IN MEMORIAM PAULO LÚCIO / LÚCIO VALIUM – por Artur Manso

Paulo Lúcio / Lúcio Valium

A caminho da sexta década da existência temporal, o Paulo Lúcio fechou os olhos, cerrou os ouvidos, os pulmões deixaram de arfar e o coração parou de bater. A experiência chegou ao fim. Não sabemos de onde vimos, nem para onde vamos, mas a tremenda simplicidade do ser humano que se multiplica numa torrente de improbabilidades contínuas em um ambiente tão adverso é, para mim, um indicador que nesta dimensão, apenas passamos uma parte daquilo que realmente somos. Com a morte, ultrapassamos a estranheza deste lugar que nos acolhe sem sabermos porquê nem para quê!

Conheci o Paulo Lúcio há mais de trinta anos quando ambos frequentávamos a Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Começamos a ser amigos nas salas de cinema, e só depois nos cafés. Eu trabalhava e estudava para aumentar a cultura e o saber nas áreas que me cativavam; as humanidades e as artes.

Na altura ainda havia todos os anos uma dezena de produções cinematográficas que valia a pena ver, a que se acrescentavam diversas reposições. Pelos meus afazeres e para não as perder, tinha que aproveitar as matinés. Percorria por isso, a quase totalidade das salas de cinema nas tardes de um qualquer dia de semana e quando estava sentado à espera que as luzes se apagassem e a sessão tivesse início, era frequente entrar, sem qualquer combinação, o Paulo Lúcio.

E do cinema vinham as conversas acerca do que interessava a ambos: poesia, música, literatura, filosofia. Cavaqueira sobre estes assuntos a partir do que os autores faziam. Nunca o habitual diálogo sobre o que este ou aquele, o que neste programa televisivo ou página de crítica se diz e escreve sobre o assunto. Ambos detestávamos a critica e a fraca qualidade que a mesma apresenta, porque sabíamos que uma boa parte dela é retomada, com breves adaptações, das revistas internacionais da especialidade que por cá são pouco conhecidas, como, no caso do cinema, os prestigiados Cahiers du Cinéma.

Era nesse espírito que bebíamos frequentemente uns copos, em grupo mais alargado, aqui e ali, e, num período de tempo, em casa dele que prolongávamos depois da jantarada simpaticamente servidos por ele e a sua companheira da altura, a Céu, a que se juntava a pequena criança de ambos, a Ana. Elas iam dormir que se fazia tarde. Nós continuávamos a noite entre copos, livros e música. A criança que veio depois, a Catarina, só a conheci em mais um acaso, anos mais tarde, num berreiro com a irmã e os pais num dia quente de agosto amenizado pelo estacionamento refrigerado de um centro comercial.

O Paulo Lúcio adorava ler textos à sorte que compunham um lote restrito de preferências, dentre os muitos que se encontravam espalhados pela mesa, e lia bem. Mas também lia aquilo que escrevia, ele e os restantes convivas. Na altura pouco ou quase nada cada um de nós tinha ainda publicado. Eu viria a publicar mais tarde, o Paulo só agora, por insistência minha e cumplicidade da Júlia Moura Lopes, diretora da Athena, que infelizmente não teve oportunidade de o conhecer, mas que admirava a sua escrita e o seu traço. Desse deslumbramento, ainda brinquei com ele e senti a ironia das palavras que ele sabia que eu apreciava. Dizia-me que eu era um bom tipo e tinha sorte em encontrar pessoas solícitas e amáveis como a Júlia. E eu dizia-lhe que tínhamos uns copos, os três, em divida uns aos outros que, agora, jamais serão retribuídos. Ele traçava com as suas palavras um círculo em torno de si mesmo, das suas e nossas circunstâncias. Já pelo fim, confiou-me um volume inacabado dos seus textos, que espero, com a conivência e bondade da Júlia, pulicar na íntegra.

Fomos sempre amigos especiais, como são os outros poucos que ainda me restam. Conhecemo-nos, convivemos durante anos, fomos cúmplices de umas coisas e de outras. Estivemos sem nos ver e comunicar muitos anos. Encontrávamo-nos quase por acaso, intermitentemente, para ultimamente estarmos mais vezes próximos e aproximados.

Neste tempo, já recordávamos muito mas voltávamos ao comentário do que conhecia bem, nomeadamente a Beat Generation do Jack Kerouac, William S. Burroughs, Allen Ginsberg. Há pouco tempo tínhamos tido, quando entre as pandemias jantamos e lhe levei o ensaio que tinha publicado acerca da morte e do morrer, voltado ao tema da estrada fora, agora um pouco fora da estrada, ou daquela pela qual íamos caminhando. E já bem por uma noite dentro, depois de ter estado a conversar com outro amigo, o Zé Vasconcelos, a propósito do filme Contos da loucura normal de Marco Ferreri, mesmo que o assunto que detinha o fio da conversa fosse a atriz que o protagonizava a bela Ornella Muti. Na verdade, não conseguia identificar nem o filme nem a obra em que se baseava. Para satisfazer a minha ignorância, em vez de perguntar ao Google resolvi ligar ao Paulo Lúcio e estivemos várias horas pela noite dentro, a trocar impressões sobre esse e outros filmes que tão bem conhecia e as obras em que se baseavam, no caso em apreço, Histórias de Loucura normal de Charles Bukowski, autor que o tinha influenciado, na escrita e na vida.

Outras vezes ligava-lhe quando passava por qualquer lugar que ambos tínhamos pisado e costumava atender numa serra qualquer onde descansava o corpo e o olhar, ou algures, junto a uma cozinha onde ultimava uns petiscos para a seguir os partilhar tranquilamente com alguém especial.

E era assim entre nós: conversa inútil sobre coisas fúteis. Sempre com a sua ironia provocante para manter o fio do tempo bem esticado entre todos os momentos, os que passaram e os que se desejavam, plasmado no único tempo que interessa, o presente de então.

Agora o Paulo Lúcio passou a habitar outra dimensão. Melhor, pior, igual, assim, assim, só ele saberá. Como refiro e tendo a acreditar porque de facto sou crente, a eternidade pode ter que ver com as coisas terrenas, mas não é espectável que uns e outros se encontrem tal qual se anuncia.

Por cá somos imortais enquanto formos recordados. Em outras dimensões nada sabemos e com certeza não seremos tal qual aquilo que por aqui fomos. Querido amigo, quando te digo até sempre, é mesmo isso, porque a conversa acabou e não voltaremos a habitar os mesmos lugares na companhia um do outro. E suspeito que na eternidade não nos reconheceremos porque por aqui vemos em espelho e na perpetuidade face a face. Mas o que isso realmente significa, por agora, só tu é que sabes!

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Artur Manso, nasceu nos idos de 1964, pelo outono, ao cair das folhas, na aldeia transmontana de Izeda. Professor universitário que ao longo do tempo se tem dedicado à aprendizagem e ao ensino de pequenas coisas sob o signo da estética e da ética, do lugar que nos cabe no mundo e de como a beleza nos pode tranquilizar.

UMA NUANCE NAS NÓDOAS IV – por Lúcio Valium

Fotografia: © Carlos Silva,

BECOS

Parece que só ouço ecos e vozes imberbes. No grande átrio os serventes espalham neurose. É preciso nervos de aço. Uns tiros para o ar seriam ouro. Dói-me o corpo. Sinto frio e arrepios. O peito rasga-se quando vem tosse. Arrasto-me junto às paredes intoxicado em fármacos. Gemem articulações e narinas. Parece que fui espancado. Era bom ouvir a chuva contigo. E oferecer-te flores, delírios, prosas e gerúndios.

A diretora já teve outras vidas, penso. Continua a aceitar o meu jogo. Deixa-me dormir nos intervalos e pegar em livros sem avisar. Acomoda as minhas falhas. Emociona-se com as minhas fugas. Permite que me abram compartimentos pouco usados. Aí saboreio linhas de tempo, uma fuga sonora. Lavo a gordura do interior craniano. Limpo cicatrizes e invento monólogos implacáveis contra este real podre. Mantenho-me à margem das imposturas diárias. Sou um ser inviável, dirão alguns com a sua pragmática. Ou intratável, considerarão outros. Em sua intocável gravidade, não verão melhorias, digo eu. Estou vivo e já não tenho muitos anos para enlouquecer. É um pensamento que me preocupa. Estaria interessado em abordar o assunto. Saibam senhores que caminho cada dia para ser mais livre e encontrar companheiros da mesma laia. Dos que não fazem vénia às montras, onde tirania e santidade  são vendidos como salvação. Negócios de carne humana e sangue da terra. Como diria o do 24 uma história de terror fino corre nas veias grossas do poder. A eternidade é um programa de injetar cegueira nos humanos. Vou a outro lado. Continuar a ler “UMA NUANCE NAS NÓDOAS IV – por Lúcio Valium”

UMA NUANCE NAS NÓDOAS (III)- por Lucio Valium

ARMAÇÕES

manhã negrume gruas pinças
bisturis a rasgar o corpo da cidade.
cabos de aço. sufoco de redes neuronais
doenças no desenho de labirintos.
grades nas ruas ao alto para encantar a vida dos lordes
torturas babadas em majestosos gabinetes.
e nós animais visuais
avançando para evitar o cerco.
desprezando os feridos e a máquina
ávida de obediência e de presas.
e nós animais de memória
cansados de olhar fixo na garra mortuária.
alimentamo-nos de pétalas e vinho no fundo do bosque
onde vemos ao longe o fumo da engrenagem.
lemos em nossos cadernos fórmulas tenebrosas
apontamentos para ser simples na terra.
e nós aqui ainda colhendo flores e imaginando frutas
nós em asco odiando engalanados crápulas.
os que rejubilam com projetos de luxo letal
nós em estratégia sem meios. quase desterrados.
somos meigos em nossos esconderijos e endurecemos
vendo o espetáculo infame quase já sem humanos.
as máscaras tão vazias
uma epidemia irreprimível de cenários de lucro.
o esgoto o nojo o vómito
eu não estou deprimido estou vivo.
leio os personagens em seus artifícios
que querem rapidez e limpeza.
são autores que deixam marca
na crosta terrestre onde espalham carne quente.
e nós viventes em invenção
ainda comemos em mesas limpas.
com suas toalhas humanas
e bebemos para acariciar o coração do tempo. Continuar a ler “UMA NUANCE NAS NÓDOAS (III)- por Lucio Valium”

UMA NUANCE NAS NÓDOAS II – por Lucio Valium

Le temps menaçant by R. Magritte

  BLUES

Blues na cozinha. O som entrava pela garganta das botelhas amontoadas. Depois saí da hospedaria para vadiar. Fiquei algum tempo recostado na avenida central. A sala de visitas dos meninos de botão de punho. Gestores de sítios terrestres. Passei na estação. Havia gajos a tocar. Subi ruas estreitas de tascos e putas batidas. Sem rumo. A mente não escrevia. Indiferente, de olhos no chão, ia por vielas sujas lentamente. Ninguém interrompeu esse corpo invisível. Estava fora do ritmo. Temporal cardíaco. Um dia andou por aí um desterrado que caminhava. De regresso a esta mesa escrevi pequenos textos com palavras de outros. Um gozo o roubo de materiais sem proprietário. Nada de novo. Entretanto o mundo segue infetado de sangue e medicado com espetáculo. Infantil, mercantile, infame. Nas redondezas arrancam-se casas como dentes. Instalam-se implantes do negócio devorador. O confronto contínuo, sanguinário. Parcelas de chão para encher os cofres e despojar humanos. Vejo cada vez menos pessoas. Muitos foram-se embora. Vivemos o jogo da vida. Escolher o lugar onde deitar os ombros é escrever um tempo. Continuar a ler “UMA NUANCE NAS NÓDOAS II – por Lucio Valium”

UMA NUANCE NAS NÓDOAS – por Lucio Valium

The Door To The Clouds” by Christian Schloe

UMA NUANCE NAS NÓDOAS

PELE

eu procuro a luz senhora.
uma luz de pele nua.
viva.
em abandono.
uma eternidade fêmea
e o suave rosnar das peles.
música arrepiante
engolindo lentamente o abismo.
eu procuro a luz de fogo.
negro como uma ideia livre.
e o licor demencial.
a doçura aterradora dos corpos.
serpenteiam entre si como águas gélidas
nas rochas quentes.
eu procuro a luz senhora.
uma luz de gato. noctívaga.
luz de vinho. sanguínea.
sem rédea.
e solar.
vejo-a por vezes na madeira da mesa
inundada pelo sol gato.
errante. solitário. altivo.
como os que denunciam a morte da vida.
com seus corações felinos.
essa luz foge para a lua
e vem queimar-nos a pele.
deitados na cama no tempo.
beijando línguas
amando a espiral.
assim voamos nas inebriantes
partituras.
não tendo ouro como lei.
a senhora sabe de luz.
a sua pele é o lugar
onde o gato a encontra.

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UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (7) – por Lucio Valium

 

RUA

Saí da hospedaria para a cidade. Sufocante e doida na ânsia de tempos dóceis. Mimos e negócios sempre de mãos dadas. Ia com a cabeça a latejar por via de álcoois nocturnos. Deram-me o dia na instituição e não sabiam que ele já era meu. Para não adoecer rasgo as receitas. Encontrei folhas escritas sobre uma certa rixa entre o senhor Pacheco e o senhor Mário. Delicados safados com lábio de ponta e mola. Depois falei com uma menina de olhos pintados a forte traço negro. Aprendiz de joalheira. Fará um dia ornamentos para viperinos figurantes.

O rapaz que me vendeu os cadernos de crítica musical disse que vão fazer uma instalação sonora no Grande Mercado. Sons e sardinhas. Ritmos e malaguetas. Electrónica e azeitonas. Sónicas broas e alfaces psicadélicas.

Andei pelas ruas com desinteresse. Sem linhas prévias. Não tinha onde ir. Não vi nada. Só ir. Por terrenos inabituais.

Mais tarde detive-me olhando grandes telhados de veludo e línguas de deserto ferrugento. Vidros partidos de janelas da história. Arquivos de pó fantasma. Continuar a ler “UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (7) – por Lucio Valium”

UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (6) – por Lúcio Valium

MERCADO

Copio para o caderno: petúnia significa “flor vermelha” na língua dos Índios Tupi.

Foi no Grande Mercado das flores e especiarias que disse esta palavra pela primeira vez. Levámos pimenta negra feijão e alhos.

Escrevo ainda: pertencente à família Solanaceae, a mesma de pimentão, tomate e beringela, a petúnia, apesar de ser perene, deve ser replantada a cada Primavera para manter-se sempre florida.

Quando os mercados eram de ferro e ficavam no centro da cidade tu usavas saia como as petúnias e caminhavas como uma flor por entre peixes e frutas.

Petúnia é um som da cor dos teus lábios.

♣♣♣

“May room has two doors” de Kay Sage

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UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (5) – por Lúcio Valium

COMPASSOS

Somos os dois irmã. Passos lentos nos dias roubados em terra de além Tejo.

Tapas ao cair do escaldante sol. Nas bandas do azul sorvem nossas narinas ávidas. Há vidas, logo embelezem-se. Os olhos com planícies sem fim. Queijo muito fino. Aterrar lentamente. Uma folha na brisa. Nada de utopias nem psicanálise. Esquecidos exames institucionais e ignoradas recomendações. Só apalpar o instante. Inspirar as manhãs e seguir de mansinho. Sem pressa. Em trilhos vazios. Onde árvores antigas repousam. Foram arrumadas ali pequenas casas. E histórias de dor. Que a pintura oficial vai apagando. Com suas escrituras vampiras. Olhamos e sentimos a vida. O que ali sangrou. Continuar a ler “UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (5) – por Lúcio Valium”

UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (4) – por Lúcio Valium –

INVERNIAS

Enquanto corre o teu banho quente
as gaivotas fazem círculos demorados no azul
e ouve-se um saxofone desvairado.
Há pouco falavas da neve e de hospitais
desta luz invernal e de arroz.
Dei-te a manta
e compus as roupas da jangada.
Agora falas do cenário que avistamos da janela.
Um frágil amarelo a escorrer entre a
lã imensa de chumbo fumegante
que se eleva para lá dos telhados
por cima do mar.
Já quase noite
vestes o corpo de calças.
Na cozinha falas de aviões
e polémicas publicitárias.
E da tua cidade nas palavras da pobre jornalista
que serve a encenação enquanto
cortas o alho para a panela.
Depois vens ao corredor escuro
contar uma cena de estrangeiros no restaurante
por causa das línguas e dos lucros.
Os gestos e as atitudes.
E já tens os crepes de legumes prontos.
É hora de sair e dizes
que há pessoas que viajam ao passado
e continuas a falar sozinha na cozinha.
Perguntas se há hora marcada.
Ainda temos de ir comprar um salpicão
e vinho
Mas antes tens que secar o cabelo. Continuar a ler “UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (4) – por Lúcio Valium –”

UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (3) – por Lúcio Valium

 

Le Mirroir, by Pablo Picasso 1932

ANTONÍMIAS

Sair da cama após duras batalhas por bocados de sono. Azuis laranja nascem na escuridão enquanto olho o rio. Escrever-te na sala de máquinas de alta temperatura. Afastado de vozes e vacuidades. Reencontrar o doente do 24 e ignorar os figurantes da sala central. Algumas antonímias na jarra do dia.

Bem vistas as coisas uma delícia num rasgo cósmico. Assim me apresento à geometria demente da eternidade. Com o casaco insondável que me deste. E me é querido na sua compostura irreal. Com sublinhados de alfaiataria ébria. Diz-me o do 24 que estou a andar mais lentamente e com cadência melancólica. Coitado dele o mesmo lhe acontece. Mas tem ainda argúcia para detectar traços novos na história repetida dos homens. Saberá ler os olhos. Quem terá sido o que terá lido pergunto-me. Conhece certamente a poesia do não escrito. As palavras que nos olham por dentro. Encontros ao nascer do dia com o inesperado. O belo nas garras de uma fêmea. O único ocupante do quarto 24 é livre em seu pensamento de bebedor solitário.

Na verdade há uma lentidão nos passos. Mas apesar do feroz ataque da insónia a disposição é boa. Ler no espelho a tua escrita foi o melhor dos vinhos. Sempre gostei de palavras em vidro. De sensuais letras vermelhas. E vi o dia nascer na rua. Continuar a ler “UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (3) – por Lúcio Valium”

UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (2) – por Lúcio Valium

 

APARELHOS

Comi no meio de um ruído imenso. Tomei dois cafés. Procuro um lugar fora do mecanismo. No futuro será mais difícil de encontrar. Cada vez haverá menos lugares desses. Atravesso as compridas artérias institucionais e fecho-me numa sala para escrever. Não há música mas podem enviar-se escritos. É uma área de organismos tecnológicos. Uma visão da vida controlada nos nossos tempos. Fórmulas dados sintomas diagnósticos perfis são palavras que saltam destes aparelhos. Tudo em gráficos e grelhas. As vidas como gravações para consulta pragmática. Nada que lembre coreografias sexuais desmesuras sem palco ou o espanto de quem se perdeu nas cidades e nas vidas de outros. Continuar a ler “UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (2) – por Lúcio Valium”

UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (Série I)- por Lúcio Valium

Foto by Paulo Burnay

HORAS

Na instituição as horas são linhas. Férreas convenções temporais. De manhã não segui a norma. Permaneci na hospedaria. Cama jangada dignos trapos quentes. São a vida. A negação doce e animalesca das imposições. Chego tarde com orgulho. Entro na cápsula como um infiltrado e visto a pele de sereno figurante. Um paciente que não é fácil decifrar. Pouco para o exterior. Só as raras sessões de livre palavria medicante me interessam. De resto busco salas vazias. O desprezo pelo real fraudulento. Não respeito a engrenagem e escondo estratégias que a maquinaria não pode controlar. Sei que a directora é um coração bom. Mas não ia gostar se soubesse do afastamento a que voto as actividades gerais. Pouco importa. Gosto de algumas palavras dela. Mas dou-lhes outro uso. Sonho com o tempo que partilhamos na hospedaria. O nosso vinho na lareira é um festim sem necessidade de ornamentos. É a música primordial dos lábios. Fogo vinho nas cores dos olhos. Prazeres que bailam no labirinto dos corpos. Assim vivo o silêncio íntimo nestes pisos ruidosos. Retendo o suor da noite e a sonoridade da tua pele. Continuar a ler “UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (Série I)- por Lúcio Valium”