VIDROS
Há vozes. Ao fundo do corredor surgem linhas humanas. E o cambalear é interrompido. Descalço as botas e as meias estão gastas. Onde andaste. Pergunta imaginária. Respondo em silêncio à não-pergunta. Mas ninguém. É tudo cá dentro. Viroses assaltam os armários. Farpas encefálicas aparecem a meio da noite. Tento lavar o terraço mas nascem ervas incógnitas. E os envelopes recebidos exigem lentes felinas. Tudo é decifrado à base do cifrão.
Pobres das palavras que desaparecem diria o do 24. Os pobres não as escondem. Agora há teclados e superfícies deslizantes. Material moderno para infetar as mentes. Há muito que estou ultrapassado apontam os entendidos. Procuro engendrar a auto-exclusão. Portanto brindemos ao simples. Ao que ainda não se deixou esventrar. Honra aos seres que sabem acariciar. Que deixam assim, sem estragar. O mesmo se faça com o que chamam natureza já que os figurantes se acham fora dela. E com este uivo sinto-me tão feliz por sermos dois animais.
CAIXEIRO
Os livros amontoam-se no quarto. Irei com duas malas para o meio de velharias. Bom material. Vou acordar exemplares adormecidos há muito. Um dia não haverá espaço na hospedaria para as resmas. Belos objetos que acompanharam histórias e devaneios. Deixá-los falar a outros. Na instituição usam-se cada vez menos. Ainda se vê quem os acarinhe e há quem escreva. Aos mais estranhos foram boa companhia os livros. Durante anos procurei-os desalmadamente. Agora começo a despedir-me. Que se vão e façam um bom caminho. Ajudem ao desvelamento. À denuncia. Ao fazer. Encantem a vida de outros. Na hospedaria há música de combate. Mas preciso de sair. Comprar legumes e especiarias. Depois cozinharei a tua refeição. O sol está a virar-se para outras paragens. Deixando um laranja melancólico. Belas as nossas fotos no grande rio do norte. Ficas muito bem de cueca vermelha e chapéu negro. O teu olhar merece que traga outra garrafa.
SUBLINHADOS
Acordei com larvas nos miolos. Tonturas e bofetadas invisíveis. Tremura nos pés e breve cegueira. Não é de estranhar. Zonas mentais saturadas de misturas improváveis. Fios de pensamento num emaranhado indecifrável. Um paciente diminuído. Feito o retrato. Um prato de massa. Quando zarpei da instituição estive longe. Andei perdido em terra montanhosa. Habitei um quarto numa antiga residencial. Em baixo havia um restaurante com bar. Mais abaixo uma cave para boémios. Descia para comer. Bem mais para beber. Estavam sempre a encher-me o copo. Ordens do patrão. Bom contador de histórias. E de notas. Em tempos vivi no sul. Tive aí um objetivo de vida. Passar de quarto alugado para pensão. Nunca viria a acontecer. Mas por estes dias a minha morada era uma pensão desativada. E sempre que descia para o antro frequentado por bebedores o patrão chamava-me o pensionário. Um copo para o pensionário. Talvez menos um pensador do que um presidiário. Visto que hoje os pensadores necessitam de apropriadas condições de produção. O que não encontrariam nos meus aposentos. Contudo eu tentava pensar. Embora um perfume alcoólico turvasse a coerência da atividade. Pensionário soava bem. O patrão dava-lhe uma entoação cantada, à malandro. E eu encaixava no som e no significado. Foi assim que junto às grandes montanhas regressei ao sul. No sul comecei a deixar-te textos no escritório. Tiveram início os períodos de isolamento. Danças escritas. Erupções dementes. Um exercício de entrega. Muito longe do sul regresso a ti.
Passei pela instituição mas não entrei. Havia muito ruído. Ficaria mais doente se me deixasse estar por ali. Caminhei durante horas. Quase noite entrei num botequim onde se ouvia música do deserto. Quando terminava o segundo copo vejo o do 24 a sentar-se ao canto. Levanta os olhos e vê-me. Levanto o copo. Vem e senta-se a meu lado. Não me cumprimenta. Pede dois copos. Silêncio. Bebe devagar. Passados alguns minutos vira-se e olha-me nos olhos. É muito estranho o que tem feito ultimamente diz. É. Digo ou pergunto sem eu mesmo saber. Conhece a escuridão de escadas em espiral pergunta. Penso que sei tactear. Estou habituado à luz da noite. Respondo. Cuidado para não tropeçar nos pés. Diz com desprendimento. Um dia beberemos ao que hoje não sabemos. Continuamos a beber em silêncio. Costuma vir aqui com frequência. Pergunto. Sempre que acabo um livro responde. Pede mais dois. Bebe de golada e aperta-me a mão olhando-me do modo mais frontal que um homem pode fazer. Não diz nada e sai.
SUSPENSÓRIOS
Nada é só o que se vê. Há um cubismo psíquico em voo. Pinta os olhos às meninas. Penteia os cavalheiros. Eu não fujo. Procuro inventar boas perguntas. Lembrei-me disto quando um cão se virou para trás a olhar a estátua. E ninguém me disse que a vida era fácil. Por vezes ficava a ler. Deram-me uma gaveta com memórias. As ajudas remendaram as botas. Ainda deitei fogo a um carro. Também me deixaram ferramentas boas para quem se perde em cidades distantes. O mentiroso lá do sítio compreende isto. Não por lhe pagar brancos e tintos. Só que fala demais após a meia noite. Deve-se evitar a falácia fácil. As luzes do salão estão fracas. Foi por isso que mandei fazer um fato novo. O que não garante o estreitamento de laços. Em certos momentos conseguia encontrar um tom mais meigo. Mas os ferros humanos impedem riso frequente. Também conheci quem risse pouco. E tinha sorte em encontrar lugares vagos. A verdade é que depois de anos de introspeção resolvi continuar. Poucos sabem para onde. As errâncias de pensar traziam-me afastamentos de ser. Pedi na instituição comprimidos para o efeito. Deram-me mais roupa para os arrepios. Foi assim que resolvi sair pela janela e apanhar um comboio. Curiosamente encontrei-te na viagem. Levavas um quadro desembrulhado. Maquilhaste-te em plena carruagem. Usavas as botas em tons de azul. Leste Cossery durante meia hora. Falaste ao telefone com o do 24. A propósito de um bilhete que ele te tinha levado uns dias antes. Soube que ias para Marselha. Por causa de um trabalho sobre Lapa. Depois adormeci. Mas tu não me viste.
IR
Há que franzir o sobrolho e ler a panorâmica. Isto não é celestial. Embora haja aviões em barda para levar gente às franjas do paraíso. Dizia o do 24, que deixei a falar sozinho com uma chávena de café. Eram sete e quarenta e eu tinha um assunto. Coisas inadiáveis. Testar neurónios. Desafiar lógicas. Inventariar ligações entre movimentos tectónicos e evidências. Tudo em prol de uma terapêutica cognitiva. E fui-me embora não querendo, como tem acontecido algumas vezes. Ir e não querer. Percebi que não vale a pena. É verdade que há muito me desabituei de festas. Mas gosto de ver gatos e andar por ali como eles. Sem ter que estabelecer cálculos. Nesse dia encontrei um preto ao balcão de uma petisqueira. Um balcão em forma de ferradura. Ele usava uma boina vermelha. Disse-me que ia para o Canadá. Então decidi. Ele tinha razão. Devemos fazer cortes epistemológicos. Quer dizer espreitar para outro lado. Comemos um prato de ovas com pão escuro. Ele cerveja eu tinto. Ao sair desejei-lhe boas vadiagens. Depois fui para a hospedaria ler o regulamento das evaporações.
FURTO
Na instituição pratica-se o roubo do passado. Diretrizes de camisa engomada. Não há surpresa. Os donos de cargos devem decidir. E o óbvio é impor a usurpança. Operações divinas ao serviço da bolsa. Os senhores zelam pelo bem comum. E um homem sem passado fica mais leve. O melhor é tomar medicação em dobro e voar para os teus braços. Passar no tasco da esquina e emborcar dois brandes. Ver-te chegar refresca-me as veias. O coração fica uma caixa de música e os ossos ganham dignidade. Vou ligar o rádio da cozinha. Acender o candeeiro e tirar copos novos. Para que sintas o tempo. Que ninguém pode roubar.
TAPUMES
Tenho sentido a vida entaipada. Uma serigrafia muda envenena e enche de miopia os desígnios que vislumbro. Sortilégios febris ensanguentam o devaneio. Nada de trágico. Eu estive sempre nas cadeiras de trás. E nunca fui aplicado no enfileiramento. De qualquer modo gostava de experiências. Tinha o hábito de apanhar o comboio. E consegui muitas vezes sentir o outro. Ver para lá do mostrado. Mas nada disto interessa agora. Na instituição continua o vício opressor que se alimenta de corpos que se arrastam. Definham. Não viventes em sacrifício. Ofuscados em busca de um logro enterram-se no lodo os condenados. E o do 24 anda sozinho. Nunca diz ao outro o que fazer, mas para encontrar a sua saída. É o seu modo. Vivendo desvendando. Levo dele esse olhar.
De volta à hospedaria encontrei estantes de madeira na cozinha. As tuas mãos desenhando no real. Fotografias na parede de corpos animalescos banhando-se. Outras imagens junto à jangada com algas na face. Foi no dia em que tiveste pedras redondas por todo o corpo. Sinto os teus beijos ao nascer do dia. Depois limpo os cinzeiros. E os lenços de papel que ficam por aí como lírios brancos. E sinto-me tão grato por voltares. Pelos dias. Por esta música e pelo vinho.
JARRA
Ia comprar uma bomba de encher pneus quando me cruzei com a mosca de Alfred Jarry. Já não fui. Sentei-me no jardim a ver o jogo do putedo. Digno uso das astúcias humanas. E a palavra é som limpo. Nada de beatitude fonética. David Thomas pensaria próximo. Penso. Imagino que também se terá deparado com a mosca. Entretanto a patafísica chegou ao balcão. Mas isso foi quando os homens ainda enlouqueciam. Entretanto saí da instituição a meio de uma sessão “para a frugalidade do pensamento”. E esqueci-me do chapéu junto das barbas de Bakunine. Fez-me falta pois o vento atacou-me o ouvido direito e tive de entrar na tasca mais próxima. Ouvia-se o som de moscas e o silêncio de dois homens que me olharam sem o interromper. Só a taberneira perguntou o que vai ser. Tinto. Bebi ao balcão sem oferecer sem brindar e sem levantar os olhos. Bebi tão só. Como um desterrado. Estava com uma história na cabeça e nunca qualquer humano iria conhecê-la. Jamais teria palavras para a traduzir. Não conseguiria. Irá desaparecer para sempre. Regressei à instituição e havia servas a limpar espaços. Gente cansada a vida toda. Fui buscar medicação e um envelope com aforismos deixado pelo diretor. Visam a minha permanência. Devo estudar. Suponho que o do 24 falou com o diretor. Querem que fique. Outro doente seguirá caminho. Aqui vigiam-me as nódoas occipitais há anos. Também sou uma pessoa asseada. Não aparento sujidade nos índices axiológicos apesar da criminal tendência estética. Mas eles desconhecem o negrume. Era isto que me ocupava naquela tarde. Só cheguei à hospedaria à hora de jantar. Tinhas alho francês e lâminas de carne sobre feijão branco. E as tuas palavras fizeram a arte de voar à mesa.
COBERTOR
Não saí da hospedaria. Manhã sem música com vento forte. Café na cama. O rádio não encontra sintonia. Envelheceu. E o dia foi rápido. Já anoitece em azul cinzento. Névoa para as bandas do mar. Ouvimos a tempestade em música demente. Chega furiosa. As paredes aguentam uma chuva desvairada enquanto tratas das vestes na oficina. Na cozinha a fotografia dos nossos corpos nus sobre rochas quentes. Lá fora um impiedoso festim de forças e sons. Agora a melancolia pede fogo. O fogo da infância ou dos antepassados dos bosques. Ouvir o seu som com o das águas ventosas. Rajadas e estalos. Neste covil aquecemos a pele. Queijo e vinho do norte. Mantas nas brechas e candeeiros a encantar os olhos. Um tempo quase quieto. Enquanto o vendaval escreve poesia endiabrada. Doce a fêmea na casa com suas mãos de pintar. Usando ferramentas forrando armários. É noite cerrada e as janelas estão negras. Atravesso o corredor sombrio para te beijar.
♦♦♦
Lúcio Valium – Um ser em desvio, sem lugar! Um homem vivo, em desordem! Um forasteiro que nos caminhos encontrou palavras e perdeu moradas!
You must be logged in to post a comment.