UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (5) – por Lúcio Valium

COMPASSOS

Somos os dois irmã. Passos lentos nos dias roubados em terra de além Tejo.

Tapas ao cair do escaldante sol. Nas bandas do azul sorvem nossas narinas ávidas. Há vidas, logo embelezem-se. Os olhos com planícies sem fim. Queijo muito fino. Aterrar lentamente. Uma folha na brisa. Nada de utopias nem psicanálise. Esquecidos exames institucionais e ignoradas recomendações. Só apalpar o instante. Inspirar as manhãs e seguir de mansinho. Sem pressa. Em trilhos vazios. Onde árvores antigas repousam. Foram arrumadas ali pequenas casas. E histórias de dor. Que a pintura oficial vai apagando. Com suas escrituras vampiras. Olhamos e sentimos a vida. O que ali sangrou. Continuar a ler “UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (5) – por Lúcio Valium”

UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (4) – por Lúcio Valium –

INVERNIAS

Enquanto corre o teu banho quente
as gaivotas fazem círculos demorados no azul
e ouve-se um saxofone desvairado.
Há pouco falavas da neve e de hospitais
desta luz invernal e de arroz.
Dei-te a manta
e compus as roupas da jangada.
Agora falas do cenário que avistamos da janela.
Um frágil amarelo a escorrer entre a
lã imensa de chumbo fumegante
que se eleva para lá dos telhados
por cima do mar.
Já quase noite
vestes o corpo de calças.
Na cozinha falas de aviões
e polémicas publicitárias.
E da tua cidade nas palavras da pobre jornalista
que serve a encenação enquanto
cortas o alho para a panela.
Depois vens ao corredor escuro
contar uma cena de estrangeiros no restaurante
por causa das línguas e dos lucros.
Os gestos e as atitudes.
E já tens os crepes de legumes prontos.
É hora de sair e dizes
que há pessoas que viajam ao passado
e continuas a falar sozinha na cozinha.
Perguntas se há hora marcada.
Ainda temos de ir comprar um salpicão
e vinho
Mas antes tens que secar o cabelo. Continuar a ler “UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (4) – por Lúcio Valium –”

UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (3) – por Lúcio Valium

 

Le Mirroir, by Pablo Picasso 1932

ANTONÍMIAS

Sair da cama após duras batalhas por bocados de sono. Azuis laranja nascem na escuridão enquanto olho o rio. Escrever-te na sala de máquinas de alta temperatura. Afastado de vozes e vacuidades. Reencontrar o doente do 24 e ignorar os figurantes da sala central. Algumas antonímias na jarra do dia.

Bem vistas as coisas uma delícia num rasgo cósmico. Assim me apresento à geometria demente da eternidade. Com o casaco insondável que me deste. E me é querido na sua compostura irreal. Com sublinhados de alfaiataria ébria. Diz-me o do 24 que estou a andar mais lentamente e com cadência melancólica. Coitado dele o mesmo lhe acontece. Mas tem ainda argúcia para detectar traços novos na história repetida dos homens. Saberá ler os olhos. Quem terá sido o que terá lido pergunto-me. Conhece certamente a poesia do não escrito. As palavras que nos olham por dentro. Encontros ao nascer do dia com o inesperado. O belo nas garras de uma fêmea. O único ocupante do quarto 24 é livre em seu pensamento de bebedor solitário.

Na verdade há uma lentidão nos passos. Mas apesar do feroz ataque da insónia a disposição é boa. Ler no espelho a tua escrita foi o melhor dos vinhos. Sempre gostei de palavras em vidro. De sensuais letras vermelhas. E vi o dia nascer na rua. Continuar a ler “UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (3) – por Lúcio Valium”

UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (2) – por Lúcio Valium

 

APARELHOS

Comi no meio de um ruído imenso. Tomei dois cafés. Procuro um lugar fora do mecanismo. No futuro será mais difícil de encontrar. Cada vez haverá menos lugares desses. Atravesso as compridas artérias institucionais e fecho-me numa sala para escrever. Não há música mas podem enviar-se escritos. É uma área de organismos tecnológicos. Uma visão da vida controlada nos nossos tempos. Fórmulas dados sintomas diagnósticos perfis são palavras que saltam destes aparelhos. Tudo em gráficos e grelhas. As vidas como gravações para consulta pragmática. Nada que lembre coreografias sexuais desmesuras sem palco ou o espanto de quem se perdeu nas cidades e nas vidas de outros. Continuar a ler “UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (2) – por Lúcio Valium”

UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (Série I)- por Lúcio Valium

Foto by Paulo Burnay

HORAS

Na instituição as horas são linhas. Férreas convenções temporais. De manhã não segui a norma. Permaneci na hospedaria. Cama jangada dignos trapos quentes. São a vida. A negação doce e animalesca das imposições. Chego tarde com orgulho. Entro na cápsula como um infiltrado e visto a pele de sereno figurante. Um paciente que não é fácil decifrar. Pouco para o exterior. Só as raras sessões de livre palavria medicante me interessam. De resto busco salas vazias. O desprezo pelo real fraudulento. Não respeito a engrenagem e escondo estratégias que a maquinaria não pode controlar. Sei que a directora é um coração bom. Mas não ia gostar se soubesse do afastamento a que voto as actividades gerais. Pouco importa. Gosto de algumas palavras dela. Mas dou-lhes outro uso. Sonho com o tempo que partilhamos na hospedaria. O nosso vinho na lareira é um festim sem necessidade de ornamentos. É a música primordial dos lábios. Fogo vinho nas cores dos olhos. Prazeres que bailam no labirinto dos corpos. Assim vivo o silêncio íntimo nestes pisos ruidosos. Retendo o suor da noite e a sonoridade da tua pele. Continuar a ler “UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (Série I)- por Lúcio Valium”

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