DOIS CONTOS FANTÁSTICOS SOBRE A MÚSICA POPULAR BRASILEIRA – por Wander Lourenço

Chico Buarque e Caetano Veloso

I

O apoteótico e hipotético duelo entre Caetano Veloso e Chico Buarque de Hollanda

Dentre a produção musical brasileira, há de se destacar a excelência das letras trabalhadas por exímios artesãos do vocábulo que, em alguns casos, migraram da poesia de livro de modo a alavancar a MPB à categoria de World Music mais aclamada em todo território interplanetário, desde quando a canção “Coisinha do pai”, do sambista Jorge Aragão, estourou nas rádios marcianas nos fins do século passado. O que os extraterrestres não têm ideia, no entanto, é que entre os mestres do cancioneiro brasílico há inúmeras discordâncias sobre fatores mais diversos, que ora são veiculadas nos noticiários da Via Láctea; ora são silenciados pelas formadores de opinião pública.

Neste caso, refiro-me a um episódio ocorrido (e divulgado!) pela mídia global e internáutica, quando o tropicalista Caetano Veloso chamou atenção para o tom preconceituoso dos versos de “Feitiço da Vila”, de Noel Rosa. O áugure Mano Caetano se sentiu incomodado com o elitismo da expressão “feitiço decente”; e resolvera tecer alguns comentários em seu espetáculo, a respeito do politicamente incorreto utilizado pelo Poeta da Vila. Não obstante, diferentemente do seu companheiro de geração, o compositor Chico Buarque de Hollanda decidiu tomar as dores de Noel Rosa.

O fato é que somente agora a polêmica veio à tônica, haja vista que este foi mais um episódio ‘ignorado’ pela imprensa local, mui preocupada com a invasão dos partidários do golpe militar anti-lulista, em Brasília. Diz que, aproximadamente, após cinco décadas da precoce partida do Mocinho da Vila, o cowboy Chico Buarque, compositor d’A banda, comprou a briga do moço branco e letrado. Deu-se que o bandoleiro Carioca que, qual Noel Rosa, largara os estudos acadêmicos para se (re)alfabetizar na Escola de Samba do Estácio de Sá, sob direção de mestre Ismael Silva, tomou as dores de Noel; e, mui incomodado com implicância atávica de Caetano Veloso, desafiou-o, publicamente, para uma peleja à mão armada de versos, na Lapa Antiga de Mário Lago e Madame Satã.

Para mediação do conflito, convidou-se o boêmio jurisconsulto dr. Vinícius de Moraes, o Poetinha. No compasso de ritmos, iniciou-se o prélio de cantoria, com o gatilho mais rápido do Velho Nordeste, Kid Veloso, sacando de sua metralhadora giratória, lírica e automática, o que havia de mais valioso em seu baú de memória.

Onde queres revólver, sou coqueiro
E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não

E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alta, eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão.

No que o velho e bom malandro Chico Buarque, fingindo-se de morto para dar um rabo de arraia no coveiro, desconversou.

Hoje você é quem manda
Falou, ’tá falado
Não tem discussão, não
A minha gente hoje anda falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza de desinventar…

Entretanto, o fiel discípulo de Caymmi e João Gilberto, o cavaleiro andante, d. Caetano de Santo Amaro da Purificação, ao se aperceber da tática de falsa modéstia do adversário, sentou-lhe o dedo da discórdia, poeticamente.

A tristeza é senhora
Desde que o samba é samba é assim
A lágrima clara sobre a pele escura
A noite, a chuva que cai lá fora
Solidão apavora
Tudo demorando em ser tão ruim
Mas alguma coisa acontece
No quando agora em mim
Cantando eu mando a tristeza embora…

O juiz da peleja intercedeu ao alertá-los que era melhor ser alegre que ser triste, mas que para fazer um samba com beleza seria preciso um bocado de tristeza. O êmulo Buarque de Hollanda sentiu o golpe de mestre; porém, como malandro enverga, mas não quebra, levantou a cabeça, ajeitou o chapéu-panamé, sacudiu a poeira e deu a volta por cima.

Um samba
Que tal um samba?
Puxar um samba, que tal?
Para espantar o tempo feio
Para remediar o estrago
Que tal um trago?
Um desafogo, um devaneio…

O perspicaz Caetano Veloso cortou o baralho das reminiscências, retirando do repertório do oponente versado em malandragem a pérola do seu conterrâneo Assis Valente.

Minha gente era triste, amargurada,
Inventou a batucada,
Pra deixar de padecer,
Salve o prazer, salve o prazer…

Como o ditado adverte que bom cabrito não berra, o impávido e intrépido Chico Buarque ignorou o jogo de carta marcada, rebatendo-o com a trivela de três dedo à Rivelino, ao desprezar o mote caetânico para recorrer ao Noel Rosa e foi apanhar nos alforjes de sua discografia a réplica adequada.

Não chore ainda não
Que eu tenho um violão
E nós vamos cantar
Felicidade aqui pode passar e ouvir
E se ela for de samba há de querer ficar…

O pícaro d. Veloso quis demonstrar que também era do pagode de roda e do partido alto, ao subir no salto alto do sapato bicolor; e, de primeira, mandou na gaveta da meta do antagonista, lá onde a coruja dorme encantada.

Olho pro Cristo ali no Corcovado
E, em silêncio, grito “Êpa babá!”
Tudo esquisito, tudo muito errado
Mas a gente chega lá
Tem muito atrito, treta, tem muamba
Vai chegando que a gente vai chegar
Vê se rola, se tudo vai rolar
Só que sem samba não dá…

Ao abrir um irônico sorriso de canto de boca, o satírico bamba dos olhos verdes acendeu um cigarro; e, com o espírito do bom jogador, cantarolou em tom de deboche.

Você era a mais bonita das cabrochas dessa ala
Você era a favorita onde eu era mestre-sala
Hoje a gente nem se fala mas a festa continua
Suas noites são de gala, nosso samba
ainda é na rua

Hoje o samba saiu lá lalaiá, procurando você
Quem te viu, quem te vê
Quem não a conhece não pode mais ver pra crer
Quem jamais a esquece não pode reconhecer…

O lépido e sestroso “mulato franzino” recordou-se de um samba que, decerto, o habilitaria a contestar, à altura, o refinado escárnio do opositor; e dedilhou o pinho, à Nelson Cavaquinho, abraçando-o como se fosse um corpo de mulher.

Dez na maneira e no tom
Você é o cheiro bom
Da madeira do meu violão
Você é a festa da Penha
A Feira de São Cristóvão
É a Pedra do Sal
Você é o Buraco Quente
A Casa da Mãe Joana
Você é Vila Isabel
Você é o Largo Do Estácio
Curva de Copacabana
Tudo o que o Rio me deu…

Nisto, a musa portelense Teresa Cristina puxou um lindo samba de Noel Rosa, como quem se rendesse ao talento dos dois maiores gênios da poesia destilada em letra de música da História do Cancioneiro Popular do Brasil. Por fim, abraçando-os, a bonita cabrocha da Vila da Penha decretou que a batalha poética se findou empatada, porque, se Noel Rosa fora contestado por um; e reverenciado por outro, o grande vitorioso houvera de ser o legado da MPB.

Destarte, a afinada Teresa Cristina pôs um ponto final no apoteótico e hipotético duelo entre Caetano Veloso e Chico Buarque de Hollanda, ao soltar a voz na velha Lapa de outrora.

Lá no morro da Mangueira
Bem em frente a ribanceira
Uma cruz a gente vê
Quem fincou foi a Rosinha
Que é cabrocha de alta linha
E nos olhos tem seu “não sei quê”

Numa linda madrugada
Ao voltar da batucada
Pra dois malandros olhou a sorrir
Ela foi-se embora e os dois ficaram
Dias depois se encontraram
Pra conversar e discutir

Lá no morro
Uma luz somente havia
Era a Lua que tudo assistia
Mas quando acabava o samba
Se escondia

Na segunda batucada
Disputando a namorada
Foram os dois improvisar
E como em toda façanha
Sempre um perde e outro ganha
Um dos dois parou de versejar

E perdendo a doce amada
Foi fumar na encruzilhada
Ficando horas em meditação
Quando o Sol raiou foi encontrado
Na ribanceira estirado
Com um punhal no coração

Lá no morro uma luz somente havia
Era o Sol quando o samba acabou
De noite não houve Lua
Ninguém cantou.

II

 A Inconfidência Mineira: 50 anos do Clube da Esquina                   

Reza a lenda que a real Inconfidência Mineira, que fora orquestrada pelo movimento libertário denominado como Clube da Esquina, sob a liderança de uma espécie de Joaquim José da Silva Xavier do século XX, que, como todo bardo neo-árcade, forjara assinatura com o pseudônimo de Milton Nascimento, o Tiradentes Negro.  Neste contexto, cabe explicitar ao Leitor que a Insurreição de Santa Teresa se dera em razão do tributo estético Quinto, arrecadado aos cofres públicos pelas mãos dos colonizadores bossanovistas, capitaneados por El-Rey d. Vinícius de Moraes I e seus aristocráticos asseclas políticos: o seu vice-rey d. Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, Duque de Ipanema; e o ministro do Tesouro e Fazenda d. João Gilberto, Comendador de Juazeiro.

Inconformado com o predomínio despótico da Santíssima Trindade da Bossa Nova, o Tiradentes Negro convocou uma reunião conspiratória com o trovador pós-barroco Márcio Borges; com o jurisconsulto e sonetista Fernando Brant; com o arcebispo de Mariana, Dom Wagner Tiso; com o pe. Antônio Horta e os ajudantes de missa e ladainha, Lô Borges e Beto Guedes, na propriedade do Coronel Nelson Ângelo, a Fazenda Redemoinho. Na assembleia, o porta-voz Milton Nascimento discorreu sobre a urgência de não mais se pagar impostos tão exorbitantes ao mandatário El-Rey d. Vinícius de Moraes I, visto que a dinastia Bossa Nova se renderia aos membros inconfidentes do Clube da Esquina, que reivindicariam a independência das Minas Gerais, como Estado-Nação, cujo patrono houvera de ser Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.

–– Libertas quae sera tamen. –– bradou d. Bituca.

O grito de Ipiranga proferido pelo eleito El-Rey Milton Nascimento II ecoara por todo Brasil–Colônia; não obstante, quando os ruídos conspiratórios chegaram aos ouvidos de Sua Majestade El-Rey d. Vinícius de Moraes I, por intermédio dos sussurros desafinados ao pé do ouvido, conficenciados pelo ministro d. João Gilberto, de imediato o soberano bossanovista reuniu o conselho monárquico, composto pelo senhor de engenho d. Alfredo Pixinguinha da Rocha Vianna Filho, o Marquês de Piedade;  pelo lânguido fazendeiro d. Dorival Caymmi, o Visconde de Maracangalha; e pelo honorífico capitalista Ary Barroso, o Barão de Ubá.

Decretou-se a Devassa das Minas Gerais.

Nada obstante, os insurgentes mineiros homiziaram-se nas sesmarias de Piratininga, antiga propriedade do Cacique Martim Afonso de Souza, o Araribóia, a fim de que conjugassem o ideário sedicioso aos quatro cantos destes confins do Reino Unido de Portugal, Algarves e Brasil. Nisto, as tropas luso-brasileiras lideradas pelo capitão do mato Ronaldo Bôscoli; secundado pelo sargento de ordenanças Roberto Menescal; e pelo cabo de guerrilha Carlos Lyra descobriram o esconderijo dos clubistas subversivos, cercando-os entre a Lagoa do Cafubá e o Oceano Atlântico. Por sorte, as naus-caravelas, conduzidas pelo Almirante de Mar e Guerra, Luís Otávio de Melo Carvalho, o Tavito, guarnecidas pelos arcabuzeiros Flávio Venturini, Murilo Antunes e Tavinho Moura, se achegaram para resgatá-los, providencialmente.

Destarte, os guerrilheiros geralistas aportaram no Cais Pharoux e foram recepcionados pelo trovador Ronaldo Bastos, de modo que se preparassem para o episódio final, conhecido como Batalha de Maracanã-mirim. Na peleja histórica, o emblemático El-Rey Milton Nascimento II, em disfarces de nereida apolínea, com o adjutório de seus aliados antropófagos do Clube da Esquina, sobrepujou os mandatários bossanovistas, com o seu canto de Liberdade, mavioso, sacro e sedutor, que hipnotizou a plateia abismada e silente, entronando-se na mitologia afro-brasílica, às margens da Baía de Guanabara.

Solto a voz nas estradas
Já não quero parar
Meu caminho é de pedra
Como posso sonhar?

Sonho feito de brisa
Vento, vem terminar…

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Wander Lourenço – Especialista e Mestre em Literatura Brasileira (UFF); Doutor em Literatura Comparada (UFF); PhD em Estudos Literários da Universidade Clássica de Lisboa & Pesquisador de Pós-Doutorado da PUC-GO. Pós-graduando em Psicanálise – PUC-RS.

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