A “Europa” ou a minha “Nação”? por Diogo Pacheco de Amorim

Contra ou a favor da Europa? Contra ou a favor das nações? A “Europa” ou a minha “Nação” ?

Questão que hoje vivamente se coloca, desdobrando-se em infindáveis discussões. Juízos rápidos e fulminantes disparados contra quem duvida da bondade da escolha politicamente correcta, a da “Europa”. E contudo…

… Contudo são discussões sem sentido, caso antes se não defina, clara e inequivocamente, qual a Europa de que se fala. Porque há duas europas em tudo diferentes. Dois conceitos distintos instalados dentro de um mesmo termo: “europa”. Assim, se me perguntarem se quero manter-me na, ou “sair” da “europa” começarei por perguntar “qual Europa?”. Clarifiquemos, pois há uma Europa que nasceu na Grécia há 2.700 anos, entre oliveiras, penedos sagrados e o azul do mar. E aí, entre deuses demasiado humanos e homens quase divinos, nasce, cresce e agiganta-se toda uma Cultura. Ésquilo, Sófocles, Píndaro, Heraclito, Fídeas, Anaximandro, Sólon, e tantos outros, deram ao mundo o espírito de uma civilização ímpar.

O Espírito. O primeiro pilar.

Mas tudo tem o tempo do seu tempo. A Grécia está moribunda. Mas já, um pouco a norte, está Roma a nascer. A tempo de salvar a obra-prima do espírito helénico. Dotada do génio militar e administrativo, Roma leva a cultura grega, agora transfigurada em Civilização, até onde as suas armas alcançaram. E alcançaram longe. E foi assim que o espírito da Europa encarnou em Roma.

O Corpo. O segundo pilar.

Foto de José Boldt

Obra do tempo que era, chegou também o tempo de Roma se diluir na História. Mas, tal como séculos antes, um novo elo se fecha sobre o outro. Constantino converte-se e por ele chega o Cristianismo para salvar o que tinha de ser salvo. E foi assim que povos vindos do Leste foram ficando, integrando-se por intermédio do cadinho que representava a estrutura da Igreja católica que herdara, revitalizara e desenvolvera os legados sucessivos da Grécia e de Roma. E sobre as ruínas do império romano, mas na continuidade desse império romano, nasce a Europa tal qual hoje a conhecemos. A Europa da ciência, da técnica, das artes das universidades e das catedrais. A Europa de Shakespeare e de Da Vinci, de Picasso e de Fra Angelico, de Thomas Moore e de Thomas Beckett, de Goethe e de Holderlin, de Nietzche e de Wagner de Souza-Cardoso e de Pessoa, de Ezra Pound e de Walt Whitman. E de tantos, tantos outros. O Cristianismo, ao espírito que despertara na Grécia, ao corpo que lhe dera Roma, acrescenta a Alma.

A Alma. O terceiro pilar.

Foto de Paulo Burnay

Grécia, Roma, Cristandade … Europa. Na sua plenitude. Essa Europa que se debruçou sobre o mundo levando a todo o lado a sua cultura, a sua ciência, o seu poderio e todo um conjunto de valores que, em dado momento, foram valores universais porque universalmente aceites: o respeito pela clareza de raciocínio e pelo unívoco conceito de verdade, a herança grega; o respeito pelo primado da Lei, a herança de Roma; e o respeito pela vida e pelo Outro como valores absolutos e indiscutíveis, a herança da mundividência cristã.

Uma Europa que acolhia, de braços abertos, quem vinha de fora, desde que viesse com a vontade firme de comungar desses mesmos valores e da forma de vida que eles necessariamente determinavam.

Foi esta Europa a matriz comum de todas as nações europeias, porque todas elas comungando daqueles três valores fundadores da mundividência europeia: O amor à Verdade; o primado da Lei; o respeito absoluto pela Vida e pela humanidade do Outro: A verdade nunca entendida como um valor relativo, mas absoluto; a Lei nunca concebida como o arbítrio do soberano, mas como um imperativo que ao próprio soberano obrigava; e a Vida e o Outro jamais entendidos como realidades instrumentais  mas como fins em si próprios.

Óbvio: esta Europa não foi apenas um cadinho de ciências, de literaturas e de filosofias. Foi, também, palco de guerras, de perseguições e de violências. Mas aqui chamo Miguel Torga que bem melhor do que eu sabe exprimir a grandeza feita de contradições, desta Europa construída por homens:

E, apesar de tudo, sou ainda o Homem! / Um bípede com fala e sentimentos. / Ao cabo de misérias e tormentos, / Continua / A ser a minha imagem que flutua / Na podridão dos charcos luarentos.
(…)
Quanto o grave silêncio da paisagem / Me renega e protesta, / Pouco importa na festa / Deste encontro feliz; / Obra de Arcanjo ou de Satanás, / Eu é que fui capaz / De fazer o que fiz!

Não me falem, pois, de uma civilização a renegar, de uma cultura a ignorar, de toda uma História a desculpar. Como todas as obras humanas,  a Europa foi contraditória. Bem e Mal. Há que assumir umas e outra coisa, sem complexos. Porque, como Torga diz: “obra de Arcanjo ou de Satanás, eu é que fui capaz de fazer o que fiz”.

É esta Europa a minha Europa. Aquela de que me orgulho, em que me revejo e que me recuso a renegar. Esta é a Europa a que quero pertencer, ainda que tenha de recuar para dentro das fronteiras do meu país para a não perder. Esta é a Europa em que quero estar.

Naquela, a de Atenas e de Roma, não na de Bruxelas.

Esta começou por ser um conceito económico que fazia todo o sentido: mantinham-se os velhos países, mas as fronteiras abriam-se à livre circulação de pessoas, produtos, serviços e capitais. Liberal como sou em Economia, esta estrutura teve todo o meu aplauso; conservador como sou em Política, a neutralidade ideológica só me podia, também agradar. A chegada do euro, aplaudi-a também, pois que prometia aprofundar a racionalidade económica da estrutura obrigando-nos, como país, a uma disciplina monetária e orçamental que eu só podia, também, aplaudir.

Os problemas vieram depois. Quase subitamente. Obviamente obedecendo a uma agenda até então oculta.

Por um lado, a burocracia de Bruxelas cresceu exponencialmente, dotando-se de uma máquina gigantesca e sufocante. A produção legislativa e a monomania reguladora começaram a invadir todos os recantos da actividade do europeu.

Por outro lado, a neutralidade ideológica desapareceu. Do Parlamento europeu e dos inúmeros departamentos – com vários nomes – começaram a sair normas, regulamentos e leis totalmente inspiradas pela avassaladora correcção política. A neutralidade ideológica transforma-se num agressivo plano político todo ele marcado pela imposição maciça de toda a panóplia das causas ditas fracturantes. Imposição inaceitável a todas as nações, fossem quais fossem as suas crenças, a sua vontade, a sua cultura e a sua fé.

E, de repente, a Europa de Bruxelas começou a ser todo o contrário, um negativo da Europa da Grécia, de Roma e da Cristandade.

Ao culto pela Verdade e pela clareza da Razão que fora  a marca de água da velha Grécia, substitui-se o espantoso conceito de pós-Verdade implicando a total irrelevância do conceito de Verdade.

Ao culto da Razão clara opõe-se o desprezo pela Razão entendida como factor irrelevante e menor. E em todas as instâncias, com relevo para o mundo universitário e dos media, Verdade e Razão desaparecem. Ao corpo ágil que Roma lhe dera, substitui-se o ruinoso e desmesurado corpo de um império caduco, que é hoje a tecno-estrutura de Bruxelas. E ao respeito sem limites pela vida humana e pelo Outro, o contributo do Cristianismo, substitui-se a cultura da  morte com a imposição do aborto, da eutanásia, a quase imposição da homossexualidade, da transsexualidade e de tudo o mais que nesta área hoje existe. Renega-se explicitamente o papel da Igreja na construção da cultura europeia, e implicitamente os contributos da Grécia e de Roma. Considera-se, numa 1ª fase, que a civilização de raiz europeia e hoje dita ocidental não tinha mais dignidade do que a de  uma qualquer tribo africana ou amazónica e, numa 2ª fase ser ela inferior a elas e radicalmente indigna.

A questão dos ditos “refugiados” é paradigmática: a livre circulação era de europeus entre si, não de todos os deserdados da terra que, ainda por cima, explicitamente se não querem integrar. Mas isto é outra história sobre a qual há também muito a dizer.

Mais poderia ser dito. Mas isto é mais do que suficiente para que se perceba a razão pela qual eu, e muitos como eu, em Portugal ou noutros cantos da Europa nos recusamos a pertencer a ESSA Europa. Ainda que para isso tenhamos, por muito que nos custe – e a mim custa-me muito –  acantonar-me atrás de umas fronteiras novamente impermeáveis. Detesto passaportes, carimbos, pautas aduaneiras, bem como as mediocridades infindas protegidas, na sua fundamental inépcia, por essas fronteiras, carimbos e pautas aduaneiras. Mas recuso-me a deixar colonizar o meu espírito, as minhas crenças e a minha vida por toda essa peste que, imparavelmente, avança, Europa fora, sobre todos nós.

Exageraram. Felizmente. De tal maneira, que começou a debandada. Mas não acusem quem votou “sim” no Brexit ou quem, como eu, quer sair com o mesmo entusiasmo com que há tantos anos entrou. Não, não somos ignorantes, rústicos, ou vítimas de um medo irracional. Não, nada disso. Eu, e os outros, queremos sair porque não queremos ser condenados por delito de opinião; perseguidos por sermos católicos; roubados pelo fisco e, finalmente, cada vez menos livres de dirigir a nossa vida, a da nossa família e a da nossa comunidade próxima como bem entendemos.

Churchill, se estivesse entre nós, teria para tudo isto palavras bem mais duras do que as minhas. E quanto precisamos hoje de um Churchill para derrubar esta nova tirania que de Bruxelas se estende, tal como a sombra de Mordor sobre o Shire, nessa obra premonitória que foi o Senhor dos Anéis.

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Diogo Pacheco de Amorim – Nascido em 1949. Licenciado em Filosofia pela Universidade de Coimbra. Como jornalista pertenceu à redacção do semanário O Diabo e do diário O Primeiro de Janeiro entre 1976 e 1984; foi, ainda, colunista regular nos semanários O Diabo, Euronotícias e O Semanário. Foi represnetante, em Portugal, da revista Nouvelle Écolle, orgão da Nova Direita francesa. Foi assessor do Vice-Primeiro Ministro no 1º Governo da AD e Chefe de Gabinete do Grupo Parlamentar do PP entre 1995 e 1977. Nos últimos vinte e cinco anos tem desenvolvido a sua actividade no âmbito da Consultoria Imobiliária, quer do ponto de vista empresarial quer académico, tendo sido fundador da Escola Superior de Actividades Imobiliárias, de que foi Administrador, Director Académico e membro do Conselho Científico.

2 comentários em “A “Europa” ou a minha “Nação”? por Diogo Pacheco de Amorim”

  1. Diogo Pacheco de Amorim diz:

    Obrigado, Ana ?

  2. Muito bem Diogo. Concordo na íntegra com tudo o que escreveu

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