PARA QUE SERVE A MATEMÁTICA? – por David Fernandes

Olhemos uma qualquer imagem digital a preto e branco. Se conseguirmos aproximar-nos o suficiente, “fazer zoom”, percebemos que aquela é composta por um conjunto de pequenos pontos que podem ser pretos ou brancos.

Joahnn Radon (1887-1956)

Na verdade, a cor daqueles pontos pode eventualmente ser de toda uma gama de cinzentos, entre o branco e o preto, mas para simplificar vamos assumir que os pontos poderão ser apenas pretos ou brancos. Continuar a ler “PARA QUE SERVE A MATEMÁTICA? – por David Fernandes”

“Com Navalhas e Navios” (recensão) de Fernando Martinho Guimarães

Com Navalhas e Navios é uma colectânea, uma antologia, uma «poesia reunida», que compreende parte da produção poética de Urbano Bettencourt, desde o volume inaugural de 1972, Raiz de Mágoa, até ao livro África e Verso, de 2012. Encontramos, ainda, no seu fecho, uma série de 5 poemas dispersos. E em nota final, diz-nos o autor que deixou de fora um conjunto de poemas, principalmente dos seus dois primeiros livros, o já referido Raiz de Mágoa e o Marinheiro com Residência Fixa, de 1980. Mais nos diz que, na recolha de poemas que constitui este Com Navalhas e Navios não está a maior parte dos seus textos poéticos em prosa e algumas narrativas breves. Promete-se, nesta nota, que em devido tempo virão a lume, reunidos e reorganizados. O prometido é devido e ficamos nós, seus leitores, a aguardar. Continuar a ler ““Com Navalhas e Navios” (recensão) de Fernando Martinho Guimarães”

REVISITAR MACHADO, EÇA E KAFKA – Hilton Fortuna Daniel

REVISITAR OS SÉCULOS XIX E XX PELAS NARRATIVAS DE MACHADO, EÇA E KAFKA

  1. Introdução

Este estudo inscreve-se num quadro de análise teórico-pragmática, assumindo aqui uma visão de literatura comparada, a qual tem por objetivo revisitar o imaginário da criação artística ocidental dos séculos XIX/XX, compreender a sua influência, contribuição e transversalidade para aquilo que se afigura como momento de recessão a nível do poder de criação artística situada na literatura do século XXI. Com efeito, a literatura tem vindo a assumir uma amplitude e extensão que muito pouco de relevante transparecem para a realidade e utilidade humana nos dias atuais. Ou os séculos XIX e XX produziram o bastante, ou o século XXI não faz por merecer. Continuar a ler “REVISITAR MACHADO, EÇA E KAFKA – Hilton Fortuna Daniel”

UMA ROTUNDA BOA VISTA… por Danyel Guerra

“Depois da civilização de Atenas e do Renascimento,
 entramos agora na civilização do derrière”

Pierrot le fou, de Jean-Luc Godard    

(crônica carnevalesca)

Fim de tarde estival, sol quase no poente, na esplanada de um bar, dois clientes tomam, divertidos, um schopen Hauer* estupidamente gelado. O boteco situa-se numa praça em forma de círculo, que encanta sobremaneira um deles, cidadão caRIOca, que pela primeira vez degusta umas Trip’s à moda do Porto. Continuar a ler “UMA ROTUNDA BOA VISTA… por Danyel Guerra”

QUE CRISTIANISMO É ESSE?- por Luiz Henrique Santana

Recentemente alguns pensamentos têm tomado conta da minha mente, tais como: de que maneira eu posso parar de me cobrar tanto, de que forma a sociedade chegou a esse ponto e que evangelho institucionalizado é esse? Confesso que este último tem me preocupado bastante! A institucionalização do cristianismo é um fato histórico que se inicia em Roma com a oficialização da doutrina cristã como a religião do Império romano pelo imperador Constantino. Penso que foi nesse ponto que os ideais do rabi Jesus Cristo começaram a se engessar, enrijecer e burocratizar. Continuar a ler “QUE CRISTIANISMO É ESSE?- por Luiz Henrique Santana”

PEGADAS IMPRESSAS NO JARDIM DA LITERATURA – por Marcos Fernando Kirst

Em memória de Marilene Caon Pieruccini

“Escuto o barulho do mar/ Marulho de cantiga/ Antiga mais que o ar/ Magia que nina a lua/ Na rua vazia de você/ Pensamentos desertos/ Abertos com a sombra/ Que assombra o lugar/ Perdidos na dor da escolha/ Havida no meio de mim/ Nunca há paz neste jardim”

(Solo de Clarineta).

A alma em constante ebulição criativa e reflexiva da escritora gaúcha Marilene Caon Pieruccini encontrou a paz no jardim da existência no dia 14 de novembro de 2019, quando seu corpo enfim cedeu, após anos de batalha pela saúde. O jardim, no qual dizia poeticamente jamais encontrar paz, como no poema de sua autoria acima, era o refúgio mental da literatura, da cultura e das artes, universo que habitava e transformava com sua produção criativa e onde desempenhava de forma plena sua atuação cidadã. Marilene tinha convicção de que a arte e a cultura são ferramentas vitais para a transformação dos seres humanos em cidadãos plenos, construtivos, positivos e criativos. Pautou toda a sua atividade literária, profissional e pessoal a partir dessa ótica e, assim, não só deixou sua marca (insubstituível e saudosa), como formatou, ao natural, uma pequena (mas significativa e ativa) legião de acólitos, que seguem fazendo a diferença em Caxias do Sul e região, para seu orgulho e satisfação, onde quer que agora esteja. Continuar a ler “PEGADAS IMPRESSAS NO JARDIM DA LITERATURA – por Marcos Fernando Kirst”

“LOS OJOS DE UM EXILIO” de Moisés Cárdenas

Muy pronto, estará en las librerías de España la novela testimonial, Los ojos de un exilio.

El libro, Los ojos de un exilio, publicado por Avant Editorial, es una novela testimonial escrita por Moisés Cárdenas, venezolano, nacido en San Cristóbal, Estado Táchira el 27 de julio de 1981.

Se graduó en la Universidad de los Andes, Táchira, en licenciado y profesor en Castellano y Literatura, profesión que ejerció durante más de diez años en los niveles de secundaria. Continuar a ler ““LOS OJOS DE UM EXILIO” de Moisés Cárdenas”

COMO IRRIGAR O PRAZER DE VIVER? – Teresa Escoval

Foto de Luiz Guerra e Paz

Diria que há que ter sempre um mote presente: ser um eterno aprendiz!

Isso consegue-se com humildade, sem deixar que o orgulho se aposse de si, mantendo constantemente o poder de criar e inventar. Conseguindo tornar cada dia num mundo de oportunidades e cada momento numa nova página da sua existência. Continuar a ler “COMO IRRIGAR O PRAZER DE VIVER? – Teresa Escoval”

MARILENE CAON, A CAÇA-TALENTOS, por Uili Bergammín Oz

Caxias do Sul tem fama de ser gelada, e seus habitantes de serem distantes e desconfiados. Na maioria dos casos essa pecha se justifica, mas vez por outra alguém (muitas vezes vindo de fora) quebra essa regra, tornando-se a exceção que só a justifica ainda mais. Este é o caso de Marilene Caon Pieruccini, caxiense por adoção, assim como eu. Poeta de mão cheia, prosadora em vários gêneros, vencedora de inúmeros prêmios literários, ex-presidente da ACL (Academia Caxiense de Letras) e agitadora cultural da Serra Gaúcha, Marilene também se destacava como olheira, caçadora de novos talentos e incentivadora de escritores neófitos. Foi exatamente o que aconteceu comigo. Quando cheguei à cidade, com altas pretensões literárias, ela foi a primeira autora de renome a olhar para meus textos e me chamar para a sua casa, dando-me dicas valíosíssimas. Uma delas, que jamais esqueci, é: “Não usar as palavras certas leva-nos a não ser compreendidos. Mas usá-las não é nenhuma garantia de sê-lo.” Internalizei isso e vi depois que ela própria foi incompreendida muitas vezes, por suas posturas firmes, por sua ousadia a frente da época. E olha que eu havia contatado outros escritores bem menos talentosos antes dela, sempre encastelados em suas torres de marfim inacessíveis. Pobrezinhos, todos eles desapareceram na poeira do tempo, sufocados pelo pó e teias de sua própria vaidade e egoísmo. Foi bem diferente com a Marilene. Continuar a ler “MARILENE CAON, A CAÇA-TALENTOS, por Uili Bergammín Oz”

NEM SÓ OS CAVALOS SE ABATEM – EDITORIAL por Danyel Guerra

 “In Berlin, by the wall, you were five foot ten inches tall”

                                             Lou Reed

1 – Me lembro como se tivesse sido ontem. Ou hoje. Ou amanhã. Na noite novembrina em que o Berliner Mauer  começou  a ser derrubado,  a martelo e à picareta, botei a rodar no som o disco ‘Berlin’, aquele álbum conceitual que Lou Reed publicou em 1973. Uma “trágica ópera rock”, que a crítica especializada acolheu com um olhar de soslaio. Continuar a ler “NEM SÓ OS CAVALOS SE ABATEM – EDITORIAL por Danyel Guerra”

ATHENA RECOMENDA: MONTSE WATKINS: Contos de Kamakura (teaser)

Spanish/Japanese) © 2019 innerLENS Productions © 2019 Elena Gallego Andrada.
Producer: Chelo Alvarez-Stehle 
Executive Producer: Elena Gallego Andrada
Director: Chelo Alvarez-Stehle
 Editor: Laura Sola Director of Photography: Jiro Kumakura
A Revista Athena tem o prazer de divulgar este magnifico projeto, que recupera a figura e obra de Montse Watkins, que através do seu trabalho e esforço incansável conseguiu, há 20 anos,  muitos direitos para os Nikei, no Japão, nomeadamente a melhoria das suas condições laborais e de vida,  tendo sido também pioneira na tradução directa da literatura do japonês para o espanhol.
Para mais informações sobre este projeto:

Montse Watkins www.montsewatkins.net

Continuar a ler “ATHENA RECOMENDA: MONTSE WATKINS: Contos de Kamakura (teaser)”

PREFÁCIO PARA “GERMANA, A BEGÓNIA” – por Carlos Clara Gomes

Foto de Ivo Costa/Teatro Perro

[A estreia deste espectáculo com texto de Ricardo Fonseca Mota e encenação e representação de Gi da Conceição aconteceu algumas horas antes da vaga de incêndios que assolou o país em Outubro 2017. Em 2019 é lançado pelas Edições Esgotadas – Viseu o livro contendo o texto teatral cujo prefácio se transcreve a seguir] Continuar a ler “PREFÁCIO PARA “GERMANA, A BEGÓNIA” – por Carlos Clara Gomes”

DA DRAMATOLOGIA- PARTE I – por Castro Guedes

Comecemos por desfazer o carácter equívoco da palavra dramaturgia, usada em Portugal indistintamente entre o significado próprio (a escrita do texto teatral) e a dramatologia, expressão brasileira bem mais adequada ao estudo da lógica do texto, da análise dramatúrgica, que, muitas vezes, aparece, entre nós, como dramaturgia, à mesma. Perpendicularmente outro equívoco resulta da forma de encarar o texto teatral como literatura dramática, que, como a palavra indica, se contém como um género dentro da literatura. Coisa diferente do que é um texto para cena, a que o carácter literário se acrescenta como uma segunda qualidade, sendo a primeira a da sua funcionalidade para cena. Porque um texto para cena é, por exemplo, um texto de Shakespeare, por mais poético e literariamente valioso que seja; e é. Continuar a ler “DA DRAMATOLOGIA- PARTE I – por Castro Guedes”

MULHERES NAS RUAS DO PORTO- X- por César Santos Silva

Belém ( Rua )
Início – Contumil    Rua de)
Fim –   Nau Vitória ( Rua da )
Designação desde –  1948
Freguesia de:  Campanhã

No Bairro de Costa Cabral várias ruas, quase todas, são uma homenagem a freguesias de Lisboa.

Uma delas é consagrada a Nossa Senhora de Belém.

Belém é uma das freguesias da zona oriental de Lisboa e uma das mais bonitas, tendo en conta o enquadramento não só paisagístico, como arquitectónico. Continuar a ler “MULHERES NAS RUAS DO PORTO- X- por César Santos Silva”

TORPOR – por Claudio B. Carlos

Eu não queria ouvir o que ela tinha para falar. Como num transe, eu apenas via o mexer dos lábios murchos da velha, sua dentadura frouxa, e o bailar de sua língua saburrosa. Tudo sem som. Eu não escutava nadica de nada. O buço da velha lhe sombreava o lábio, e se misturava com os pelos que lhe saíam pelas ventas. Vez em quando algum perdigoto da bruaca me atingia o rosto. Continuar a ler “TORPOR – por Claudio B. Carlos”

TRÊS POEMAS de Daniel Maya-Pinto Rodrigues

A PARTE POSITIVA DA TONTURA

Quando seguir pela estrada fora, com
livros de viagens juvenis nas mãos,
poderei entender melhor a luz das manhãs na estrada,
as árvores da distância nessa luz clara.
Poderei aproximar-me de ti, fora do tempo,
num trilho paralelo ao tempo,
num atalho que o próprio tempo
tenha reservado para nós.
A nossa roupa cintilará ao sol
enquanto andarmos, enquanto prosseguirmos andando
na distância visual perfeita. És
uma mulher que pouco conheço,
e isso é-me do agrado, enquanto caminho contigo.
O nosso diálogo contém as palavras ideais;
nada nos falta nessa distância. Prosseguiremos
livres, despreocupados
e, ao que tudo indica, felizes.

Continuar a ler “TRÊS POEMAS de Daniel Maya-Pinto Rodrigues”

O BERLIN TRABANTÁXI – por Danyel Guerra

Semelhante ao rio que, constrangido pelas margens, anseia pela chegada à foz, um viajante busca, frenético, um táxi, à saída do aeroporto de Berlin Ocidental. O que ele não adivinharia  é que tão volumosa corrente de ansiedade  iria deparar com um dique inesperado, uma barragem imprevista. Continuar a ler “O BERLIN TRABANTÁXI – por Danyel Guerra”

A POESIA de Delalves Costa

O Relógio

Me apunhalaram. Uma carne fria
com estímulos eletrônicos,
assim deixaram minha alma.
Me arrancaram o susto de vida
e deram corpo ao previsto.
A alma que soprava arrepios
agora é piano sem lírica
e palpável às mãos do mundo.
Carne de metal: não chora,
não contempla. Só vê.
Frio é o afago, como é
também o nosso tempo
– esse homem de muitas portas
e chaves humanas,
e contudo vazio de mistério.
Arrancaram da caixa mágica
a lírica, a música e o susto.
O sangue já não é quente…
O corpo já não me escuta…
Me apunhalaram ainda n’alma
e me jogaram à carne fria
que não chora nem contempla.
Me arrancaram o susto
e no lugar puseram o relógio.

Continuar a ler “A POESIA de Delalves Costa”

ZEDES – por Diniz Cortes

Foto de Dinz Cortes – Antelas

Zedes, 5.000 b.p.

O Rapaz observava de longe os preparativos para o cerimonial. Estava ainda ofegante pelo caminho percorrido, ligeiro e a corta-mato desde o povoado, distante algumas centenas de metros daquele lugar.

O rebanho acordava de uma noite fresca e orvalhada e ouvia-se aqui e ali o balido de um cordeiro ao qual a mãe-ovelha nem sempre respondia… Continuar a ler “ZEDES – por Diniz Cortes”

OUTRAS DIMENSÕES – por Duarte Klut

 

Desde pequeno sonhara ser engenheiro,  projectar/realizar  impossíveis…

Entre muitos intuitos germinou-se-lhe no cérebro uma ideia espectacular:

erigir uma escada que subia…descendo!

Sim.

Era original.

Mas muitos mais esquiços enxameavam-lhe o pensamento.

Tal como Da Vinci, iria levar a cabo as mais impensadas construções.

Como principal ferramenta tinha a impressora 3D que lhe permitia visionar globalmente o todo de tudo…

Mas de repente foi aflorado por uma dúvida terrível:

E se o tudo fosse o nada?

Que iria ele erigir?

Entre o tudo e o nada algo teria de existir, para que ambos pudessem ser definidos como tal.

Durante anos pensou,

pensou e:

nada!

Todavia era  bastante resiliente. Continuar a ler “OUTRAS DIMENSÕES – por Duarte Klut”

PORTUGAL É UM NEROLOGISMO (…) – por Fátima Vale

PORTUGAL É UM NEROLOGISMO E O FOGO O BORDEL DE MESSALINA

em memória de Ruth Escobar que se foi esquecida

Ardemos num incêndio de esperança, para que reste de nós uma lembrança, um fumo que sobe e não se apaga. (…) Vivo, porque espero.”

– O Pobre Tolo, Teixeira de Pascoaes | 192

Foto de Fatima Vale

[esta mulher está
dentro de uma ruína com forma labiríntica
todo o alcance do olhar é um manifesto de terra queimada
as pernas vão-lhe enegrecendo até ver a filha
nesse momento desfazem-se]
marulha-me a cabeça
uma seita de fantasmas penteia-me os cabelos
e o pior ainda o pior
são estes malditos fios que me levam
a abraçar tudo quanto existe
e emaranham-se na ignorância e na raiva
na perfídia do quotidiano
dai-me uma faca que os corte

aos fantasmas
secai-me as veias destes raios invasores
eu caí neste condomínio de braços descartados
num voo trocado
nas asas de um pássaro de prata
espírito santo do meu azar
livrem-me desta cabeça
deste nerologismo lusitano
desta metáfora política
desta simulação da co-existência
deste totalitarismo da fala
ala ala ala Continuar a ler “PORTUGAL É UM NEROLOGISMO (…) – por Fátima Vale”

UM CONTO de Federico Rivero Scarani

LA VERDADERA HISTORIA DE JAMES COOK Y DEL POLEN DE VENUS, por George Vancouver (1757-1798, compañero de Cook)

I

   Contaré una historia que no está registrada en la Enciclopedia Británica: hacia finales del siglo XVIII de Nuestro Señor Jesucristo, Australia había sido visitada por los ingleses; el continente inspiró a Swift para sus viajes de Gulliver donde Liliput aparece como una landa diminuta después del naufragio. Gracias a la cartografía realizada por el navegante portugués Vasco Da Gama, los británicos pudieron adentrarse en los remotos mares aun desconocidos. Continuar a ler “UM CONTO de Federico Rivero Scarani”

RENDIMENTO BÁSICO INCONDICIONAL (RBI) – por Fernando Martinho Guimarães

Óleo sobre Tela. “Mendigos junto ao mar” de Pablo Picasso, 1903.

Apesar dos muitos problemas e falhanços sociais, políticos e económicos que vemos por este mundo fora, é inegável o progresso nas condições de acesso a uma vida melhor de muitos dos nossos semelhantes.

Estes avanços são particularmente visíveis nos domínios da saúde, da educação, na melhoria dos rendimentos e, por via disso, nos ganhos ao nível da igualdade de oportunidades e da capacidade de escolha, da liberdade.

Contudo, esta evidência não nos autoriza a acomodarmo-nos num optimismo ideológico que, por definição, esconde que muitos desses problemas sociais e económicos persistem e, em muitos aspectos, tendem a agravar-se.

Desde logo, a natureza do trabalho que o futuro promete. A inteligência artificial e a robotização trarão, trazem já, mudanças profundas no acesso ao trabalho e, com isso, ao rendimento disponível.

A exclusão social e a pobreza, realidades de hoje e ameaças quase certas de amanhã, obrigam-nos a reflectir sobre instrumentos possíveis para as minimizar ou, desejavelmente, as anular.

Ora, um dos instrumentos que tem vindo a ser cada vez mais debatido é a ideia de um rendimento básico universal e incondicionado.

A ideia é simples: a sociedade, o Estado, transfere directamente para cada indivíduo uma determinada quantia em dinheiro e esta transferência é universal e incondicionada. Empregado ou desempregado, rico ou pobre, todos receberiam mensalmente e sem condições esse rendimento básico.

É preciso dizer que esta ideia tem sido já experimentada em programas-piloto com sucesso desigual.

A Finlândia fez a experiência, só para desempregados, tendo abandonado o programa. A Escócia pondera levar à prática a ideia e a Suíça chegou mesmo a referendar o projecto do RBI que foi rejeitado por não estar especificado de onde vinha o dinheiro e qual o valor a ser distribuído.

Como em quase tudo que tem a ver com as questões sociais e políticas, encontramos argumentos a favor e argumentos contra.

Todos conhecemos a sentença segundo a qual não se deve dar peixe a quem dele precisa, mas sim ensinar a pescar. O que a sentença não diz é que para pescar é preciso cana, fio, anzol e isco. E muitos de nós não temos nada disso!

O rendimento mínimo garantido ou rendimento de inserção social deveriam ser a cana, o fio, o anzol e o isco, mas não são. Os sucessivos e intermináveis programas de combate à pobreza e exclusão social também não parece que o sejam.

A transferência directa e incondicionada dum rendimento mensal permitiria eliminar muitas das entidades intermediárias que levam as prestações sociais às pessoas. Para além de eficaz, afastaria o estigma social que está sempre associado a um sistema providencialista e mesmo assistencialista.

É que a pobreza custa muito dinheiro, nos custos da saúde, no insucesso escolar, nas taxas de criminalidade. O RBI, dizem os seus defensores, permitiria, se não eliminar, pelo menos reduzir drasticamente as consequências negativas associadas à pobreza.

Por outro lado, os críticos apontam objecções de natureza ética e política.

O RBI é imoral porque promove modos de vida baseados no ócio e na preguiça e, ainda, porque não incentiva à procura de trabalho. É possível que assim seja, mas não é certo que seja assim!

A objecção de natureza política é mais forte: se não é obrigatório trabalhar, então isso é injusto, uma vez que para que uns possam viver na ociosidade, outros têm de trabalhar.

Talvez haja aqui alguma injustiça, mas um sistema justo é aquele que maximiza a igualdade de oportunidades e a liberdade. E a sociedade que temos hoje é, indiscutivelmente, profundamente injusta!

Ponta Delgada, Fernando Martinho Guimarães

♦♦♦

Fernando Martinho Guimarães (1960) Nascido transmontano (Alijó, Vila Real), foi na cidade do Porto que viveu até aos princípios dos anos 80. De formação filosófi­ca e literária, a sua produção ensaística e poética reflecte essa duplicidade. Com colaboração dispersa, no Letras & Letras (Porto), revista Vértice e Parnasur (Revista literária galaico-portuguesa), no Suplemento Açoriano de Cultura do Correio dos Açores, passando pelo jornal Horizonte (Cidade da Praia, Cabo Verde), tem dedicado a sua actividade ensaística à poesia portuguesa e galega. De entre os portugue­ses é de destacar a poesia de António Ramos Rosa que foi tema da tese de Mestrado em Literatura e Cultura Portuguesa Contemporânea. Da poesia galega, a sua ensaística tem incidi­do sobre a poesia de Luisa Villalta (I Jornadas de Letras Gale­gas de Lisboa, 1998) e a de Manuel António (Colóquio Escritas do Rio Atlântico, Funchal, 2001).

Publicou em 1996 A Invenção da Morte (ensaio), em 2000 56 Poemas, em 2003 Ilhas Suspensas (edição bilingue, cas­telhano/português), em 2005 Apenas um Tédio que a doer não chega e em 2008 Crónicas.

O TERRAPLANISTA – por Francisco Fuchs

Até aquele dia, Emanuel jamais questionara o que seu professor lhe ensinava. Ao contrário de alguns de seus colegas, que com o passar dos anos aprenderam a temperar as lições recebidas em sala de aula com um grão de sal, ele sempre se deu por satisfeito com todas as explicações. Emanuel era inteligente o bastante para saber que sua inteligência não era privilegiada e, por isso mesmo, esforçava-se o quanto podia para assimilar o conteúdo das aulas. Ele não enxergava a si mesmo, no entanto, como um conformista; apenas não via razão para questionar verdades há muito estabelecidas. Se o verdadeiro não se torna falso, nem o falso se torna verdadeiro, por que perder tempo com vãs especulações? Assim, se era por aderir à verdade que o chamavam, por vezes, de conformista, e se a zombaria de que era alvo soava aos seus ouvidos como um elogio ao invés de uma ofensa, o que mais poderia fazer senão conformar-se? Continuar a ler “O TERRAPLANISTA – por Francisco Fuchs”

BESTIÁRIO DA SOMBRA E OUTROS POEMAS de Jaime Vaz Brasil

Bestiário da Sombra

A morte é um lobo à espreita:
imóvel, mudo e pulsante.
(No olho, o gelo põe cores
de quem domina, distante.)

A morte é serpente rasa
e nos vive – de pequenos –
destilando em nossas veias
o seu mais lento veneno.

A morte é um urso hibernante
que dorme, imóvel e quieto.
(Mas quando acorda, nos chama
para o seu sono secreto.)

A morte é um tigre faminto
na farta mesa das horas:
num salto breve, a surpresa
que nos alcança e abraça.

A morte é um rato inquieto
em seus caminhos esquivos.
(Finge que foge assustado,
mas rói o porão dos vivos.)

A morte é águia à espreita
em seu voo mais rasante.
(Com suas as garras, nos prende
e nos some, num instante.)
Ou morte é pássaro leve
ave branca, de outra escola
que nos flutua em silêncio
enquanto abre a gaiola…

♣♣♣

O Adeus

O adeus nasce do instante
entre a palavra e o passo.
(Mas cresce vazio de colo:
estreito, e com todo espaço.)

E nos ensaia seus gestos
seus rituais, suas danças.
É tão esquivo de corpo
que mão nenhuma o alcança.

O adeus nos alimenta
entre a memória e o fato.
(Mas come além do que é boca:
é a fome longe do prato.)

E vive assim, desde cedo
na pele de toda gente.
Chega descalço ou de gala,
e nos faz ave ou semente.

O adeus planta uma sombra
no que seria ou que foi.
(Por que o olho da saudade
só abre um tempo depois.)

Ele é como se, na escada,
a perna fosse o tropeço.
Por isso, prende e liberta
e é sempre fim e começo.

♣♣♣

Coração de Milonga

Enquanto o tempo desenhava
teu rosto dentro do meu corpo,
saudade em dó menor cantei mil vezes.

Falei de nós, um tanto triste
e um bandoneón chorou comigo:
amor, quando é amor, não morre nunca.
(E pra fugir de cada sombra
da solidão, que erguia os olhos,
me disfarçei na dor de um sustenido).

Amor, quem sabe um dia desses
no espelho da milonga eu veja
teu beijo renascido num segundo.

Por ti, amor, cantei o mundo
em noites longas que aprendia
a amar em sol maior
e tempestades…

Amar nas ruas, bares, campos
amar em solos de guitarra.
Amar com toda voz
e em silêncio.

Amar como só poderia
meu coração de milonga.

Quem sabe ler paixões humanas
na vida, sempre tão estranha,
se o amor as vezes fecha toda casa?
Andei por mares, vales, luas
andei em pedras, muros, portos,
amor, varei coxilhas do avesso.
(E andei no rastro do teu nome
no meu cavalo de brinquedo
colhendo a flor azul que me pedias).

Amor, quem sabe um dia desses
na alma da milonga eu veja
a face calma e breve das respostas…

Por ti amor cantei o mundo
em longas noites que aprendia
a amar em sol maior
e tempestades…

Amar nas ruas bares campos
amar em solos de guitarra.
Amar com toda a voz
e em silêncio.

Amar como só poderia
meu coração de milonga.

♦♦♦

Jaime Vaz Brasil  Poeta gaúcho, com 7 livros públicados e vários prêmios, dentre os quais: Açorianos, Felipe d’Oliveira e Casa de Las Americas (finalista). Atua também como compositor, tendo vários poemas musicados e interpretados por vários parceiros, dentre os quais Ricardo Freire, Flávio Brasil, Zé Alexandre Gomes, Nilton Júnior, Vitor Ramil e Pery Souza.