Tempo de tigre
No início da manhã, um tigre espreita meu quintal.
Ignoro sua intenção, embora o olhar carente
insinue que está à caça de amizade.
Acontece que não converso com animais selvagens.
Atrás da janela cerrada, contemplo o balé do felino
que, andando de lá pra cá, pisoteia meu gramado.
No meio da tarde, insiste em passear por ali o animal.
Imagino que já devorou tudo que encontrou pela frente.
Não posso assegurar que essa seja a verdade,
mas, sem dúvida, antes minhas crenças do que miragens.
Todos sabem: não se brinca com bicho de instinto assassino.
Entregar-se à toa à morte seria pecado.
No fim da noite, além de um vulto, nenhum outro sinal
da fera que ao meu redor se fez presente.
Não tive medo, posso afirmar despido de vaidade.
E, apesar do tigre, despontam intactas as paisagens
que adornam a província. Chegou a hora de entoar o hino,
fortificar o muro, reforçar a porta e o cadeado.
♦♦♦
Oferenda
Da onda ao pé da praia,
recolho as relíquias do mar:
sigilo
deslumbrante encanto
pronúncia sincera de uma fé sem dogmas.
Preservo meus amuletos.
Quisera crer somente na força
das águas que os trouxeram,
banhados em luz e sal,
sutil religação do corpo ao mistério.
Algo estranho, porém, corta
minhas mãos, meus pés.
Fio afiado de faca
cravado nas costas da mansidão.
Em vão vasculho a areia:
misericórdia amor tolerância
estão enterrados tão fundo
que sequer a mais teimosa esperança
pode trazê-los à tona.
Os detritos e os dejetos
de uma deturpada devoção
soterram sem piedade
o que um dia foi oferenda.
♦♦♦
Retrato falado
Desvio de desver
o que nenhum olho
soube esclarecer.
Da memória colho
traços da figura.
Se falo à lembrança,
a palavra cria
atalhos na dança
que anoitece o dia,
sem ruído ou fratura.
Calado, o mistério
nutre o imaginário
tal como o minério,
preso ao relicário,
escapa à captura.
O quebra-cabeça,
no encontro das peças,
traz na face avessa
recados, promessas
da inteira procura.
Eis, cinco por cinco,
revelado o rosto,
por detrás do trinco
oculto e ora exposto,
cá nesta moldura.
♦♦♦
Felipe Duarte de Paula nasceu em 1987. Formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, é promotor de justiça. Mora com a família em São Paulo. Em 2024, lançou o livro de poemas Vida selvagem, pela editora Patuá.
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