UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (7) – por Lucio Valium

 

RUA

Saí da hospedaria para a cidade. Sufocante e doida na ânsia de tempos dóceis. Mimos e negócios sempre de mãos dadas. Ia com a cabeça a latejar por via de álcoois nocturnos. Deram-me o dia na instituição e não sabiam que ele já era meu. Para não adoecer rasgo as receitas. Encontrei folhas escritas sobre uma certa rixa entre o senhor Pacheco e o senhor Mário. Delicados safados com lábio de ponta e mola. Depois falei com uma menina de olhos pintados a forte traço negro. Aprendiz de joalheira. Fará um dia ornamentos para viperinos figurantes.

O rapaz que me vendeu os cadernos de crítica musical disse que vão fazer uma instalação sonora no Grande Mercado. Sons e sardinhas. Ritmos e malaguetas. Electrónica e azeitonas. Sónicas broas e alfaces psicadélicas.

Andei pelas ruas com desinteresse. Sem linhas prévias. Não tinha onde ir. Não vi nada. Só ir. Por terrenos inabituais.

Mais tarde detive-me olhando grandes telhados de veludo e línguas de deserto ferrugento. Vidros partidos de janelas da história. Arquivos de pó fantasma.

Os putos caminhando pela via-férrea e a fúria de pintar para lá do arame.
Procurarei o senhor Muller próximo do Café Java. Ele nunca andou por lá. Eu andei mas nunca me viram. Também não se vê quem veja. E não tenho caminhos visíveis. Sou o criador da minha invisibilidade.

As meias ficaram por comprar. As botas poderás encontrá-las noutras paragens e não vieram as alheiras para o jantar. Nada interessa para além de ver-te na obra a preto e branco. Tu nas linhas sombras luz. Tu no fazer. Tirar dos olhos e dos dedos o que não existe. Tu no quarto a dizer.

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SONS

Grelhas e procedimentos relatórios e prescrições. Como se a vida fosse uma pauta de resultados. Movimento e rotinas. Reverência às quadrículas que esventram o dia. Enquanto muitos parecem bonecos numa hipnose generalizada falo com outro sobre vinhos. Tintos encorpados. Os que preenchem o homem até às fissuras dos ossos.

Neste aglomerado de grandes pavilhões procuro recantos. Espaços onde possa encontrar sons. Paisagens sónicas. Tempo audível. E silêncio.

Leves demências solitárias de um animal sedento.

Afortunadamente encontro máquinas sonoras. Depois sigo frases que voam. Vou com elas e os sons acompanham-nos. Mantenho-me vivo.

Quase não falo com ninguém

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ESCAVAR

Pode ser uma lasca de cérebro a saltar. Ou um corte neuronal silencioso. E será sempre mais uma escavação. Visto que gravações subterrâneas parecem existir já com vida. Há algo mental mais fundo. Escavar é deixar o corpo em busca do ser. Que se encontra em zona sombria num qualquer não lugar. Muito já existia cá dentro. A arte da vida é obra do ser. Que tem uma forma. Não é só o auto-estilo.

A acção de fazer da vida obra é forma de ser. A dança dos encontros resulta de não parar. De escavar. Prazer e procura. E há escritos subterrâneos a golpearem.

Ser é fazer sair. Na rua como em casa fazer o tempo.

Consegui encontrar um gabinete minúsculo. Desapareci do meio da movimentação e dos procedimentos requeridos. Não me são queridos. Mas sim as horas em que desenho caligrafias para ti. Contrastes e percursos irrequietos que aqui deixo.

Para te encontrar. A ti que sabes do nosso tempo e acendes velas para guardar palavras em conchas lunares.

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FUGAZ

Usar as manhãs tocando em palavras preciosas. Contemplando a sua nudez.

Um rasgo nos dias para entrar pelos olhos das palavras que sonham.

E deixar que os seus sonhos se tornem a oficina das nossas mãos.

Bordados lançados nas chuvas. Que espero na noite. Como um uivo infernal.

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FLUXOS

Hoje há muito barulho nestes edifícios. Ninguém se cala. Um dia no mundo. Os dias são uma irreprimível cascata. Um fluxo quase irreal de tão vivo. Assim os havemos de incorporar na arte do desvio. Aqui as tarefas aumentam o ritmo da circulação mental. Os corredores são artérias demenciais. Sinto-me um estranho com alvos diferentes dos outros. Todos os dias se impõem esquemas receitas e formulários. Formatados procuram controlar os tempos e estreitar a visão. Golpes de cima. Não se deixam corpos à solta e não há tréguas para os cérebros. Apesar de o director revelar intensas memórias humanas e de alguns negarem obediência às linhas geológicas vigentes quase tudo o resto é domesticação profunda. As saídas são para mim as flores mágicas.

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PALAVRA-SOM

Conheci um homem que fazia colecção de palavras à 4.ª feira. Saía do local onde vivia e andava pelas ruas em busca de palavras. As que encontrava escrevia-as num pequeno caderno. Mas encontrou também a liberdade de caminhar pela cidade. Sem hora ou propósito olhando e pensando. Esse homem desejava experimentar um personagem real livre. Vivia. Desejava somente caminhar sem lei. E escrevia. Não precisava de comprar nem de chegar. Desprezava as modas e o controlo reinante. Odiava o embuste e a servidão em que os amestrados consumidores viviam. Estava só mas tinha em si o tempo. E com ele criava o seu ser. Fazia da vida a história de si mesmo.

Por vezes lia textos de mortos. Nada de comparável à esterqueira da escrita dos vendidos. Sabia da encenação descartável a substituir a vida. Vivia à margem de conluios e não se anulava perante o logro. Pode-se dizer que um certo negrume o preenchia. Mas talvez visse já para além dele. Os gestos mais simples e os olhares únicos chamaram-no à mesa de seres insubmissos. Porventura indecifráveis. Foi os que conheceu melhor. Silêncios e devaneios contribuíram para essas uniões de uma vida.

Em balcões insólitos bebeu com libertários. Lavou os olhos no bidé negro dos blues bêbados. Retorceu os fios mentais num manicómio dadaísta. Não frequentava capelas de fraseado e reverência. O paraíso encontrou-o na cama e o deus foi o corpo feminino. Não procurou forma de sair dos camarins. Foram sempre a sua mente. Que também estava na plateia e o ameaçava de naifa. Alguns fármacos filosóficos serviram-lhe de rastilho e anestesia. Nenhuma lixívia apagará as suas rugas. Elas levantam as saias porque sabem do temporal. O homem é um animal à deriva. Um pobre que nunca adivinha o fim.

Ele sabia disso. O que conheci à 4.ª feira nas ruas. Sabia também da palavra que não dizia. E foi ela que lhe deu mentes queridas e fragmentos de universo.

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MEDICINAL

Há momentos medicinais. A meio de um corredor um globo terrestre. Olhar por algum tempo as linhas e cores do globo. Há também um antigo leitor de bobinas e uma máquina de projectar slides. Pensar nos trajectos perturbadores da mente humana. Nas formas irreprimíveis das coisas. Em todas as pinturas e nos insondáveis efeitos da escrita. Que imagens e palavras levarão aqueles que não voltam pergunto. E que interessa tudo isso. E o que virá no tempo pergunto ainda.

O mais importante é que a noite está a cair e com ela vem o desvario. Imagino uma dança na hospedaria os candeeiros os copos e os temperos. A meiguice das tuas mãos na madeira. É simples o segredo dos laços. E toda a violência das vidas está em querer mais do que os pequenos segredos. Vou-me embora. Pela porta das traseiras.

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SERVENTIAS

Continuam as fugas. Sala secreta com serventias. Depois de afrontar a normalidade caminho devagar para o refúgio. Um aparelho problemático dá música minimal.

A máquina de escrever funciona. Aqui vivi e mergulhei no trânsito desarticulado das frases.
Sei dos filmes do homem da casa amarela. Das noites quentes na hospedaria.

Ontem o vinho branco foi um perfume que não afectou tintas cerebrais e as tuas palavras um remédio. Agora alguns pequenos cumprimentam-me. Chegaram ao mundo há dez anos e já têm os postais gravados. Os mesmos dos adultos. O que fazer para encontrar um ser singular é uma pergunta que regressa. Aqui há simulacros e alarmes. Batas brancas. Processos. Salas com grandes mesas negras. Barulho gritos vozes. Impessoais faces quase sem corpo. Máscaras medicadas. Um ou outro vivo.
E há um ser anónimo que te escreve. Já atrasado para outros gabinetes. Mas que interessa isso pergunta comparado com o desejo de chamar as letras e que elas voem suavemente para ti. As palavras como o vinho e os corpos servem também para unir os olhos. Mesmo fechados no escuro.

Quero ver a tua saia nova.

Art de La lectora -Luz Esmeralda Torres de Deike

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CANTO

Fico a um canto sentado no grande sofá de couro antigo. Vejo os pacientes que chegaram recentemente. As mesmas observações de sempre. As mesmas conversas. Os mesmos programas mentais. Tudo igual. Estas almas são objectos copiados. Obedecendo aos sinais dominadores serão lentamente conduzidas aos fatídicos salões tenebrosos. Já não fogem da película serventuária. Só certos desalinhados alteram os circuitos e percorrem rumos de geometria desconhecida. Sei de alguns. Muito poucos desaparecem para sempre e nunca mais são vistos nestes lugares. Há também os que foram libertados e regressam devido ao exíguo leque de opções ou à frágil capacidade inventiva. Quanto a mim vou fazendo a vida mais fácil. Passo menos tempo em actividades nocivas para os olhos. E não me exigem análises frequentes. Há relatórios a que me escapo e ninguém diz nada. Ocupo um local vazio em certas tardes. Posso dedicar-me a experiências sónicolexicais. Aqui contudo a música é inexistente. As luzes apagam-se insistentemente sozinhas o que revela a obediência dos lugares às leis doentias da economia. A sua inteligência curta escraviza já os homens. Com letra minúscula. Outros possuem outras armas.

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RASURAS

Ser aqui um estranho é como usar botas de lenhador num campo de nuvens. Os figurantes destes pavilhões igualam-se na indumentária na palavra e na encenação. Vão andando para as suas alas acorrentados às ordens vigentes. Há os que se sentem livres por fazerem algumas viagens banais. Mas nada dizem de cortante.

Na sala central fico em silêncio e descanso os olhos alguns minutos. Depois as palavras invisíveis retomam o desvio no meio de um papaguear colectivo. Ao canto da sala onde um servo do director colocou este mecanismo escrevo para que vejas os ecos que ouço e sintas como viajo numa forma de demência. Diferente da que ataca ao anoitecer. Tento mergulhar em íntimas sonografias mas as vozes doentes perseguem-me. Repetem-se sobrepõem-se invadem-se estas indigentes figuras. O cenário está a transformar-se numa desprezível orquestra de solos pueris. É tempo de ir para as oficinas abandonadas. Lá o silêncio remove as impurezas.

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COLETES

Haverá corpos inesperados bons para usar colete. Como certas frases num sítio desassossegado. Felinas e em paz. Que se coloquem os objectos num armário de forma estranhamente inabitual é um desígnio a procurar igualmente com as palavras. Assim uso os transístores da instituição fora de prazo e avanço lentamente sem soprar nos radares. O mistério adensa-se enquanto me permito certa invisibilidade.

Vi que leste até tarde. O livro azul passou para o meu lado. Continuas a mergulhar nas teias dos lagos sombrios.

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Lúcio Valium – Um ser em desvio, sem lugar! Um homem vivo, em desordem! Um forasteiro que nos caminhos encontrou palavras e perdeu moradas!

(Continua na próxima edição)

Veja os cap. anteriores desta Série

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