5 POEMAS EM VERSO E PROSA – por Luís Fausto

Explicação

Quando te vi aparecer vinhas já sem qualquer palavra. Arranhavas as pernas nas urzes e espinhos dos cardos, os cães corriam-te loucamente à volta porque em ti conheciam a liberdade e a obediência. Depois, a um teu gesto, improfundável e erudito, os animais prontamente se esticaram numa seta como se soubessem que daquelas serenas urzes se levantaria uma imensa revoada e que um sucessivo trovão abrasaria o ar.
No fim do silêncio, caíram duas aves. Abriste os olhos, tristes, tão claros que para muitos seriam apenas belos. Ninguém saberia descodificar no teu fácil gesto de prender as aves à cinta a consternação de possuir um indissolúvel poder, nem, na tua sóbria execução da virilidade, a indecisa suspeita de uma justiça estragada, embora inominável, nem o desencontro do homem consigo mesmo quando a dúvida o instala em dois estados de permanência.
Mas isto passou-se rápido. Quando te olhei outra vez, já te afastavas com os cães na direção oposta à do vento, sem me dares qualquer explicação.

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O consciente

Posso entornar a cabeça no teu colo
para que me a afagues,
sem que algum Freud entenda
o não avesso da ternura.
Se concordares
posso ir dizer ao Modernismo a verdade:
Eu nunca estive tão próximo
de um ventre

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A palavra luz a palavra merda

A leveza, entende-se,
é inocente:
diz também o que é dito.
— o terrível silêncio.

De luz em luz,
de merda em merda,
é a morte,
ou coisa mais grave,
em pontitas dos pés,
graciosa,
criança ainda,
sem ritmo,
sem estética,
a ensaiar o passo
de uma música sem mácula,
feliz.

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Requiem, Op. 48 — Introit et Kyrie (Fauré)

O anoitecer entra lúcido e difícil pela janela do meu quarto. Pressinto um fim de mundo num sossego alcoólico. Pressinto? Sinto o que sinto. Sei sequer pensá-lo? Olho novamente para a minha mão sem saber para quê. Ainda encardida de uma familiar sombra. Endémica. Mas a comédia desespera-me. Trágica, sim, Titânica, Coerente. Alude a um gesto de subir, de querer subir-me pelo pulso, a rasgar o abisso final, o nenhum pesar da queda e… — e já não quero olhar mais, escondo a mão ao lado da perna. Pelo canto do olho parece doer-me lá em baixo, quero dizer, não um doer, mas um arder, um doloroso arder. Não sei bem sentir isto. Não sei. Estou a morrer? — pergunto aos espíritos ofegantes da minha bebedeira. Mas não há Bacos que respondam fielmente a estas angústias — a resposta é sempre uma coragem lírica ou uma suprema indiferença. Não olho não quero. Rasgo a declaração que escrevi, se não importa a deuses também não me lava do ridículo. Para quando, quando tudo tarda? É o vento que oiço? Um rumor, uma música. Vozes iguais às que já havia esquecido, penetram o quarto, cobrem-me a pele, e mais dentro, a dormência. Metal rubro na boca, e o sol cai tão rápido pelos meus olhos… um sonho em que entro, de que saio, ou um dormir sem nada dentro.

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Sono de inverno

Do princípio trouxemos o fogo, a caverna,
alguns livros, discos. Nevava
ainda a inteira agrura de milénios,
sobre o tédio branco das estepes. Por dentro,
palavras: feridas,
as mais severas
e evidentes.

Calígula olhava-nos
através
das sombras
sem corpo
dos sonhos
sem nós.
Porém o medo
acabara rente ao hábito
e quando as horas eram
sem nada, sorríamos:
era o amor de mascarilha,
em torno do nosso púbis,
em torno do esvaziamento,
em torno da solidão.

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Luís Fausto Nasceu em 1990. Estudou no Porto e vive em Lisboa. É tradutor e escritor.