“Com Navalhas e Navios” (recensão) de Fernando Martinho Guimarães

Com Navalhas e Navios é uma colectânea, uma antologia, uma «poesia reunida», que compreende parte da produção poética de Urbano Bettencourt, desde o volume inaugural de 1972, Raiz de Mágoa, até ao livro África e Verso, de 2012. Encontramos, ainda, no seu fecho, uma série de 5 poemas dispersos. E em nota final, diz-nos o autor que deixou de fora um conjunto de poemas, principalmente dos seus dois primeiros livros, o já referido Raiz de Mágoa e o Marinheiro com Residência Fixa, de 1980. Mais nos diz que, na recolha de poemas que constitui este Com Navalhas e Navios não está a maior parte dos seus textos poéticos em prosa e algumas narrativas breves. Promete-se, nesta nota, que em devido tempo virão a lume, reunidos e reorganizados. O prometido é devido e ficamos nós, seus leitores, a aguardar.

O presente livro conta, ainda, com um Prefácio do poeta Carlos Bessa. Carlos Bessa identifica e reconhece os aspectos mais significativos que, na criação poética de Urbano Bettencourt, simultaneamente o aproximam de um imaginário comum a muitos dos seus contemporâneos e o afastam, constituindo-se como voz própria, tanto no ritmo, cadência e tom que imprime aos seus textos poéticos, como no que exprime das e nas circunstâncias a partir das quais a poesia aparece. E que são todas as circunstâncias, cabendo nelas as que, no poema, é o seu fazer – a arte poética.

O título, Com Navalhas e Navios, é a expressão adaptada de um verso do poema «Pastagem com homens dentro» e que, conforme esclarece o poeta em entrevista ao Diário dos Açores (14-09-2019), «pode passar como glosa, um pouco bruta e cruel, ao mais célebre poema de Pedro da Silveira».

Uma transumância da palavra, uma pastorícia do sentido na incessante procura dele. Um «inventário de reciprocidades», como nos diz Javier Fernandez no prólogo à edição espanhola, canarinha, deste Com Navalhas e Navios.

«Os pastores são os depositários plenos dos planos de viagem,
adormecem a dor medem amarrados à estaca entre a erva
e o esterco. (…)
Com navalhas por dentro e navios nos olhos eles assinam
assim o ponto no dorso da ilha e cavalgam as aves as nuvens
com elas fogem para oeste à frente da fome e do frio (…)»

(Pág. 30)

Também o poeta quer pôr ao seu cuidado a linguagem e o que nela é sempre o oeste de onde se está, de onde se fala. Na diligência que empresta ao ofício das palavras, na advertência e desvelo com que toma as palavras a sério, encontramos a inquietação do subverso, a ameaça do adverso. Por isso a poesia, o poema, não é, em Urbano Bettencourt, uma forma entre outras de dizer o mundo. É o mundo que se dá em aliterações, de sílabas, de sons e de sentidos, que no próprio acto de ecoarem se desdobram, produzindo o diverso no mesmo que nos persegue – a infância, a ilha e as ilhas, a guerra, a saudade, alguns nomes circunstansiados, Gaspar Frutuoso, Pedro da Silveira, Roberto Mesquita, Ivone Chinita, Santos Barros, a vida, a morte, o que se queira do que a poesia é feita:

«Fazer versos dói? Não! (…)
O que dói é arrancá-los
assim ao próprio sangue como se um filho fora, erguê-los
à boca, dar-lhes um nome e nisso inscrever
a nossa morte. A nossa vida.»

(Pág. 79)

Assinala Carlos Bessa, no Prefácio, que a obra poética de Urbano Bettencourt atravessa – e é atravessada –, por geografias e circunstâncias várias em que a luz e a sombra, a alegria e a dor, a exaltação e o desencanto, eros e thanatos, afluem ao dizer poético, para nele se transfigurarem em modo de redenção, de ascese, como ilha que, sem nunca se deslargar do seu fundo, do seu chão, quer continuar elevando-se como corpo insulado e insuflado – por forças vulcânicas, já se sabe –, numa cadência de aliterações e metonímias – nos versos e na vida.

Uma poesia, diz Lélia Nunes, de regressos e reencontros. Neste sentido, o poema é um exercício de celebração, mas também de redenção. Quer se trate de momentos, circunstâncias que o simples facto de existir inevitavelmente comportam, de geografias que o verso quer dizer como se elas apenas o fossem pelo seu dizer, sentimentos que, ao permanecerem, viram afectos, rememorações de tempos sofridos na primeira pessoa, como os da guerra na Guiné, ou mesmo os que não são estritamente nossos, como acontece no poema sobre a Urzelina de 1808, a poesia de Urbano Bettencourt dá a ver o que já não nos olha.

O que há de autobiográfico na escrita? Com o quê ou com quem se identifica o autor? Com os advérbios, dizia Umberto Eco. O desconcerto desta resposta reforça a constatação de que, nos advérbios, quaisquer que eles sejam, há sempre um tempo, o do autor, o das personagens e o do leitor também, a partir do qual se procura encontrar um sentido para tudo o que cabe numa vida, a vivida, a pensada e a dita. O que há de autobiográfico na escrita – na escrita poética –, de Urbano Bettencourt? Tudo. E, acima deste tudo, a sua escrita. Existe mundo para além do que se escreve? É claro que sim, na condição de que se possa dizê-lo. O silêncio e a sombra não são os limites com os quais a palavra poética se confronta, mas é desse confronto que o dizer poético retira o seu impulso, a urgência do dizer, ou, como se pode ler num poema do livro Lugares Sombras e Afectos, cujo incipit é «Crescem os deuses»:

«E quando a memória queimar de mais, chamarei
a mim a sombra das figueiras bravas. Sem figos,
como nos rebenta a boca? Olho as ruínas,
os escombros da cal e acolho um pássaro
de melancolia
vindo da névoa e de um ardido Setembro.»

(Pág. 105)

Para o leitor que se auto-satisfaz em o ser, e que, do ponto de vista do autor, é o máximo que, intencionalmente, o move, os poemas, como é o caso presente, não são apenas fulgurações projectadas ao e no mundo, a solicitarem derivas interpretativas, diferâncias di-versificadas, quantas as leituras que se fazem dos leitores que o livro encontra. São, também, realidades que no seu dizer enunciam a própria condição de possibilidade do que enunciam. Não é deste ou daquele lugar que se fala, não é a partir desta ou daquela geo-grafia que o poema se desenvolve, encandeando (ou não) o olhar do leitor. É com os lugares, reais ou imaginários, que os poemas de Urbano Bettencourt instauram um diálogo, um ajuste de contas, como que edificando um mundo da escrita e uma escrita do mundo. Neste sentido, o poema vale por si mesmo, tem uma vida própria.

A paisagem como espaço, como lugar ou lugares com gente dentro. Uma estética da territorialidade, diria Vamberto Freitas. Espaço, ilha, Urzelina, Angra, Porto, Canárias, ilha, Mafra, Guiné, Cabo Verde, Ponta Delgada, ilha, Lisboa, Piedade, Pico, La Gomera, ilha, lugares nos quais e pelos quais a pulsão poética se entretece a fazer e a desfazer memórias, a fiar e a desfiar sentimentos e emoções, a compor e a descompor imaginários que, pela própria natureza das palavras, são sempre outra coisa, eco, espelho, labirinto, da qual o verso limpo, essencial, de uma delicadeza magoada, procura dar conta, enunciar o seu exacto dizer.

Vitor Rui Dores, em texto sobre o livro Outros Nomes, Outras Guerra, uma antologia de poemas publicada em 2015, identifica, justamente, na produção poética e ensaística de Urbano Bettencourt, a íntima ligação entre a vida e a escrita, e em que o poeta, [cito], «decifra o enigma dos dias e viaja da ilha para o mundo, funcionando a ilha como uma alegoria ou uma metáfora do mundo».

Assis Brasil, num ensaio sobre outra colectânea de Urbano Bettencourt, Que Paisagem Apagarás, de 2010, traça o itinerário do espaço, uma topologia, um programa de leitura dos espaços poéticos no percurso criativo do poeta. Suportando-se na topo-análise proposta por Gaston Bachelard no livro A Poética do espaço, Assis Brasil destaca, muito justamente, a natureza do espaço poético como a condensação imagética de objectos, lugares, situações, pessoas, que, na matéria das palavras em si mesmas, se tornam outra coisa, realidades com vida própria e, até certo ponto, independentes daquilo de que elas são o dizer. É a natureza das palavras. Ao permitir-nos falar do que não está sob os nossos olhos, do que já não está ou ainda não está, a palavra poética consome-se na actualização do que nunca está presente ao nosso olhar.

É, aliás, da consciência desta impossibilidade, deste desligamento, desta ausência, desta distância, que o olhar poético de Urbano Bettencourt se institui e constitui como símile da condição humana. O poema é, aqui, um exercício de restituição que, incessantemente, se faz e refaz a partir da consciência daquela impossibilidade. Veja-se, por exemplo, o poema inserto no livro Naufrágios Inscrições, de 1987, cujo incipit pergunta como afrontar a erosão do gesto:

«Como afrontar a erosão do gesto? Algumas
das palavras flutuam depois de mortas mas o verbo
as dissipa, lhes disseca a emoção de breves corpos sobre
a margem. Entretanto simularás aqui a construção da frase
língua a língua enunciada, o rumor do verbo no ventre
das baías.»

(Pág. 63)

Por isso, a ironia e o humor ocupam um lugar e função importantes na poesia de Urbano Bettencourt. É que elas lembram, permanentemente, ao leitor que o verso, no regresso sem fim a si mesmo, nunca se reencontrará no lugar de onde partiu. Só por facilidade é que se diz que numa ilha, independentemente do seu recorte, acaba-se sempre por regressar ao lugar de partida.

O reverso, como a sombra, não é o negativo que se quer anular, mas sim realidade que o poema integra, fazendo dela matéria do seu dizer e desdizer. Pela ironia e pelo humor, o «pássaro da melancolia» não nos permite nunca pausarmos em definitivo em contentamentos celebratórios do que na vida acontece – a estritamente nossa ou a que fazemos com os outros. A guerra, os desencantos e as perdas, que na poesia de Urbano Bettencourt são presenças indeléveis, não autorizam lirismos versificados ou rimas encantatórias, metrificadas como deve ser, auto-satisfeitas na exibição da técnica, na ostentação da competência linguística ou na eufórica amostração do que, na literatura e na cultura, é enleio do que é «nosso». É, vejam mal, «apenas nosso». A ironia ou é disfórica ou não é. E Ernesto Gregório, que apesar de não estar, explicitamente, em Com Navalhas e Navios, sempre aparece no verso que desencaminha do sentido aparente ou na subversiva mestria com que o poeta sabe «fechar» um poema.

É avisado o parágrafo em que Carlos Alberto Machado, em texto de apresentação de Que Paisagem Apagarás, nos alerta para o facto de que, no mundo das ilhas de Urbano Bettencourt, os vulcões, magmas, nuvens, neblinas, baleias e baleeiros não são adornos, ornamentos ou enfeites em que o verso funcionaria ao modo de legenda para bilhete-postal, ou segundo a moda dos facebooks, de que o paraíso é aqui e viver é belo porque é o contrário de estar morto.

Uma antologia é um exercício de recolha e de escolha. Junta-se e ordena-se um conjunto de coisas – tanto as que, na natureza, constituem o mundo, como as que, na cultura, constituem os projectos humanos, colectivos e individuais.Com Navalhas e Navios é uma antologia de poemas, melhor, de livros de poemas, dos quais o autor recolheu alguns que, levando à letra a letra da palavra crestomatia, procura organizar e comunicar o que há de exemplar e de significativo num saber ou num saber fazer.

Com esta colectânea, fica acessível ao leitor um percurso poético de 50 anos em que, ao virar da página, se dá a ver a poesia como um [cito]

«Regresso dos nomes e lugares
destes versos. Não direi, porém,
a exacta dimensão em que me tenha perdido
ou encontrado.
Pouso no peitoril a túnica
das palavras, o secreto sal dos seus caminhos,
e escuto
a lenta respiração
do mundo

(Pág 106)

♦♦♦

 

Ponta Delgada, Set. 2019

Nota: texto da apresentação pública do livro na Livraria Solmar, Ponta Delgada

Com Navalhas e Navios
Urbano Bettencourt
Companhia das Letras

Fernando Martinho Guimarães (1960) Nascido transmontano (Alijó, Vila Real), foi na cidade do Porto que viveu até aos princípios dos anos 80. De formação filosófi­ca e literária, a sua produção ensaística e poética reflecte essa duplicidade. Com colaboração dispersa, no Letras & Letras (Porto), revista Vértice e Parnasur (Revista literária galaico-portuguesa), no Suplemento Açoriano de Cultura do Correio dos Açores, passando pelo jornal Horizonte (Cidade da Praia, Cabo Verde), tem dedicado a sua actividade ensaística à poesia portuguesa e galega. De entre os portugue­ses é de destacar a poesia de António Ramos Rosa que foi tema da tese de Mestrado em Literatura e Cultura Portuguesa Contemporânea. Da poesia galega, a sua ensaística tem incidi­do sobre a poesia de Luisa Villalta (I Jornadas de Letras Gale­gas de Lisboa, 1998) e a de Manuel António (Colóquio Escritas do Rio Atlântico, Funchal, 2001).

Publicou em 1996 A Invenção da Morte (ensaio), em 2000 56 Poemas, em 2003 Ilhas Suspensas (edição bilingue, cas­telhano/português), em 2005 Apenas um Tédio que a doer não chega e em 2008 Crónicas.