UMA NUANCE NAS NÓDOAS II – por Lucio Valium

Le temps menaçant by R. Magritte

  BLUES

Blues na cozinha. O som entrava pela garganta das botelhas amontoadas. Depois saí da hospedaria para vadiar. Fiquei algum tempo recostado na avenida central. A sala de visitas dos meninos de botão de punho. Gestores de sítios terrestres. Passei na estação. Havia gajos a tocar. Subi ruas estreitas de tascos e putas batidas. Sem rumo. A mente não escrevia. Indiferente, de olhos no chão, ia por vielas sujas lentamente. Ninguém interrompeu esse corpo invisível. Estava fora do ritmo. Temporal cardíaco. Um dia andou por aí um desterrado que caminhava. De regresso a esta mesa escrevi pequenos textos com palavras de outros. Um gozo o roubo de materiais sem proprietário. Nada de novo. Entretanto o mundo segue infetado de sangue e medicado com espetáculo. Infantil, mercantile, infame. Nas redondezas arrancam-se casas como dentes. Instalam-se implantes do negócio devorador. O confronto contínuo, sanguinário. Parcelas de chão para encher os cofres e despojar humanos. Vejo cada vez menos pessoas. Muitos foram-se embora. Vivemos o jogo da vida. Escolher o lugar onde deitar os ombros é escrever um tempo. Continuar a ler “UMA NUANCE NAS NÓDOAS II – por Lucio Valium”

UMA NUANCE NAS NÓDOAS – por Lucio Valium

The Door To The Clouds” by Christian Schloe

UMA NUANCE NAS NÓDOAS

PELE

eu procuro a luz senhora.
uma luz de pele nua.
viva.
em abandono.
uma eternidade fêmea
e o suave rosnar das peles.
música arrepiante
engolindo lentamente o abismo.
eu procuro a luz de fogo.
negro como uma ideia livre.
e o licor demencial.
a doçura aterradora dos corpos.
serpenteiam entre si como águas gélidas
nas rochas quentes.
eu procuro a luz senhora.
uma luz de gato. noctívaga.
luz de vinho. sanguínea.
sem rédea.
e solar.
vejo-a por vezes na madeira da mesa
inundada pelo sol gato.
errante. solitário. altivo.
como os que denunciam a morte da vida.
com seus corações felinos.
essa luz foge para a lua
e vem queimar-nos a pele.
deitados na cama no tempo.
beijando línguas
amando a espiral.
assim voamos nas inebriantes
partituras.
não tendo ouro como lei.
a senhora sabe de luz.
a sua pele é o lugar
onde o gato a encontra.

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UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (7) – por Lucio Valium

 

RUA

Saí da hospedaria para a cidade. Sufocante e doida na ânsia de tempos dóceis. Mimos e negócios sempre de mãos dadas. Ia com a cabeça a latejar por via de álcoois nocturnos. Deram-me o dia na instituição e não sabiam que ele já era meu. Para não adoecer rasgo as receitas. Encontrei folhas escritas sobre uma certa rixa entre o senhor Pacheco e o senhor Mário. Delicados safados com lábio de ponta e mola. Depois falei com uma menina de olhos pintados a forte traço negro. Aprendiz de joalheira. Fará um dia ornamentos para viperinos figurantes.

O rapaz que me vendeu os cadernos de crítica musical disse que vão fazer uma instalação sonora no Grande Mercado. Sons e sardinhas. Ritmos e malaguetas. Electrónica e azeitonas. Sónicas broas e alfaces psicadélicas.

Andei pelas ruas com desinteresse. Sem linhas prévias. Não tinha onde ir. Não vi nada. Só ir. Por terrenos inabituais.

Mais tarde detive-me olhando grandes telhados de veludo e línguas de deserto ferrugento. Vidros partidos de janelas da história. Arquivos de pó fantasma. Continuar a ler “UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (7) – por Lucio Valium”

UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (6) – por Lúcio Valium

MERCADO

Copio para o caderno: petúnia significa “flor vermelha” na língua dos Índios Tupi.

Foi no Grande Mercado das flores e especiarias que disse esta palavra pela primeira vez. Levámos pimenta negra feijão e alhos.

Escrevo ainda: pertencente à família Solanaceae, a mesma de pimentão, tomate e beringela, a petúnia, apesar de ser perene, deve ser replantada a cada Primavera para manter-se sempre florida.

Quando os mercados eram de ferro e ficavam no centro da cidade tu usavas saia como as petúnias e caminhavas como uma flor por entre peixes e frutas.

Petúnia é um som da cor dos teus lábios.

♣♣♣

“May room has two doors” de Kay Sage

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UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (5) – por Lúcio Valium

COMPASSOS

Somos os dois irmã. Passos lentos nos dias roubados em terra de além Tejo.

Tapas ao cair do escaldante sol. Nas bandas do azul sorvem nossas narinas ávidas. Há vidas, logo embelezem-se. Os olhos com planícies sem fim. Queijo muito fino. Aterrar lentamente. Uma folha na brisa. Nada de utopias nem psicanálise. Esquecidos exames institucionais e ignoradas recomendações. Só apalpar o instante. Inspirar as manhãs e seguir de mansinho. Sem pressa. Em trilhos vazios. Onde árvores antigas repousam. Foram arrumadas ali pequenas casas. E histórias de dor. Que a pintura oficial vai apagando. Com suas escrituras vampiras. Olhamos e sentimos a vida. O que ali sangrou. Continuar a ler “UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (5) – por Lúcio Valium”

UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (4) – por Lúcio Valium –

INVERNIAS

Enquanto corre o teu banho quente
as gaivotas fazem círculos demorados no azul
e ouve-se um saxofone desvairado.
Há pouco falavas da neve e de hospitais
desta luz invernal e de arroz.
Dei-te a manta
e compus as roupas da jangada.
Agora falas do cenário que avistamos da janela.
Um frágil amarelo a escorrer entre a
lã imensa de chumbo fumegante
que se eleva para lá dos telhados
por cima do mar.
Já quase noite
vestes o corpo de calças.
Na cozinha falas de aviões
e polémicas publicitárias.
E da tua cidade nas palavras da pobre jornalista
que serve a encenação enquanto
cortas o alho para a panela.
Depois vens ao corredor escuro
contar uma cena de estrangeiros no restaurante
por causa das línguas e dos lucros.
Os gestos e as atitudes.
E já tens os crepes de legumes prontos.
É hora de sair e dizes
que há pessoas que viajam ao passado
e continuas a falar sozinha na cozinha.
Perguntas se há hora marcada.
Ainda temos de ir comprar um salpicão
e vinho
Mas antes tens que secar o cabelo. Continuar a ler “UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (4) – por Lúcio Valium –”

UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (3) – por Lúcio Valium

 

Le Mirroir, by Pablo Picasso 1932

ANTONÍMIAS

Sair da cama após duras batalhas por bocados de sono. Azuis laranja nascem na escuridão enquanto olho o rio. Escrever-te na sala de máquinas de alta temperatura. Afastado de vozes e vacuidades. Reencontrar o doente do 24 e ignorar os figurantes da sala central. Algumas antonímias na jarra do dia.

Bem vistas as coisas uma delícia num rasgo cósmico. Assim me apresento à geometria demente da eternidade. Com o casaco insondável que me deste. E me é querido na sua compostura irreal. Com sublinhados de alfaiataria ébria. Diz-me o do 24 que estou a andar mais lentamente e com cadência melancólica. Coitado dele o mesmo lhe acontece. Mas tem ainda argúcia para detectar traços novos na história repetida dos homens. Saberá ler os olhos. Quem terá sido o que terá lido pergunto-me. Conhece certamente a poesia do não escrito. As palavras que nos olham por dentro. Encontros ao nascer do dia com o inesperado. O belo nas garras de uma fêmea. O único ocupante do quarto 24 é livre em seu pensamento de bebedor solitário.

Na verdade há uma lentidão nos passos. Mas apesar do feroz ataque da insónia a disposição é boa. Ler no espelho a tua escrita foi o melhor dos vinhos. Sempre gostei de palavras em vidro. De sensuais letras vermelhas. E vi o dia nascer na rua. Continuar a ler “UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (3) – por Lúcio Valium”

UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (2) – por Lúcio Valium

 

APARELHOS

Comi no meio de um ruído imenso. Tomei dois cafés. Procuro um lugar fora do mecanismo. No futuro será mais difícil de encontrar. Cada vez haverá menos lugares desses. Atravesso as compridas artérias institucionais e fecho-me numa sala para escrever. Não há música mas podem enviar-se escritos. É uma área de organismos tecnológicos. Uma visão da vida controlada nos nossos tempos. Fórmulas dados sintomas diagnósticos perfis são palavras que saltam destes aparelhos. Tudo em gráficos e grelhas. As vidas como gravações para consulta pragmática. Nada que lembre coreografias sexuais desmesuras sem palco ou o espanto de quem se perdeu nas cidades e nas vidas de outros. Continuar a ler “UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (2) – por Lúcio Valium”

UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (Série I)- por Lúcio Valium

Foto by Paulo Burnay

HORAS

Na instituição as horas são linhas. Férreas convenções temporais. De manhã não segui a norma. Permaneci na hospedaria. Cama jangada dignos trapos quentes. São a vida. A negação doce e animalesca das imposições. Chego tarde com orgulho. Entro na cápsula como um infiltrado e visto a pele de sereno figurante. Um paciente que não é fácil decifrar. Pouco para o exterior. Só as raras sessões de livre palavria medicante me interessam. De resto busco salas vazias. O desprezo pelo real fraudulento. Não respeito a engrenagem e escondo estratégias que a maquinaria não pode controlar. Sei que a directora é um coração bom. Mas não ia gostar se soubesse do afastamento a que voto as actividades gerais. Pouco importa. Gosto de algumas palavras dela. Mas dou-lhes outro uso. Sonho com o tempo que partilhamos na hospedaria. O nosso vinho na lareira é um festim sem necessidade de ornamentos. É a música primordial dos lábios. Fogo vinho nas cores dos olhos. Prazeres que bailam no labirinto dos corpos. Assim vivo o silêncio íntimo nestes pisos ruidosos. Retendo o suor da noite e a sonoridade da tua pele. Continuar a ler “UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (Série I)- por Lúcio Valium”