REVISITAR MACHADO, EÇA E KAFKA – Hilton Fortuna Daniel

REVISITAR OS SÉCULOS XIX E XX PELAS NARRATIVAS DE MACHADO, EÇA E KAFKA

  1. Introdução

Este estudo inscreve-se num quadro de análise teórico-pragmática, assumindo aqui uma visão de literatura comparada, a qual tem por objetivo revisitar o imaginário da criação artística ocidental dos séculos XIX/XX, compreender a sua influência, contribuição e transversalidade para aquilo que se afigura como momento de recessão a nível do poder de criação artística situada na literatura do século XXI. Com efeito, a literatura tem vindo a assumir uma amplitude e extensão que muito pouco de relevante transparecem para a realidade e utilidade humana nos dias atuais. Ou os séculos XIX e XX produziram o bastante, ou o século XXI não faz por merecer.

No seu livro “Genius: a mosaic of one hundred exemplary creative minds”, Harold Bloom, um dos mais prodigiosos críticos, estudiosos e conhecedores da literatura ocidental, destaca 100 dos autores mais brilhantes e criativos da história da literatura e não só, entre os quais constam Machado de Assis, Eça de Queirós e Franz Kafka, além de Homero, Platão, Freud, Nietzsche, Pessoa, Dante Alighieri, Shakespeare etc., pelos quais, também, confessamos a nossa clara admiração.

É, pois, necessário sublinhar o valor dos séculos XIX e XX como o tempo durante e a partir do qual a literatura, a filosofia, a pintura, a música e várias correntes e postulados – como o Estruturalismo – brotaram contribuições áureas para a nossa geração e, concretamente, para o pós-Modernismo.

Ainda que esta viagem esteja assente, sobretudo, nas literaturas machadiana, queirosiana e kafkiana, a história da arte contemporânea submete-nos a uma eterna evocação a autores por quem nutrimos exacerbada devoção, sem os quais não nos seria permitido obter realidades paralelas e compreender determinados factos, como Alexandre Dumas (pai e filho), Sophia de Melo, Fernando Pessoa, Goethe, Claude Lévi-Strauss, Lima Barreto, Liev Tolstói, Clarice Lispector, Hans Christian Andersen, Florbela Espanca, Roland Barthes, Jean Paul Sartre, Antonio Gramsci, Victor Hugo, Michel Foucault, Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud, ou ainda, mais para o Sul de África, Ngũgĩ wa Thiong’o, Wole Soyinka etc.

Sublinhe-se, porém, que, quaisquer que tenham sido as teorias defendidas e difundidas por alguns destes autores, as quais muitas vezes terão despoletado imensas controvérsias e indignações nos campos da política e filosofia (como Sartre, Nietzsche, Gramsci, para citar os mais flagrantes dos autores), é consentânea a contribuição para a continuação de uma ciência literária de vanguarda. Convenhamos que o nosso tempo – o século XXI – está sedimentado em signos linguísticos e códigos literários paralelos e não isolados, os quais são percetíveis em Machado, Eça, Kafka e outros do seu tempo.

  1. A Tríade – a origem

Machado → Brasil→ 21 de junho de 1839 → 29 setembro de 1908.

Eça → Portugal→ 25 de novembro de 1845 → 16 de agosto de 1900.

Kafka → República Tcheca→ 3 julho de 1883→ 3 de junho de 1924.

Os três autores aos quais nos referimos nascem no século XIX e vivem até o século XX, com efeito, vivenciam os reflexos e efeitos do Período Napoleónico. São, portanto, autores cujas obras estão manifestamente enquadradas na transversalidade do Expressionismo Alemão, um movimento artístico que surgiu no início do século XX, do qual Edvard Munch foi pioneiro. Foi precisamente nesta senda que, no Brasil, enquanto Machado de Assis impregnava na sua narrativa valores caraterísticos desse tempo (a ironia, metáfora, alegoria, o Realismo etc.), Cândido Portinari, um pintor mais expressionista do que cubista, pouco tempo depois, pintava a realidade de um tempo posterior expressa com óleo sobre tela e sobre madeira. Portinari, tal como Machado de Assis, tinha uma relação direta com o que se fazia na Europa, particularidades que se veem nas suas obras: Os Retirantes, Criança Morta, O Mestiço, O Lavrador de Café, Paisagem com Bananeiras, Meio Ambiente etc.

Aliás, é-nos fácil perceber que o romance “Guerra e Paz”, de Liev Tolstói, de 1869, embora o próprio autor se tenha recusado a designar a obra como romance, possa ter servido de código influenciador para o concebimento dos painéis “Guerra e Paz” de Cândido Portinari, produzidos entre 1952 e 1956, não fossem os dois autores conviver com o Expressionismo Alemão e o Cubismo «Francês».

  1. Simbolismos ou Semiótica

Os autores que ora se nos apresentam convocam uma literatura transversal e que se transpõe do século XIX ao XXI, a qual se circunscreve em contextos muito próximos, embora Machado de Assis se centrasse mais numa poética e num génio criador acoplado a um Brasil à procura do seu próprio imaginário e identidade, despindo-se do património ocidentalizado. Fazendo jus ao contexto, à época, e com certa razão, tanto Machado quanto Eça, e mesmo Kafka, incorporaram reiteradas vezes a discussão sobre o Existencialismo (algumas vezes, o cristão – outras, o ateu). Aliás, citando Sartre (2004: 33) “cada um tem as suas razões: para este, a arte é uma fuga; para aquele, uma maneira de conquistar”. E é neste sentido que fazemos uma incursão analisando «a obra» de três autores para percebermos as motivações e algumas simbologias marcadas nas suas narrativas.

A nossa intenção não é, de maneira nenhuma, aplicar conceitos exclusivamente teóricos no campo semiológico nem os sistematizar como se a literatura não fosse um exercício meramente pragmático. Alinhámos no pensamento de Bloom quando afirma, numa perspetiva da crítica literária, que:

A crítica literária, conforme aprendi a entendê-la, deve ser experimental e pragmática, e não teórica. Os críticos que considero meus mestres — especialmente Samuel Johnson e William Hazlitt — exercem seu ofício no sentido de explicitar, com elegância, o que está implícito na obra analisada. No presente estudo, ao analisar um poema lírico de A. E. Housman ou uma peça de Oscar Wilde, um conto de Jorge Luis Borges ou um romance de Marcel Proust, procuro, acima de tudo, perceber e articular o que pode e deve ser explicitado. (Bloom, 2001, p. 15).

Por esta razão, pensamos que toda a leitura que se possa fazer relacionando a semiótica com as obras da tríade está verdadeiramente situada no pragmatismo dos códigos linguísticos – e na sua interpretação.

O termo semiótica é relativo à ciência ou ao estudo dos sinais como sistema de comunicação. É a ciência que se ocupa no estudo dos signos; um signo é um sinal, isto é, uma unidade linguística que possui um significante e um significado. Por exemplo: a palavra “mesa” tem uma significação em função do nosso prévio conhecimento sobre ela. Se o Tarzan viesse da sua ilha, não saberia nem o significado nem o significante da palavra “mesa”. Todavia, Ferdinand Sausure distinguiu, dentro do signo linguístico, o significado (como a representação mental de alguma coisa, imagem visual ou sonora) e o significante (a forma real, a forma física da coisa). Os signos acabam por ser a representação e os instrumentos de comunicação.

Por sua vez, Peirce (2000) consideraria um signo como aquilo que, sob certo aspeto ou modo, representa algo para alguém. E é precisamente este o nosso enfoque: o que a literatura dos séculos XIX e XX representa. Mas sem entrar numa exaustiva explicação linguística, cingir-nos-emos apenas no essencial: na semiótica como ciência que estuda os signos; os signos que são sinais artificiais; e os sinais que são os elementos fundamentais para que haja comunicação e linguagem.

A arte tem as suas utilidades, aplicabilidade e os seus objetivos, concordamos, por isso, com Sartre (2004: 34) que afirma que “um dos principais motivos da criação artística é, certamente, a necessidade de nos sentirmos essenciais em relação ao mundo”.

É imperioso referir que a França – com as suas língua e cultura – foi um importante manancial de para muitos artistas na Europa e na América, essencialmente, nos séculos anteriores e posteriores ao XIX, devido a fatores como o Iluminismo, a Revolução Francesa e do Período Napoleónico.

Eça de Queirós é considerado, pela grande maioria dos críticos literários, como um dos pioneiros e o pai do Romantismo Português, o que mais projetou Portugal no panorama internacional. Já Franz Kafka é uma referência europeia e de leitura obrigatória, não só representando a República Tcheca ou o ex-império Austro-Húngaro, mas mais por a sua obra representar uma linguagem refletida na metáfora e na ironia.

O continente americano teve reflexos do caos que se viveu no continente europeu, por via da relação condicionada entre colonizados e colonos. As obras machadiana, queirosiana e kafkiana transportam-nos, indubitável e necessariamente, para um mesmo contexto e pretexto em que estiveram inseridos autores igualmente importantes como Arthur Schopenhauer (filósofo alemão- 1788), Friedrich Nietzsche (filósofo alemão- 1844), Liev Tolstói (escritor russo- 1828), Edvard Munch (pintor expressionista norueguês- 1863), Pablo Ruiz Picasso (pintor cubista espanhol-1881), o próprio Alexandre Herculano (historiador e escritor português- 1810) e Luigi Pirandello (escritor italiano- 1867), pois, muitas vezes, defendiam o Liberalismo em detrimento do Absolutismo e da intolerância dos monarcas, a preocupação era a justiça social, a ética, a moral, a religião (com questionamentos aos valores cristãos), o cuidar do próximo, o sofrimento, a comiseração e a condescendência. E, se precisassem de ser grotescos, eram-no na arte que exerciam, diante da qual expressavam tais emoções.

No fundo, havia motivações e motivos para que houvesse, nesse período, produções artísticas que representassem situações de uma sociedade indignada, resignada, insatisfeita, insegura e sedenta de transformações, ademais, Barthes consideraria que:

Todas as análises sócio-ideológicas concluem pelo caráter decetivo da literatura (o que lhes tira um pouco de sua pertinência): a obra seria finalmente sempre escrita por um grupo socialmente desiludido ou impotente, fora de combate por situação histórica, económica, política; a literatura seria a expressão dessa decepção. (Barthes, 1987, p. 53).

As causas por que lutavam, em que acreditavam, eram as mesmas; de outra forma não diria Eco (2005), segundo o qual, às vezes, as duas coisas são semelhantes pelo seu comportamento, às vezes pela forma e outras vezes pelo facto de terem aparecido juntas num certo contexto, contanto que se consiga estabelecer algum tipo de relação, o critério é o que menos importa.

Assim, percebermos a narrativa de Victor Hugo, fundamentalmente n’Os Miseráveis, e notamos certa proximidade com algumas obras de Kafka como “A Metamorfose”, onde o desemprego, a miséria que aflige as famílias, um protagonista bastante sacrificado e injustiçado e a falta de ética são fulcrais no desenrolar das duas histórias. Mas a literatura tem diversas incumbências ou, talvez, nenhuma incumbência, e não só a função fotográfica de uma realidade objetiva. Se há uma coisa que a literatura tem é utilidade; senão para quem a recebe, provavelmente para quem a produz.

  1. Machado de Assis: o processo de influências literárias

Para começar, transcrevemos a leitura que Bloom faz sobre a narrativa machadiana:

Machado de Assis is a kind of miracle, another demonstration of the autonomy of literary genius in regard to time and place, politics and religion, and all those other contextualizations that falsely are believed to overdetermine human gifts. (Bloom, 2002, p. 653).

Machado de Assis foi um criador que, miraculosamente, tal como Alexandre Herculano ou Goethe marcaram o seu tempo. Um outro perfil das suas crónicas e demais narrativas era de possuir uma competência distinta na prosa-poética, qualidade que muito poucos autores possuem. Como autor, cria um narrador que contaria a sua própria história no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas; Brás Cubas é uma personagem que está no além, que conta o seu próprio itinerário. Com este estilo, Machado edifica uma visão futurista do Realismo no Brasil.

Ao ser escrita sob a perspetiva de quem já morreu, a narrativa machadiana remeter-nos-ia para o facto de se admitir as impurezas da humanidade, a mortalidade, o pecado, o arrependimento e também a possibilidade dantesca do inferno, do purgatório ou do paraíso. Isso leva-nos a refletir sobre o Existencialismo de Sartre: as coisas são o resultado da ação do homem, a existência precede à essência. Para Sartre, era o ser que fazia surgir o nada. Mas, claro, quem foram os autores que influenciaram Sartre? Marx, com o Materialismo; Husserl, com a Fenomenologia e Heidegger, com o Existencialismo. Nomeadamente autores que influenciaram também um pouco do pensamento ideológico dessa época.

Quando um “morto” narra, a título póstumo, fá-lo a partir de um espaço, seja sob a terra ou sobre ela. Claramente, a narrativa machadiana é recheada de preocupações com a etnicidade como em Memórias Póstumas de Brás Cubas; com a moral como em Dom Casmurro, que, aliás, acaba por se aproximar da narrativa portuguesa na qual podemos destacar as temáticas da religião, moral, ética, do pecado como nas narrativas de Eça de Queirós, Almeida Garrett, Camilo Castelo-Branco e de Alexandre Herculano.

O imaginário machadiano teve influências muito vincadas na sua conceção, uma das quais foi François-René de Chateaubriand, autor francês (1768—1848), pioneiro num estilo diferente e inovador com o livro Mémoires d’Outre-Tombe (Memórias do Além Túmulo), escrito entre 1848 e 1850.

Em Memórias no Além-Túmulo, uma história que transcorria um universo contado por um morto, Chateaubriand exerceu uma infindável influência literária no Romantismo pós-Revolução Francesa. Machado de Assis acabou por encontrar nas obras de quem o viria a inspirar fortemente uma base para tomar de empréstimo, através da leitura vasta que fazia, e desenvolver o seu próprio estilo. Aliás, entendemos que uma influência não é uma cópia tal qual nos assegura Bloom:

A grande escrita é sempre reescrita ou Revisionismo, e baseia-se numa leitura que abre espaço para o eu, ou que opera dessa maneira para reabrir as obras antigas aos nossos sofrimentos recentes. O que é original, nada tem de original. (Bloom, 2013, p. 24).

Chateaubriand não só influenciou M. de Assis como Victor Hugo, Lord Byron, influenciou, como um dos pioneiros do Romantismo, um conjunto de autores franceses e não franceses da sua época e não só. No entanto, ainda dentro deste processo de influência literária e como afirmava no seu Pragmatismo Ralph W. Emerson, citado por Bloom (2013, p. 24), entendemos que apenas um inventor tem talento para pedir emprestado e reinventar como lhe aprouver.

Então, Machado de Assis introduziu na literatura do Brasil esta visão metafísica «além do comum», demarcando certa ‘paranormalidade’ literária nos clichés da sua época à qual muitos escritores seguiriam como mecanismo de variação de uma narrativa: narrar na perspetiva de um morto. Isto é perceber e colocar-se na condição da vida em retroação, a qual possa estar sujeita a qualquer humano. É esta uma ironia da vida?

E este processo de influência, além de ser infindável, remete-nos a uma verdade irrecusável, pois basta ler os romances,

1º- Mémoires d’Outre-Tombe (Memórias do Além Túmulo), de François-René de Cateaubriand, que começou a ser escrito no início do século XIX, por volta de 1809, cujo título inicial seria “Memórias da Minha Vida”, e terminado em 1841, mas que viria a ser publicado perto de 1849 e 1850, em dois volumes;

2º- Memórias de Brás Cubas, de Machado de Assis, escrito no final do mesmo século, o XIX, por volta de 1881;

3º- O Planalto e a Estepe, de Pepetela, escrito-publicado no século XXI,

percebemos, evidentemente, que Bloom (2013, p. 20) não podia invocar tamanha verdade ao afirmar não haver escrita forte, canónica, fora do processo de influência literária. Mas há um traço que difere a primeira obra das segunda e terceira: na primeira, em Memórias do Além Túmulo, o autor cria um narrador que se prepara para contar a história no declinar da sua vida, à narrativa se junta o facto de o narrador se preparar para a morte; já nas segunda e terceira, o narrador-personagem, já morto, conta o seu percurso.

Se, de um lado, podemos associar a obra de Machado de Assis à sua vida, à luz do método de Sainte-Beuve, de outro, Proust (1988, pp. 51-52) contraria afirmando que a obra de Sainte-Beuve não é profunda. O famoso método que, segundo Taine, Paul Bourget e muitos outros, se tornou o guia inegável da crítica do século XIX, esse método que consiste em não separar o homem da obra não tem consistência. Proust reprova o método de Sainte-Beuve, segundo o qual este munia-se de informações possíveis de um dado escritor, colecionava correspondências, conversava com as pessoas que conheceram o autor, conversava com os próprios autores, lia o que escreveram e concluía que havia Intencionalismo e Biografismo com base nos resultados. Proust, rebatendo Sainte-Beuve, afirmava ainda que um livro é o produto de um outro e não necessariamente resultado dos nossos costumes, da sociedade e dos vícios.

  1. Eça de Queirós: visão e interpretação

Eça de Queirós, diferente de Machado de Assis, assiste a todo o processo de reformulação dos ideais iluministas (mesmo fora do seu tempo), sem precisar de sair do seu continente; aliás, participa, com a construção das suas ironia e metáfora, desta revolução tácita dos fenómenos que permitiam à Europa assinalar alguns avanços outrora considerados impensáveis, por parte da aristocracia, da classe clerical e das elites burguesas.

É de conhecimento comum que Eça, sendo, porventura, o mais prodigioso dos romancistas portugueses, teve influências de Balzac e de Flaubert.

Este processo de influência, na visão pierceana, submete a linguagem num signo, num objeto e, por fim, numa interpretação. Por esta ordem de ideias, para Peirce, para haver interpretação, deve haver um signo e um objeto. E é precisamente neste âmbito que os factos da narrativa queirosiana nos proporcionam o tal signo e os significados destes factos, que é o objeto, levam-nos a uma interpretação sensata dos sinais que transmite na sua obra.

Sartre (2004:33) considera que “cada uma de nossas percepções é acompanhada da consciência de que a realidade humana é «desvendante»; isto quer dizer que através dela “há” o ser, ou ainda que o homem é o meio pelo qual as coisas se manifestam”, portanto a narrativa queirosiana desencadeia esta visão peirceana, uma visão multi-interpretativa; esta narrativa é dotada de uma religiosidade profunda e de controvérsias em si mesma (não no autor, mas a nível do narrável):

Padre Custódio enrolava devagar o guardanapo, a sua batina coçada luzia nas pregas das mangas; de resto não era católica praticante; as igrejas apenas a atraiam pelos lados graciosos e artístico do culto, a música, as luzes, ou os lindos meses de Maria, em França, na doçura das flores de maio. (Os Maias).

Eça carrega em sua literatura marcas e vivências do seu tempo, as quais são evidentes, por exemplo, n’Os Maias, onde o valor da família era o puritano, a castidade e a proibição e inibição do que se considerava pecado, o inaceitável no sentido dos princípios emanados pela religião entre os séculos XVII e XIX, e até princípios do século XX:

Bem sei. Mas tudo isso que você lhe ensinaria que se não deve fazer, por ser um pecado que ofende a Deus, já ele sabe que se não deve praticar, por que é indigno dum cavalheiro e dum homem de bem… (Os Maias).

Mas, se observarmos com atenção, notamos que a narrativa querosiana, sobretudo n’Os Maias, n’O Crime do Padre Amaro e n’O Primo Basílio, era na perspetiva de as suas personagens viverem numa periferia criada pela saturação dos preceitos catolicistas e, só por isso, extremamente religiosos: vivia-se ainda, embora em sinais de declínio, o Puritanismo ao qual se opôs afincadamente Liev Tolstói.

As três obras de Eça de Queirós, já citadas, cujas temáticas estão sensivelmente correlacionadas, contrastam a santidade do pecado, a catolicidade de um desvirtuar de valores e a apostolicidade da desistência do sacerdócio: eram os valores que a sociedade fazia nascer para si mesma contra os valores da Igreja Católica Apostólica Romana, cujas premissas nem sempre foram entendidas com bom senso pela maioria, ou não fosse Martin Luther (teólogo alemão – 1483) um pioneiro a não-adesão aos dogmas do Catolicismo Romano, segundo o qual a fé, mecanismo pelo qual se chega a Deus, não deve ser “comercializada”.

Em Queirós, querendo ou não, transparece esta mensagem subliminar: uma mensagem em que a descristianização e a própria Revolução Francesa foram sinais de que a sociedade se ia segregando da igreja.

  1. Franz Kafka: um discurso metaforizado

Muitas leituras têm sido feitas à volta da sua vasta obra. N’A Metamorfose, por exemplo, Gregor Samsa, personagem principal, sente-se sobrecarregado pelo trabalho, pela responsabilidade de sustentar a família (pai, mãe e irmã) e pelo desprezo da sua própria família depois de, numa certa manhã, sentir-se transformado num inseto desconhecido, incapaz de trabalhar e exercer quaisquer outras atividades humanas.

Diante desta transformação – entenda-se metamorfose – a estória emerge e caminha de forma despropositada. Esta narrativa, a partir da qual outras personagens surgem, tem como maior sacrifício a recusa da família em ver um membro transformado num inseto. Sente-se rejeitado, há um constante combater o inseto-humano, apesar da tentativa de a irmã cuidar do “irmão-transformado”.

Mas uma pergunta levanta-se: não será essa família de Gregor Samsa representada hoje, em pleno século XXI, numa sociedade intolerante em relação às escolhas individuais? Não será essa família o símbolo de uma sociedade preconceituosa e disposta a julgar com qual tamanha crueldade o simples facto de uns não nascerem como a maioria? O que se pode subentender no inseto? Um ser necessário para o equilíbrio, é a diversidade? Ou o inseto é a negação, a fuga ao que se é e vive, ao insuportável?

Muitas vezes não matamos os insetos, porém deixamo-los morrer pelas mãos de outrem, sem, no entanto, nada fazer. Então compactuamos com quem os mata. Se virmos o mal e nada fizermos para o conter ou reprimir, somos tão coniventes quanto os culpados, afinal, somos tão culpados quanto os primeiros culpados.

No seguimento do que vimos a afirmar, o professor Modesto Carone (2009, p. 16) entende que esta trama recupera um nível arqueológico da linguagem, o que confirma os desígnios artísticos de Franz Kafka. Carone ainda destaca a facilidade em achar que o romance “A Metamorfose” deve ser lido não como uma novela fantástica, mas como uma trágica história de família, pois, argumenta o mesmo autor, esquivando-se da inconsequência da mera diversão, o romance condensa, em algumas imagens inesquecíveis, que já fazem parte da literatura universal, o que mais tarde (citando Adorno, 1977) suscitou “a origem social do indivíduo (a família) revela-se no final como a força que o aniquila”.

Kafka também anunciava, ou melhor, prenunciava, os dilemas dos nossos dias n’O Processo.

O Processo, livro publicado um ano depois da morte de Kafka, portanto, publicado em 1925, é um romance peculiar ao seu estilo. Inicialmente, eram cartas que Kafka escrevia, guardadas em envelopes, sem a mínima intenção de as transformar em livro. Parece-nos uma prova em que o autor revela momentos da sua época numa narrativa tornada pública. Além do estilo de Franz Kafka, muito rígido, sóbrio e sombrio, às vezes realista, às vezes surrealista – e com um narrar algumas vezes fantasmagórico – obediente a um ritmo, pausa ou abrandamento na forma como narra, é conhecido por ser um autor particularmente difícil de se ler, mas que quem o lê, percebe logo que não se trata de um autor comum na sua personalidade, que acaba por afetar toda a sua obra.

Kafka trabalhou numa companhia de seguros, talvez tenha sido determinante este dado para que as suas personagens tivessem profissões afins. Bloom (2013) afirma que o referido autor era um ironista demasiado inteligente para acreditar que tanto a sua arte como a sua vida se misturavam de um modo suficientemente profundo com a diversidade do mundo. Além de que, a própria narrativa n’O Processo remete-nos aos dias de hoje onde a burocracia é sistematicamente um caos nos tribunais e grosso modo no Estado: um dado curioso que Kafka teria registado, pelo seu trabalho e pela sua vida difícil.

Outro elemento importante é o simbolismo feminino. Se, por um lado, a mulher, nas narrativas desse século XX, simbolizava fragilidade, por outro, podia ser alguém em quem homem nenhum devia confiar. Note-se n’O Processo:

 Procuras demasiado o auxílio de estranhos – disse o padre com um ar de desaprovação – e em especial o das mulheres. Não vês que este não é o verdadeiro auxílio?

Talvez se percebesse com a maior das naturalidades uma frase assim, naquele contexto, o que hoje seria de tamanha inconsequência. Mas esta visão kafkiana denuncia o extravaso e o conservadorismo religioso, os quais, como anunciamos, caraterizam também as estórias de Eça e Machado, que aportaram os nossos dias.

A narrativa kafkiana está sempre no limiar entre o universo imaginário e o fotográfico, entre o mistério e as aparentes evidências, é isso que faz andar as suas estórias.

Sobre Kafka, o professor Modesto Carone, especialista em Kafka, afirma que, enquanto Kafka visitava uma exposição de pintura francesa numa galeria de Praga, este entretinha-se com várias obras de Picasso: como se sabe, Pablo Picasso passou muito do seu tempo em França, embora tivesse nascido em Málaga e o século XX ser “assaltado” pelo Expressionismo Alemão, Picasso via o século XX de forma diferente e, por isso, foi um impulsionador do Cubismo. Queremos crer que Franz Kafka esteve influenciado pela cultura europeia de que fez parte e presenciou até à exaustão os fenómenos sociais por que o seu território passou, acompanhou os factos sociais e os movimentos artísticos antes do seu tempo e no seu tempo.

Para interpretar Kakfa não basta dizer que a alegoria é o refúgio do mesmo, é fundamental entender a transversalidade que acarreta um conjunto de acontecimentos dos séculos XVI até aos XIX/XX e perceber que Kafka vivenciou (direta e indiretamente) cada um desses factos, dentro de casa ou na rua, na infância ou da juventude, viu guerras e divisões de territórios, viu-se muitas vezes subjugado, injustiçado e assistiu a muitos factos inaceitáveis.

Enfim, talvez sejam romances situados no estilo do Biografismo, pois há muitas referências de nomes muito próximos do seu que nos possa levar a decifrar de tal modo. Se entendermos que a vida de Kafka foi tão dura, áspera e difícil, ser-nos-á fácil compreender que não é difícil ver um Kafka que se socorre da metáfora, da alegoria, do subliminar para denunciar alguns atos a que assistiu e, nalguns casos, vítima destes. Embora tivesse sido rebatida por Marcel Proust, no seu ensaio Contre Sainte-Beuve, e por inúmeros outros autores como Roland Barthes e Charles Augustin, Sainte-Beuve, rejubilado por Jean-Paul Satre, perspetivou uma metodologia bastante polémica, mas que não é assumidamente uma inverdade, em nosso entender. Sainte-Beuve acreditava que a obra de um autor podia ser o reflexo da sua vida. Isto resultaria da busca da intenção poética do autor, o Intencionalismo, e das qualidades e condições a que o autor esteve ligado, o Biografismo.

Conclusão

Enfim, o mais importante é percebermos que toda essa temática do século XIX só foi possível pela transversalidade de movimentos pioneiros e de vanguarda que também despoletaram inúmeras influências para artistas do século XXI, através dos ideais iluministas que estiveram na base do pensamento filosófico e artístico de um movimento vanguardista.

A narrativa machadiana é repleta de elementos que descrevem a condição da natureza humana, o amor e ódio, é minuciosamente profunda na questão do debate sobre os problemas da vida social. Um escritor cuja obra oscilou entre o Realismo e o Romantismo.

Com tudo o que se possa ler da vasta obra de Eça de Queirós, a sua narrativa desempenha uma função de manifestar ao mundo as questões políticas de Portugal (e da Europa), os conflitos religiosos e políticos, as dinâmicas culturais na Europa, a questão do amor à pátria e à língua, a família etc., também há a enunciação de uma Europa por onde se possa viajar dentro e fora das histórias romanescas, há a ideia de uma Europa por vezes homogénea, por vezes heterogénea.

Sempre houve (e ainda há) a controvérsia entre os que acreditam que Kafka teria sido biográfico de mais e os que entendem a sua obra como resultado de criação literária. Kafka concretizava uma visão metafórica, paralela e cheia de códigos, denunciando, por vezes, pelas suas personagens e nos próprios enredos, o contexto e a problemática à época.

De todo o modo, estes três autores representam uma ponte histórica no domínio da escrita, com influências de várias expressões artísticas, situadas em vários movimentos e correntes. Sem dúvidas, a filosofia desempenhou um papel indescritível na construção das consciências social, política e artística nestes três.

As mensagens, os sinais e as preocupações são transversais e revelam aspetos ligados à sociedade: as injustiças sociais, as interpretações e aplicações das leis, as guerras e as guerrilhas, a religião, a moral e a ética, a política, o pensamento filosófico, a própria literatura, a intolerância, o preconceito social e racial, a rejeição do outro, o ódio ou o amor, a família (casamento, divórcio, amor proibido, viuvez, distância geográfica muito acentuada entre um casal, saudade), a sexualidade (castidade, promiscuidade, incesto, a in-fidelidade); e através de uma escrita transversal e profética, inserem-se num universo temporal que se desloca do século XIX aos nossos dias.

Bibliografia de Apoio

Eça de Queirós. O Crime do Padre Amaro. NEAD: Universidade da Amazônia.
Eça de Queirós. Os Maias. NEAD: Universidade da Amazônia.
Franz Kafka. O Processo. Biblioteca Visão. Tradução: Gervásio Álvaro, 1946.
Franz Kafka. A Metamorfose. NEAD: Universidade da Amazônia.
Machado de Assis. Dom Casmurro. Nova Aguilar; Rio Janeiro, 1994.
Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Nova Aguilar; Rio Janeiro, 1994.
Machado de Assis. O Alienista. NEAD: Universidade da Amazônia.

Referências Bibliográficas

BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. Editora Perspectiva, 1987.
BLOOM, Harold. Genius: a mosaic of one hundred exemplary creative minds. Warner Books, New York, 2002.
BLOOM, Harold. Como e Por quê Ler? Objetiva LTDA, Rio de Janeiro, 2001.
BLOOM, Harold. O Cânone Literário Ocidental. Temas e Debates, 2013.
CARONE, Modesto. Lição de Kafka. Companhia das Letras, 2009.
ECO, Humberto. A Interpretação e a Superinterpretação. Tradução e Revisão da Tradução e Texto Final: Monica Stahel e Martins Fontes Editora Ltda, São Paulo, 2005.
MARCEL, Proust. “Contre Sainte-Beuve. Notas sobre crítica e literatura”. Iluminuras, São Paulo, 1988.
PEIRCE, Charles. Semiótica. Estudos-Perspectiva, 2000.
SARTRE, Jean-Paul. O Que é a Literatura? Editora Ática, São Paulo, 2004.

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Hilton Fortuna Daniel interessa-se por Linguística Aplicada; Sociolinguística; Literatura; Lexicologia e Lexicografia. Participou de diversas coletâneas no Brasil, em Portugal e não só, entre as quais Vamos Falar de Portugal II; Crónicas do Bar dos Canalhas; Poesias Contemporâneas IV; Coletânea Antologia da Lusofonia Vol. II; Best New African Poets 2017 Anthology. Colabora na Academia das Ciências de Lisboa. Tem o mestrado em Ensino do Português, pela Nova de Lisboa, FCSH. Formou-se na Universidade Agostinho Neto, na Escola Superior Pedagógica da Lunda-Norte, na área de Didática do Português. É docente de Português e de Técnicas de Comunicação no Instituto Superior Gregório Semedo. Lecionou Semiótica e Técnicas de Comunicação, na Universidade Metropolitana de Luanda.

hiltondaniel2014@gmail.com