BOCA A BOCA – por Vinicius Comoti

To create a little flower is the labour of ages.
William Blake

I
esperma numa cisterna com uma enfezada raposa comemorando a vitória sobre os segredos da língua a fuligem alusiva de estrelas banhadas no magma das representações semeadas pelo absurdo de uma noite inventada pelos juncos & pupilas mascadas no devaneio de ruas caducas onde a amnésia se estreita entre os ventos sobre os escombros do sonho confundido com gerânios acolchoados pela hipnose da catedral mijada pelos mendigos & flores sem lembranças

II
o que me voltava & me deglutia na sangria do açougue dos espíritos o que me indagava sobre o verde dos hospícios o que me afligia com a navalha de uma esperança assassina os dias no espelho da ilusão de um rosto sem aura & calma o caos com bochechas quentes

quem é você?
bebê de bicho

III
os pivetes surfavam no teto do trem
o mais tímido, escorregou-se no vagão & foi moído no trilho como uma moeda sem valor
o outro, arguto ao ritmo da locomotiva, lançando manobras mirabolantes, não percebeu o fio &
morreu como capa de jornal: onda de ferro leva surfista eletrocutado

IV
todas as camas na lama de amor & narcóticos
lampejos mutilados pelo desejo
beijos como travesseiros arrojados na penetração
do céu transformado em véu
amantes com dedos de rinoceronte

V
te encontro na sombra do caos
& lhe desfiro os tentáculos de uma cega sensibilidade
nossas cabeças na correnteza
& a gravidade abruptamente se estende ao contágio
dos pássaros fundidos no aço
camuflagem prolongada na solidão

VI
a mosca na garapa
o pombo no pastel

VII
a insônia da voz pluviosa
na rua que jamais foi rua
besta criada com pantufas

VIII
asas
desesperadas

IX
elas se beijavam acariciando os mamilos deslizando a umidade das grutas pelas colinas feitas de arrepio & a quentura se contorcendo sobre a chuva de amor & modorrentos sussurros na orelha um tambor descarrilado no penhasco de esguichos metálicos & o cuzinho como leão-marinho no fundo do azul primitivo da sauna cobiçada & a alma pelintra onde o frescor da iluminação se abastecia entre bazucas de marijuana & suas visões com langores no êxtase apimentado no arame farpado dos altíssimos jorros como cadelas na dispersão de uma cachoeira & suas cerejas envenenadas & dedadas rompendo a trajetória dos espectros vagando a seiva da caranguejeira afanada com bufas regadas de cachaça & suores disparados no confronto do crepúsculo claudicante & suas florestas de horizontes pálidos na página do outono desbotado pelas acrobacias do fosforescente cardume longamente mimado com bitucas de cigarro & lagos brandos como uma coleção de bares carcomidos pela última dose na vertigem dos jardins maquinados & que gostava de abrir as pálpebras com as palmas da paixão

X
meu amor me desperta com farpas de uma noite batida
& galopa como uma rosa
âncora de corais famintos
meu amor & seu instinto de violetas banhadas no cerol
nervuras arrebitadas
& colhemos nossos fantasmas
na alegria solidamente cubista

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Vinicius Comoti vive em São Paulo. É cineasta, escritor, jornalista e doutorando em Letras pela Universidade Federal do Paraná. Rabicó de Puto (2019), Bagarocas (2020) e O Meu Amor é Um Picles Passado (2022) são os livros publicados que compõem sua obra poética.