HELENA SÁ E COSTA: AS TECLAS DA COERÊNCIA – por Danyel Guerra

Helena Sá e Costa tem um teatro com seu insigne nome no Porto natal.  Mas quem é Helena Sá e Costa?, indagará, curiosa, a esmagadora maioria dos portuenses. Que boas razões justificam que ela tivesse amadrinhado essa sala de espetáculos?, perguntarão os mais renitentes. A essas (im)pertinentes questões eu procuro responder nos acordes que se seguem, num recital a duas vozes.

Esse batismo é, sem dúvida, um dos mais notórios tributos conferidos à sua prezável memória. Entretanto, cumpre lembrar que a primeira homenagem aconteceu em julho de 1983, quando a comunidade melômana da cidade tributou a pianista. Foi um evento singelo, mas sincero e genuíno, prestado no Salão Árabe do Palácio da Bolsa, por músicos, professores, alunos,  melÔmanos e pessoas que nutrem afeição e reconhecimento ao talento, ao labor, à coerência, à dedicação da mestra e concertista. Ao se jubilar, a Profª Helena se aposentava do magistério, sem embargo de continuar fiel ao primeiro amor até que a parca tesourasse o fio da sua coerente existência.

No último andamento da entrevista que na época me concedeu, ela realçou o desejo de que “a música em Portugal seja cada vez mais, dignificada”. Desiderato que, passadas duas décadas do seu desencarne,  se assemelha cada vez mais a uma utopia quimérica.

 Filha de músicos sabe tocar

Inspirado,  assim julgo, pela multividência de Ocar wilde, o portenho Jorge Luís Borges propõe no ensaio O Tango Brigão que “(…) a Música prescinde do Mundo. Poderia de fato haver Música e não existir Mundo”. A portuense Helena Sá e Costa (1913-2006) contribui, desde os cinco anos de idade, para essa maviosa epifania, que funda e aprofunda um enlace perpétuo com a sensibilidade humana.

Neta de Bernardo Valentim Moreira de Sá (fundador do Conservatório de Música do Porto), filha da pianista Leonilde Moreira de Sá e Costa e do pianista e compositor Luís Ferreira da Costa, irmã da violoncelista Madalena Sá e Costa, Helena é, sem favor, uma das referências mais distintas da música (dita) erudita em Portugal. Uma vocação afirmada quando concluiu, com 20 valores, o curso de Piano no Conservatório Nacional de Lisboa, onde foi aluna dileta de Mestre Vianna da Motta.

Esse estatuto nunca a levou a exibir atitudes ou a ter comportamentos típicos de uma frívola celebridade, embora nunca tivesse escondido a emoção que a homenagem lhe gerou no espírito personalizado e sensível.

“Vivo ainda o rescaldo da grande emoção que senti nessa noite. Essa homenagem foi de uma amabilidade inesquecível”, agradece.

Segundo apurei, a senhora resistiu, relutou em aceitar esse tributo. “Sim, lutei muito com os amigos e as entidades envolvidas para que ele não se realizasse. Organizaram a sessão em silêncio, em segredo, sem eu saber de nada. Só uma semana antes é que avisaram, com tudo já programado. Não os podia defraudar.”

Nas suas palavras pressente-se que ela, tal como Jean-Paul Sartre, declina se transformar numa instituição. Ainda que o autor de A Náusea não tivesse sido assim tão coerente na recusa (das láureas e premiações) do Prêmio Nobel de Literatura.

Apesar de uma presença pública sempre pautada pela discrição, Dona Helena não esconde o quanto lhe agradou vivenciar essa noite de sonho. Ou a Música, tal como sustentou Borges, não fosse também para ela “a Verdade, a Paixão”.

“Continuo comovida com a presença de tantas amizades, pessoas de todas as camadas sociais. Agradou-me sobremaneira a presença de muitos jovens. Todos sentiram que esta iniciativa prezava e cultivava, acima de tudo, o espírito e o gosto pela Música.”

O Concertismo e o Ensino

E quando fala em juventude, faz questão de aludir às várias gerações de alunos que passaram pelas teclas do seu piano. Olga Prats, Madalena Soveral, Manuela Gouveia ou Pedro Burmester são alguns dos mais laureados. Foi por causa deles e para eles que fundou a Escola Superior de Música do Porto.

“Ao longo de muitas décadas de magistério, ensinei centenas de adolescentes e jovens, alguns dos quais estão espalhados pelos conservatórios portugueses, enquanto outros se encontram ligados a conservatórios estrangeiros como professores”.

Entretanto, outros frequentam conservatórios de diversas cidades europeias, como bolseiros do Ministério da Cultura, da Fundação, Gulbenkian ou de governos estrangeiros.

Desdobrando-se na dupla atividade de concertista e professora, Helena Sá e Costa assume ter dificuldade em privilegiar uma em detrimento da outra. Simplesmente, o que será mais verídico, mostra-se satisfeita com a conciliação que tem promovido nas duas vertentes.

“Ambas estão muito ligadas. Aprende-se muito ensinando e também para ensinar é necessário transmitir a experiência adquirida nos concertos”, acentua.

Recorda-nos, a propósito, a amizade feita com os alunos, a criação de um espírito de verdadeira família.

“Afinal –sublinha—a Música é já em si uma coisa muito exaltante. E quando se estabelecem laços de cordialidade, o ensino é uma aventura duplamente gratificante.”

Recorrendo ao termo que utiliza, pode-se afirmar que “gratificante” foi, é e continuará sendo a sua carreira de intérprete de eleição, requisitada, com frequência, para recitais nas sete partidas do Mundo. Da vizinha Espanha ao Brasil, passando por Moçambique ou os EUA, ela tem sido uma aplaudida solista em concertos onde pontificam regentes do gabarito de um Ernest Ansermet, de um Pedro de Freitas Branco, de um Peter Maag ou de um Manuel Ivo Cruz.

Helena Sá e Costa partilhou o palco, elogios e reconhecimento da crítica e do público, ao lado de executantes como Pierre Fournier, Arthur Grumiaux, Ruggiero Ricci ou Rita Gorr. E não era por mera cortesia que, nos cursos de verão, em Salzburgo, cartazes com sua fotografia ombreassem com as de outros virtuoses do piano.

Sempre fazendo as malas

Um testemunho eloquente do seu cartel internacional é a circunstância de estar fazendo as malas quando connosco dialogou, à sombra da copa refrescante das árvores do seu quintal.

“Amanhã, bem cedo, parto para Gunsbach, a cidade natal de Albert Schweitzer, na Alsácia. No centro que lhe é dedicado vou dirigir um curso de interpretação pianística, onde estão inscritos alunos de 15 países”, revela.

Acrescenta estar satisfeita com a particularidade de, nessa formação, participarem como executantes ou ouvintes, três professores e três alunos portugueses.

Apenas mais uma etapa no percurso desta trota-mundos. Para ela, privar do convívio com expoentes do concertismo mundial é um hábito tão familiar como a cotidiana relação com as teclas pretas e brancas. Se tivesse que eleger a sua partitura preferida, a escolha, na certa, seria o Concerto para 4 Pianos de J.S. Bach.

“Sim, para mim, Bach está à frente de todos. Mas aprecio imenso interpretar Mozart, Schubert, Chopin, Wagner. Uma vasta partitura de virtuosos, que vai do Barroco ao Romantismo e chega às expressões mais recentes como Debussy.”

Apoiar os novos valores

Estamos quase no epílogo deste prazeroso encontro e o curso da conversa retoma o conceito de que esteve imbuído o tributo. O incentivo ao gosto pela (boa) Música.

Dona Helena, essa homenagem não foi mais do que a abertura de uma sinfonia bem longa… Captando o alcance da metáfora, ela expõe uma ideia bem meritória.

 “Meu desejo é que a Música, em Portugal, seja cada vez mais dignificada e que enlace todas as camadas da população. Há elementos de muita valia e outros muito prometedores. Tenho fé de que a Música e esses valores acabarão por ter a necessária difusão, se forem estimulados pelas entidades públicas e pela sociedade em geral.”

Coerência. Nelson Rodrigues e Oscar Wilde em aforismo a desabonaram. Em seu abono, partiram deslizantes, prezando-a como uma virtude, os dedos exímios de Dona Helena.  Destros, impregnaram-na no branco e preto do teclado pianístico. Helena Sá e Costa é mais um valor nacional que paga um pesado tributo por não ter nascido e vivido lisboeta.

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Danyel Guerra (aka Dannj Guerra) nasceu no Rio de Janeiro, Brasil. Tem uma licenciatura em História pela FLUP. E tem-se dedicado ao estudo da História do Cinema. Após ter lecionado História no Ensino Secundário, transitou para o Jornalismo, trabalhando como repórter e redator efetivo (Carteira Profissional nº 803) nos diários Notícias da Tarde, Jornal de Notícias e Correio da Manhã. É o colaborador mais regular da Revista Athena.