O QUE SOMOS – por Joana Rebelo

 

Entre processos e percursos.
Da modernidade à atualidade

Da modernidade desde Descartes (1596-1650) conhece-se uma filosofia do sujeito, “penso, logo existo”, o “homem medida”, que tem a sua origem no racionalismo grego, nos sofistas, pois Protágoras, um dos seus elementos mais proeminentes, fixou na mudança de paradigma da natureza para o homem que este “é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são.” Seguiu-se também a famosa máxima atribuída a Sócrates (mesmo que não lhe pertença): “conhece-te a ti mesmo”, desígnio que a longa Idade Média interrompeu com a submissão do poder da razão para os dogmas de deus. O entendimento da natureza e do homem no seu seio é, por isso, de novo, modificado. Antes dos sofistas, era a physis, a substância física da qual todas as coisas eram feitas, que se impunha como princípio organizador da estrutura das coisas, percurso iniciado por Tales de Mileto, que caracteriza o designado pensamento pré-socrático.

Ora, a modernidade não rejeita a verdade universal e o seu suporte divino, mas o iluminismo que a segue tentará secularizar a existência individual e coletiva com o esforço individual, em torno do pensamento critico e fundamentado, racional, sem dogmas ou limites. Kant (1724-1804), na resposta a O que é o iluminismo? (1784), esclarece: “é a saída do homem da sua menoridade da qual ele mesmo é responsável”, menoridade que define como a “incapacidade do homem se servir do seu entendimento sem ser dirigido por outrem”. É, na verdade, o “eu penso” como poder de bem julgar, para distinguir o verdadeiro do falso. Se quiséssemos caracterizar a modernidade seria através de um “totalitarismo da razão”, fixado apenas no mecanismo causal das coisas, pela constância expressa em enunciado ou lei, pelo conceito que deve obedecer ao rigor da matemática, de que é exemplo a escola de Port-Royal, que virá a privilegiar o modelo da inteligibilidade das ciências naturais. Enquanto a ciência antiga carecia de experimentação e verificação das teorias, pelo que os seus enunciados apenas atendiam à validade lógica, a ciência moderna obedece ao método científico, à verificabilidade dos seus enunciados.

É na segunda metade do século XX que a disposição racionalista é alterada, devindo na pós-modernidade pelos atributos que Jean-François Lyotard (1924-1998) lhe traça no ensaio A condição pós-moderna (1979). Aí, a estrutura racional e o predomínio do conhecimento científico sobre as restantes maneiras de conhecer adquirem novos fundamentos, graças à apreciação de Lyotard aos esforços que Daniel Bell (1919-2011) expôs, ao longo da sua pesquisa sintetizada, na década de 1970. Quanto ao prefixo pós, esse significa o que vem depois e, portanto, no caso da pós-modernidade, identifica-se com a contestação da estrutura rígida moderna e iluminista da perfetibilidade humana, em que o pensamento social e político de Rousseau (1712-1778) foi tomado como medida na expressão do “bom selvagem”: o homem nasce livre, mas a sociedade e a cultura tornam-no prisioneiro. Lyotard surge contestando a rigidez racional da explicação das coisas e da natural fragmentação do saber, pretendendo mostrar que o saber muda de estatuto, ao mesmo ritmo que as sociedades entram na idade pós-industrial e as culturas na idade pós-moderna. Vivemos desde o cartesianismo numa filosofia do sujeito e, hoje, há a passagem para um tipo de pensamento completamente diferente, onde as matrizes de sentido não se encontram instituídas. O que parecia verdade ou ajudava ao seu critério, inclusive, leis históricas e grandes narrativas, é agora uma hipótese. A estrutura das grandes narrativas que tratavam o tempo como um desenvolvimento rumo ao fim absoluto, onde os indivíduos se encaixavam, deixa de ter qualquer significado. A racionalidade, na sua rigidez, sofre um abalo e será revista, mas não será abandonada, ainda que o pós-moderno seja cético na análise aos grandes sistemas filosóficos, inclusive, o iluminismo. No século XX conheceram-se as duas grandes guerras e as dolorosas experiências do Holocausto, Hiroxima e Nagasaki. No entanto, a catástrofe natural do terramoto de Lisboa de 1755 antecede este debate, ao animar a polémica sobre o poder absoluto da razão, o domínio da ciência e do progresso e o verdadeiro lugar do homem no seio da humanidade. O acontecimento levou alguns autores a refletir, nomeadamente, Kant, que dirime a questão nos Escritos sobre o Terramoto de Lisboa, e Voltaire (1694-1778) que, partindo da mesma experiência, escreve Cândido ou do optimismo, onde os acontecimentos naturais são analisados em contraste com a teleologia de Leibniz (1694-1778), que defendia estarmos no melhor mundo possível, onde nada acontece por acaso.

Podemos afirmar que a condição pós-moderna trata da emancipação do trabalho e do desenvolvimento da humanidade, através dos progressos da tecnociência capitalista e de uma nova forma de religiosidade, que quebra o canon da antiguidade, variando para a, hoje, designada espiritualidade laica. As metanarrativas, nomeadamente, os mitos, acabaram por ser reescritos de acordo com a circunstância: Narciso e o culto do corpo, Prometeu e o desejo de triunfar, Pandora e a atração da beleza.

Pós-modernidade e era do vazio

Na vertigem do século XX, rapidamente a condição pós-moderna ganhou novos contornos com o exponenciar dos novos referentes das sociedades, nomeadamente, o subjetivismo e o domínio do digital, que acabou por exacerbar o individualismo. A atualidade, dominada pela robótica e o digital, já antecipa o pleno triunfo da Inteligência Artificial, com as novas reflexões expressas em torno do site GPT. Estas preocupações ainda não faziam sequer parte da Era do vazio (1983), de Gilles Lipovetsky, textos onde expôs a sociedade da altura e as estruturas em torno das quais se organizavam as sociedades, com o surgimento de movimentos que apresentam vontade comum de rutura radical com a história e a tradição; recusa da memória e defesa de uma ‘amnésia’ cultural; ideal de fusão da arte na vida; poéticas artísticas centradas na fragmentação; desvalorização do papel do autor, enquanto criador, e promoção de processos de autogeração de texto.

A psicanálise de Freud (1856-1939), na senda de Nietzsche (1844-1900), na sua designada “metafísica do artista”, explica a arte através da sublimação do desejo sexual, ao lado de outras atividades relevantes (e criativas) como a ciência e a ideologia. O surrealismo, movimento artístico e literário cujas bases André Breton lança no Manifesto Surrealista (1924), continua a ser um dos melhores exemplos do ecletismo e da intertextualidade.

A arte virada para os sujeitos e para o realismo urbano ganhou dimensão fruto da relação entre a produção e a fruição, caráter distintivo da arte e estética atual, que desloca o tradicional olhar das propriedades intrínsecas – forma, proporção, técnica, beleza -, para passar a encarar o produto de consumo como um qualquer, deixando de haver critérios universais para distinguir o que é arte e imitação, o original e a cópia, os rasgos de génio patentes em um produto criativo ou o amadorismo e a mediocridade. A fotografia, à semelhança da arte pop, envolve coisas, objetos, e pessoas que povoam o quotidiano, dando àquilo que produzem um aspeto simples, permitindo ao observador construir sentidos e representações novas. O mundo da modernidade, construído de objetos duráveis, é substituído na contemporaneidade pelo mundo da produção e do consumo. O narcisismo, personalismo e individualismo, que as sociedades tentavam conter, tornaram-se, na atualidade, os vetores principais. Agora, o indivíduo passa a ser o elemento principal no seio da sociedade, onde os seus direitos individuais são garantidos.

A democracia foi-se espalhando a partir do iluminismo e das revoluções americana e francesa: uma pessoa, um voto. Mesmo que essa fórmula só tivesse sido conseguida quando já bem dentro do século XX foi concedido o direito de voto às mulheres, que o vinham reivindicando pelos diversos movimentos sufragistas, desde os finais do século XIX.

Na segunda metade do século XX, a família também foi assumindo novos significados, para além daquele que o império romano consagrou enquanto união entre duas pessoas e seus descendentes, e que a religião consagrou, através do matrimónio. O casamento, como instituição sagrada indissolúvel e destinada à reprodução, é progressivamente abandonado e o afeto passa a ser o vínculo de união entre os membros de uma família: família informal, monoparental, reconstituída… Também nas rígidas estruturas religiosas e suas práticas milenares, o rito e o culto, após as infrutíferas tentativas de tornar a humanidade puramente materialista e com a única fé nos ganhos da ciência e da tecnologia no progresso, desembocou numa resistência ao modelo, acabando por, fruto dos tempos, o sentimento religioso deslocar a crença num deus maior para a perfetibilidade humana, para a Humanidade, surgindo os novos conceitos de “espiritualidade laica” ou “religião do amor”.

A vertigem do tempo tem ganho, em definitivo, um novo significado. Quatro décadas depois da era do vazio, Lipovetsky ajusta a sua visão à era digital, agora com a Internet e a omnipresença das redes sociais, destacando, inclusive, a luta ecológica, que explica numa entrevista dada ao Jornal Público, a 25 de março de 2023, como sendo capaz de “preencher o vazio das grandes ideologias de outrora”. Junta ao tema a cultura da autenticidade, que define como sendo a procura do próprio caminho do “eu”. O princípio do be yourself é atualmente um consumo escolhido, um consumo ecológico, que permite uma tomada de poder sobre as condições da nossa existência. O livro mais recente do autor, A Sagração da Autenticidade (2022), fala disso mesmo, procurando esboçar o retrato do novo Homo authenticus, ou seja, desta nova fase de modernidade, que se caracteriza, entre outras coisas, pela oferta de produtos que prometem a ideia de transparência e ética.

As coisas duram até que acabam, como mostram as estruturas fundamentais da sociedade que, sendo rígidas nas suas conceções, nada lhes resta se não se adaptarem aos tempos. Elas são modificadas, por vezes, maltratadas ou mal vistas, mas nunca deixam de ser uma referência para a organização das sociedades e a compreensão dos indivíduos no seio das mesmas. Essas estruturas, durante anos, séculos ou milénios, parecem resistir a todos os abalos, mas inevitavelmente acabam por se moldar aos tempos e às circunstâncias. O comunitarismo de base cristã, como referido nos Atos dos Apóstolos, afirma: “todos os que haviam abraçado a fé viviam unidos e tinham tudo em comum. Vendiam propriedades e bens e distribuíam o dinheiro por todos, conforme as necessidades de cada um”, ideal que no campo laico e profano está patente no, hoje, decadente movimento de contracultura hippie dos anos 60, assim como nos kibutzim, comunidades comunitárias israelitas, de inspiração utópica, que hoje não se distinguem de qualquer empresa capitalista. A ideia de continuidade, de esforço, de perfetibilidade, de igual valor de todos é atualmente subjugada à imagem, aos gostos e likes que cada um vai gerando nas múltiplas redes sociais, onde passa o tempo. Até que outra moda a substitua.

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Joana Rebelo, Um ser em busca pela sua identidade, seguro do muito caminho que ainda tem para desbravar.  Mas algo que as duas décadas de vivência lhe deram foi a certeza de que o caminho não é tanto ver aquilo que nunca ninguém viu, mas pensar o que ninguém pensou sobre aquilo que todo o mundo vê. 

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