Não fosse a sua constante ausência a principal lembrança que eu tenho do meu pai na minha infância, eu poderia dizer que minhas maiores recordações são dele deitado sobre um banco de madeira entalhada no fundo de nossa sala de estar. Se eu estivesse entrando em casa, ou cruzando a copa em direção à cozinha, ou mesmo passando ali pelo hall onde uma reprodução barata da Monalisa nos contemplava da parede, eu o via. Na sala, com todas as luzes acesas, a janela escancarada, sem camisa, segurando o controle remoto em uma das mãos e mudando de canal freneticamente.
Com a outra mão, muito provavelmente, ele estaria cutucando o nariz.
Às vezes ele me chamava.
Então eu ia ao seu encontro e assim que chegava perto ele me pedia um soco.
Ele continuava deitado, tudo exatamente no mesmo lugar, e pedia que eu lhe socasse o peito com força. Embora eu tentasse, nunca o fazia com a intensidade que ele desejava. Ele parecia estar querendo, de alguma maneira, se certificar de que eu era forte o suficiente. Ele poderia me falar sobre valores éticos, bom modos e idoneidade, podia me ensinar todo tipo de coisa. Mas ele parecia querer apenas que eu desse um soco com força.
Mais velho, penso que ele não estava, no final das contas, querendo me ensinar a lutar. O que ele queria, de fato, era garantir que eu fosse homem —e homens, para homens como o meu pai, tinham que saber dar socos fortes.
Nas raríssimas vezes em que me dirigia à ele por iniciativa própria, a frase que eu mais ouvia como resposta era uma ordem: “fala que nem homem!”. Eu nunca soube de fato o que ele queria dizer com isso, mas sempre soube, com toda certeza, que eu não queria falar como ele.
O móvel onde meu pai passava horas deitado enquanto não estava em um bar de esquina na vizinhança de casa era um banco antigo, do tipo canapé, com encosto e braços altos, rolinhos de almofada nas laterais e estofado florido. Aquela peça parecia estar ali para nos lembrar de um ar elegante que algum dia pairou sobre a nossa casa.
Boa parte das coisas ali estavam tortas, quebradas, velhas ou simplesmente fora de lugar. Para que pudesse ficar deitado de frente para a televisão, meu pai entortava um pouco o canapé na diagonal, reforçando ainda mais o aspecto desorganizado do nosso mundo. E então passava horas ali, se levantando vez ou outra para fazer barulho e sujeira (e um pouco de comida) na cozinha. Ou para fumar em pé na janela gigante que ocupava quase uma parede inteira da sala, ou para escarrar em todos os lugares impróprios possíveis.
Eu adoraria colecionar recordações de momentos felizes onde eu estivesse sentado sobre o nosso chão de taco, brincando com meu pai de qualquer coisa ou assistindo juntos à televisão. Se eu me esforçar, chego à uma vaga lembrança dele me apontando as “tetas” das mulheres que se despiam no programa Cocktail, do Luís Miele, exibido pelo SBT em um horário em que crianças do meu tamanho já deveriam estar dormindo.
Em outro momento, anos mais tarde, lembro do meu pai excepcionalmente dentro do meu quarto, diante de uma estante de arame preto onde eu arrumava livros, revistas e brinquedos. Ali estava um de meus objetos favoritos, a réplica de um carro de Fórmula 1 da equipe Benetton, dirigido pelo Michael Schumacher, meu piloto preferido de então.
Sentado ao meu lado na cama, fumando dentro do meu quarto limpo, meu pai tinha o olhar parado quando pegou o carrinho na estante. E antes que desse tempo de eu pensar sobre o que ele diria ou faria com aquilo (me contaria de quando o comprou para mim na Europa? Falaria de recordações que fossem capazes de nos conectar por ao menos um minuto?), ele apenas bateu as cinzas de seu cigarro. Aquela pequena abertura bem no meio da minha Benetton lhe pareceu um cinzeiro bastante apropriado.
Ainda me parece improvável colocar as mãos naquele carro sem sentir, em algum lugar bem fundo na minha mente, o cheiro das cinzas.
Bem antes desse episódio, porém, guardei na memória a minha lembrança mais antiga. Aquela recordação que seria a minha resposta para alguém que me perguntasse qual é a minha primeira lembrança da vida.
É uma recordação genuinamente feliz, que vem de uma cena simples e ordinária. Era a Copa do Mundo do México, junho de 1986, e nós (meus pais, minhas irmãs e eu) assistíamos à algum jogo do Brasil em nossa TV na sala. Uma TV que ficava sobre uma arca de madeira, bem ao lado do banco onde meu pai se deitava.
Do outro lado da arca tinha um aparelho de som daqueles três em um, que tocava LP, fita k7 e rádio. Ele ficava sobre um pequeno armário onde eram guardados os vinis. No chão, havia duas caixas de som, uma em cada lateral do aparelho.
Se eu fechar os olhos agora, vou me transportar para um momento onde estou diante de uma embalagem de vinil preta, com a imagem de uma bola de futebol espetada pelo mastro de uma bandeira do Brasil, como se estivesse marcando território. Era um disco vendido pela Rede Globo para ser a trilha sonora oficial daquela Copa. Em casa, era um sucesso.
A primeira música, cuja letra eu ainda lembro em detalhes, era “Mexe Coração”. “Tanta emoção vai ser difícil segurar”, dizia. Falava de um “povo guerreiro, mensageiro da esperança”.
Minha mãe deixava o disco rodando em looping durante todo o jogo, sem volume algum. Mas a cada gol, ou mesmo a cada indício de gol ou aproximação do time brasileiro na área adversária, meu pai ou minha mãe iam até o aparelho e giravam ao máximo o botão circular que controlava o volume, elevando o som às alturas.
Era o êxtase.
Era a melhor tradução de alegria.
Eu queria que aquilo durasse para sempre.
Uma casa feliz, com gente gritando e torcendo e cantando junto. Até hoje, quase 40 anos depois, eu sou incapaz de me recordar desse momento sem deixar escapar um sorriso de felicidade. Também não me lembro de ter torcido tanto por um gol ou vitória do Brasil como naquela Copa de 86, pois isso era sinal de que alguém aumentaria o volume do som em casa e deixaria extravasar a alegria.
Não chega a ser engraçado, mas é curioso que dali em diante eu não tenha guardado uma recordação feliz de nossa vida em família que tenha me marcado tanto quanto essa. Havia naquela dinâmica de parar tudo para assistir à um jogo de futebol na TV, sob gritos de ansiedade da minha mãe, com música alta e alegre, um isolamento completo de tudo o que podia me assustar.
Ali, nos limites impostos por aquelas paredes de tijolos à vista, sob música alta, talvez eu tenha me sentido acolhido pela minha família pela primeira vez.
E última.
Porque é a imagem do meu pai no fundo da sala, sem camisa, deitado sobre aquele banco nada aconchegante, disposto de maneira torta para que ele pudesse enxergar a TV, com sua barriga branca e peluda escapando sobre uma bermuda qualquer, a lembrança mais vívida que tenho dele na minha infância. Uma imagem que eu ainda enxergo como que pintada em óleo sobre tela, uma representação impecável de um quadro sobre distanciamento e indiferença.
É uma imagem que me assusta e intimida.
Por mais inofensivo e bem-humorado e divertido que o meu pai parecesse para o mundo, ali ele vivia à espreita. Ao menos era assim que eu o via. A mim, só restava torcer para que ele não me visse passar e não me chamasse para testar a força do meu soco. Ou para pedir que eu falasse que nem homem.
Tudo o que eu sentia ali era desafeição, mas o principal dos sentimentos era um temor gigante de que o meu pai fosse cruel.
De que o mundo fosse impiedoso comigo.
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