MAIS TRÊS TEMPOS POÉTICOS – por Henrique Miguel Carvalho

COMÉDIA
e tudo ser
……………uma piada
 para quê?
…………..se apenas
para provar
…………..a sobranceria
…………..ao mundo

assim
……………ocultando,
mãos
…………..sobre a face,
o quão acima,
…………..quão alto
…………..à visão

da circunferência,
…………..se pensa ser,
e enganando,
…………..fútil
engraçado,
………….o próprio engano
………….enganador

que engana,
…………..num estúpido
movimento
…………..de lábios
…………..curvos para cima

 gáudio
…………..ou sofro,
o choro
…………..é a verdade
………….travessa

ao corpo,
…………..e a lembrança,
na carne,
…………..das águas
…………..da Criação

 mas o riso,
…………..demência
frívola,
…………..é Caos
…………..premeditado

ou a diminuição
…………..ontológica
de tudo,
………….. por ocultação
…………..imparcial

de um medo,
…………..de cuja sorte
só Deus
…………..é o imperturbável
…………..detentor

  • candidez
    …………..alva,
    chorar
    não ilude
    …………..ou trai apenas
    …………..confessa

apenas
…………..diz   eis-te,
sem palavras
…………..que vasculhem
…………..o sentido

quando rir,
…………..prazer banal,
troça
…………..ou faz-pouco,
movendo-se
…………..inveja, irmão
…………..da jovem

crueldade,
…………..como pranto
dito
ao contrário,
…………..por súbita
…………..repressão facial

 pois demora-se
…………..o riso?
na beleza
…………..de uma só face,
…………..ou apenas

a medindo
…………..por ostentação
e vaidade,
…………..para depois
…………..lhe esborratar

a pintura –
…………..eis o segredo
de qualquer
palhaço,
…………..e o porquê
…………..da sua máscara

e não
…………..louvar a bravura,
o enfrentar
…………..elegante
do touro,
…………..sem cobrar
…………..bilhetes

à entrada
…………..para assistir
ao espectáculo
…………..final,
despindo
…………..o vulto
…………..à razão

♣♣♣

PONTUAÇÃO

súbito,
…………..a interrogação,
o puro “?” original,
deflagrando,
…………..no  silêncio branco
…………..da inocência

 na alma,
…………..iverbal
e avocálico,
…………..apenas
…………..piscar-de-olhos

mas
…………..a pergunta
consome-se,
…………..irreparável
…………..resposta, exclamação

o cáustico “!”,
…………..que aparece,
tentando
o desejo,
…………..no beijo final
…………..de tudo dito, “.”

♣♣♣

ALTAR

desprende-te,
…………..não és mais importante
que o vulto
…………..naquela estrada,
ou que o seixo
…………..deixado na curva
…………..da praia

à espera
…………..da maré
de cada dia,
…………..mas és liberdade
maior,
…………..imerso da tristeza
…………..ou alegria

fluxo
…………..em tensão
temporal,
…………..sem regra
…………..ou táctil dimensão

começado
…………..quando
não há ainda princípio,
e terminado
…………..de golpe
…………..e espada na mão

 és o limite
…………..antecessor,
criança
que vagueara órfã
…………..pelas alas
…………..do paraíso

e que inclina
…………..o nome
de Deus, riso,
…………..e brinca com ele
…………..à apanhada

sem outro
…………..motivo
…………..ou direcção,
que não o erguer
…………..periódico
…………..da matéria

 imperturba-te
…………..soberbo,
desaprendendo
…………..o significado
…………..do medo

alto e altivo
…………..como a onda,
cuja radial
…………..e tubular beleza
é alcançada
…………..por um efeito
…………..de espuma e dispersão

que desloca
…………..e rompe
a curvatura
…………..prometida
…………..da terra

e detém-te
…………..atento,
corpo
aliviando
…………..o incómodo
…………..do tempo

tecido
…………..amarrotado
que anuncia
…………..a certeza simples
.………….das estrelas

o fogo
…………..extraordinário,
que informa
…………..o frenesi lúdico
…………..do átomo

 e se, ao ver
…………..aquelas
…………..pessoas ali,
tuas iguais
…………..e irmãs
…………..caminhando pedras

de suprema
…………..lentidão,
para quem
…………..qualquer será
…………..será ficção

é porque,
…………..congéneres
em arco
…………..e acção,
com elas abres
os braços
…………..e com elas
…………..fechas as mãos

numa estrutura
…………..de equilíbrio
…………..horizontal,
de um relógio
…………..à espera
…………..do momento

pois
…………..não és mais importante
que o vulto
…………..naquela estrada,
ou que o seixo
…………..deixado na curva
…………..da praia

à espera
…………..da maré
de cada dia,
…………..mas és liberdade
maior,
…………..imerso da tristeza
…………..ou alegria

♦♦♦

Henrique Miguel Carvalho nasce em 1970, em Lisboa. Os seus interesses, vida curiosa, vão da literatura à filosofia, passando pela ciência e pela matemática. Acha que a poesia, para ser levada a sério, actividade livre, não deve sê-lo. Gosta de fazer longas caminhadas pelo campo, onde vai à procura de inspiração. 
henrique_mm_carvalho@yahoo.com