A POESIA de Delalves Costa

O Relógio

Me apunhalaram. Uma carne fria
com estímulos eletrônicos,
assim deixaram minha alma.
Me arrancaram o susto de vida
e deram corpo ao previsto.
A alma que soprava arrepios
agora é piano sem lírica
e palpável às mãos do mundo.
Carne de metal: não chora,
não contempla. Só vê.
Frio é o afago, como é
também o nosso tempo
– esse homem de muitas portas
e chaves humanas,
e contudo vazio de mistério.
Arrancaram da caixa mágica
a lírica, a música e o susto.
O sangue já não é quente…
O corpo já não me escuta…
Me apunhalaram ainda n’alma
e me jogaram à carne fria
que não chora nem contempla.
Me arrancaram o susto
e no lugar puseram o relógio.

♣♣♣

Rio acima, instante nascente

I

Estava nuvem, dela
descendo. Límpido rio abaixo
é fonte da flor à raiz
(da capuchinha ao
inhame). Para pro-
ver futuro-semente
outonal, o refúgio do homem
bicho-fome afluent(e fluente)
onde peixe deságua
à boca dos caiaques;
onde terra é morte
vida, decomposição
à medida que o rio aventura-
(se)m temer a queda

II

Após abocar a morte
e o reflexo da tosca lagarta
já sem sua bromélia,
o rio bebe as pedras
e liberta as margens
(liberta-se) pra ser adiante
o mar que foi no céu

III

embora ledo, a fúria
(voraz cortejo) do rio abaixo
depois de muito contemplar
aliás, contempla-(se abisma)
estranho ao vilarejo.
Apesar, dia bucólico:
lar a flertar outono
(poço a ter patente)
arca das espécies. Empático
mordisca ribeiras; não lima
não arrasta tampouco furta
animal do instinto

IV

de súbito enfermo
(e inconstante sem reter-se)
morde o concreto
– regurgita almas
retorcidas, fomes
enlatadas; rotinas
extemporâneas que velam-se
(enquanto) lama a céu aberto

V

ressaca. As pedras
o barro longe das margens,
e coisas que rio desconhece:
o metal pesado, re-
jeitos nunca vistos
e incrédulo, quem:
o bicho-fome, a fo-
me faz rio, se outrora nu-
vem mistério sem cidade
de súbito, a morte

VI

(lagarta). Destino
rio abaixo não tem querer
é água que arrasta
o podre do tronco,
o vital do instinto – o voo
da bromélia afoga-
se para estar peixe
poesia rio acima; renascer,
instante nascente.

♣♣♣

Onde está o humano, meu Deus

I

Pessoa, liberte-me de mim. Pois
quem estou não basta
turvo refletido, eis açude no céu
e acaso ret(raso que nos arrasta)
se embora mar em rio
em nascente se decerto
porre no paço; o mais
dia menos dia esgoto céu aberto

II

fez-se hoje, a nuvem empedrou
d(entre céu, cidades)
fome do amor tempo
embora a terra fértil
gauche: fluído homemporâneo
refugiado no vão das fronteiras
raiz qual não nos fixa
no útero, sem eiras nem beiras

♦♦♦

Delalves Costa (13 de dezembro, 1981 – Osório, RS, Brasil), poeta com publicação em diversas coletâneas e plataformas literárias impressas e digitais no Brasil e em Portugal. É membro sócio-fundador da Academia dos Escritores do Litoral Norte (AELN/RS) e sócio da Associação Gaúcha de Escritores (AGES). Tem 9 livros publicados, os mais recentes “O Apanhador de Estrelas” (Class, 2018) e “extemporâneo” (Coralina, 2019). Tem publicado ensaios nas revistas de circulação nacional Conhecimento Prático/Língua Portuguesa e Conhecimento Prático/Literatura e artigos de cunho científico em revistas e livros acadêmicos. Palestrante nos campos do ensino e da literatura e pesquisador acerca da cultura locus-regional do Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Possui Mestrado Profissional em Educação pela Uergs – Unidade Litoral Norte, Osório/RS, Graduação em Letras Licenciatura Plena Português e Literatura Portuguesa pela Unicnec, Osório/RS. Profissionalmente, professor de Português, Literatura e Metodologia de pesquisa. Em 2019, foi escolhido Patrono da 34ª Feira do Livro de Osório e um dos 60 autores do Projeto Autor Presente, do Instituto Estadual do Livro do RS.