourenço”

EDITORIAL – IDEIAS SOBRE A POBREZA – por Maria Toscano

Urgem ideias-comuns menos pobres
sobre a pobreza

Reflectir sobre a pobreza nesta época de Natal – desafio da Direcção da Revista Athena a que me cumpre corresponder como estudiosa dos processos de saída — ou requalificação social — de quem é reconhecido como tendo sido pobre.

Começo por recordar noção sólida e transversal aos diversos estudos sociais sobre o fenómeno: a pobreza é um problema multidimensional.

Quem não sabe disto? Quem pode afirmar que nunca ouviu o enunciado das diversas carências que se acumulam num modo de vida dito pobre? Ou, trocando por miúdos: nem a condição social para se ser pobre é linear, nem é gerada -decorrente-causada apenas por um factor.

Quem nunca contactou — numa notícia radiofónica, num debate televisivo, num documentário, mesmo num filme ou numa canção — com o relato da acumulação de carências ou da passagem da ‘falta’ de um recurso à centrifugação da vida pela reprodução da escassez ou ausência de recursos?

Enfim: quem nunca se apercebeu da dor múltipla em que o quotidiano se transforma quando se empobrece por desemprego, ou por um divórcio/separação, ou por maus tratos de cônjuge, ou por dificuldade ou desorganização entre os gastos feitos e os possíveis?

Acrescento: sendo a pobreza vivida por pessoas singulares e únicas, estas vivências integram, sempre e simultaneamente, sectores e meios onde essa condição é transversal e/ou partilhada — outra noção chave para a sociologia e os estudos dos sociais em torno da pobreza e da exclusão social.

Isto é: constatar a multiplicidade das carências vividas por quem vive em condição de pobreza de todo significa que tenham uma causa singular ou individual; é, sim, conseguir perceber que a multiplicidade dos factores é acentuada ou cruzada pela dimensão colectiva e social do que são modos de vida construídos como pobres e como não pobres. Modos de vida que se reproduzem pelos comportamentos, como pelas atitudes e pelas mentalidades, modos de pensar, de falar e de sentir.

Somos todos testemunhas.

Até talvez já tenhamos uma noção dos conceitos ou das teorias sobre a pobreza.

O problema parece-me estar justamente aqui: no facto de acreditarmos que temos uma ideia do assunto, pelo que, todos formulamos uma análise, ou várias, discordantes; e, claro, em consequência, acabarmos por concordar que “como sempre houve pobreza, continua a haver e sempre haverá pobreza”.

O problema é que, ainda que seja mais fácil-cómodo alinhar na frase comum de que “sempre houve pobreza” não temos evidências disso. Aliás, temos evidências de que as desigualdades entre os mais e os menos poderosos foi uma construção, crescentemente elaborada e justificada-legitimada para alimentar o conformismo e a desistência de contribuir para outra maneira de organizar recursos e vida social. A história humana ensina que foi a ‘descoberta’ da terra privada, das ferramentas, instrumentos e alfaias privadas, e a invenção dos alojamentos, dos parceiros e das crias gradualmente exclusivos e ‘privados’ que acelerou a emergência e gradual desigualdade de sectores sociais poderosos, menos poderosos e não poderosos. Desigualdades e poderes são determinantes na emergência e manutenção de realidades pobres.

De todo se pretende defender um – impossível – regresso ao passado ou o saudosismo das puras origens. O tema é: atenção a preconceitos, ideias-feitas disparatadas e sem qualquer suporte empírico-real-fundamentado.

A ciência tem o dever de se tornar clara e acessível – o cada vez tem conseguido mais, como cada vez mais integrar de forma explícita as noções com que governamos e conduzimos as nossas vidas globalizadas.

Sendo a pobreza uma condição multidimensional, colectiva e relacionalmente construída e legitimada e mantida-reproduzida, não bastam à sua mutação e superação  acções singulares, particulares e isolada no tempo e dos vários sistemas-contextos-sectores sociais.

A pobreza subjaz à degradação ecológica dos recursos do planeta; a pobreza suporta o tráfico de seres humanos; a pobreza alimenta as relações de género degradantes e agressivas (podendo estas desenvolverem-se noutros contextos não ‘pobres’); a pobreza estimula a competição, o individualismo, o insucesso escolar e a ignorância social; a pobreza é o rosto das incapacidades relacionais e de justiça que as nossas sociedades manifestam e, nalguns casos, aprofundam.

Somos todos testemunhas.

Sejamos todos sujeitos de mudança, a começar pela distância entre aquilo que pensamos e fazemos.

Ou, calemo-nos de vez e assumamos que, por sermos tão miseráveis, nem somos capazes de admitir que o fim da pobreza envolve e implica a todos, porque os recursos-mãe e os contextos e modos de legislar e organizar a vida são… colectivos, relacionais e sociais.

Que tal, neste Natal, deixarmos de nos convencer(mos) de que somos muito humanos e, de uma vez por todas, admitirmos que aquela gastíssima frase – “pois, sempre houve pobreza…” – sendo cómoda, é uma falácia, pois é um dos nossos comportamentos miseráveis que reproduzimos e nos faz, também por isso, sermos pobres?

Que tal assumirmos ideias menos pobres sobre a pobreza… e acções…?

 ♦♦♦

Maria (de Fátima C.) Toscano, Doutora em Sociologia. Docente Universitária, Investigadora e Formadora. Coach e Trainer em Programação Neurolinguística.
Figueira da Foz, 3 de Dezembro / 2022

A POBREZA E AS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS – por Ricardo Amorim Pereira

Pobres e ricos sofrem de igual modo o impacto das mudanças climáticas?

Enquanto escrevo este texto, chefes de estado e de governo de todo o mundo reúnem-se, no Egito, em mais uma conferência mundial sobre alterações climáticas. Uma das propostas em análise centra-se na criação de um fundo internacional que vise ajudar os países mais pobres a lidar com as perdas causadas pelos eventos meteorológicos e climáticos extremos. Esta questão é crucial. Continuar a ler “A POBREZA E AS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS – por Ricardo Amorim Pereira”

OS INTELECTUAIS- por A. Sarmento Manso

 

Cursos e percursos dos (pseudo)intelectuais

O que é e como se faz um intelectual? Os dicionários da língua portuguesa com mais ou menos palavras apresentam o intelectual como alguém que trabalha em actividades que requerem o intelecto: um indivíduo que mostra interesse pelas coisas culturais, literatura, poesia, cinema, artes plásticas, teatro… O intelectual quase sempre se (auto)apresenta como um ser à parte do vulgo. Faz questão de se exibir de forma andrajosa e de frequentar os lugares que se acredita ressumarem de cultura onde se faz logo notado. Passeia-se nas exposições que estão na moda, frequenta os bares mais concorridos, anda com os livros acabados de publicar. Absorvido no mundo da cultura, facilmente esquece a multidão que o rodeia e os problemas que a preocupam. O intelectual pelas nossas terras tende a imitar quer no visual quer no comportamento aqueles que escolheu como seus mentores e porque teve a sorte e a felicidade de estudar e frequentar outros países, diz mal do povo onde nasceu, na exata medida que rende inteira vassalagem ao que de fora lhe vai chegando ou ao que lá fora vai buscando. Continuar a ler “OS INTELECTUAIS- por A. Sarmento Manso”

SINEMA, SEU DESTINO É PECAR – por Danyel Guerra

Serge Daney

“É preciso uma revolução estetyka e cultural no
Cinema. É necessário que o próprio conceito de
autor cinematográfico seja revolucionado”    
                                  Glauber Rocha   

 

‘La Mort de Glauber Rocha’. Assim titulava Serge Daney, o célebre epicédio dado a estampa na edição de 24 de agosto de 1981, do diário francês ‘Libération’. Nesse tributo, o sinecrítico confessava que nele “ainda não se tinha dissipado a estupefação” provocada, em 1979, pelo visionamento da obra testamento do sinemanovista brasileiro. “‘A Idade da Terra’ não se parece a nada de conhecido. É um filme torrencial e alucinado. Um OVNI fílmico, sem mais nem menos”. Continuar a ler “SINEMA, SEU DESTINO É PECAR – por Danyel Guerra”

AS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS E….- por Fernando M. Guimarães

 As alterações climáticas e o relógio do Apocalipse

As ciências da Terra são um conjunto de ciências que se dedicam ao estudo do planeta. De entre essas ciências, a Geologia preocupa-se com a investigação da estrutura da Terra e, de modo particular, com a sua história, a maneira como os eventos geofísicos determinaram a sua formação e o seu desenvolvimento até ao presente.

Na geo-cronologia que os cientistas propõem, nunca o homem aparece como factor que esteja na origem, permanência e fim dos períodos geológicos. Até aos nossos dias! Continuar a ler “AS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS E….- por Fernando M. Guimarães”