SERÁ ‘ALICE E OS ABUTRES’* UM ROMANCE ALICEANTE? – por Danyel Guerra

ArteLiteraria, eis a palavra-passe para quem quiser acessar o universo aliceano! Para começo de interação com ele, devo confessar que ignoro qual é a praia predileta de Beatriz Pacheco Pereira, enquanto cidadã. Na certa, todavia, não me enganarei se escrever que, enquanto autora, ela frequenta as finas areias da praia (da) arte literária, onde maresia se faz concórdia com poesia. E desde 2003, em que publicou ‘As Fabulosas Histórias Dela’, coletânea  de contos de feição, noblesse oblige,  fantasista.

Por (boa) ventura, será que ‘Alice e os Abutres’, seu mais recente romance* continua sendo fiel à linhagem inaugurada em 2004, com ‘O Tratado dos Anjos’? Para já, o que entendo ser mister sublinhar é a evidência da não literatura de Pacheco Pereira se insinuar, desde o genesis, como um registro exercitado com insofismável vocação autoral. E ‘Alice..’ tende a testemunhar e a corroborar essa congenial condição?

Nem light, nem “escrita criativa” nem…

Numa nefasta manhã, Alice, ao entrar no ateliê do marido, o pintor Alphonse, depara com seu corpo (já) álgido, jazendo no chão, acusando requintes de sadismo e de extrema violência. Em sequência, a trama se tece obedecendo, no essencial, às boas práticas da novela policial de que Beatriz será, com certeza, uma criteriosa conhecedora (lendo autores como Dick  Hastings ou Raymond Chandler).

‘Alice…’ se desenrola até ao fim numa ambiência minada por problemáticas político-sociais e chagas humanas, tais como  corrupção/venalidade/tráfico de influências, húbris, cupidez, ganância, inveja, vingança, assédios e abusos,  o que o torna um conteúdo atual e intemporal.

Julgo que não vou cometer a desfaçatez  de levantar a saia de seda de ‘Alice…’, se antecipar que a obra traz no bojo uma transmutada estória de amor. E de um amor inconsútil.

Quem bem conhece a romancista, constará que sua escrita continua inexpugnável ao vírus “Light”. Ela se mostra, outrossim, imune às tentações pernósticas que afetam inúmeros escritores que se julgam fadados para a fruição da equívoca  “escrita criativa” e ungidos, a ponto de  exponenciarem a exigente técnica do fluxo da consciência, procedimentos apontados pelas massas críticas em voga como modelos modernosos a perfilhar.

Coerente com seu padrão de escrita, a autora reitera, à boa maneira dos autênticos policiais, a preferência por uma codificação ágil, dúctil, em souplesse, isenta de “floreados”, por ela votados ao ostracismo.

Sem ousar estabelecer parâmetros comparativos, Pacheco Pereira estará, estilisticamente, mais próxima de um Ernest Hemingway do que de um William Faulkner. Ambos mantiveram estreita ligação, como autores de contos (‘The Killers’)/novelas (‘To Have and Have Not’), o primeiro, de argumentos (para filmes de Howard Hawks), o segundo, ao cinema policial. E ela, enquanto cinéfila, assume ser   admiradora de um dos celebrados expoentes do gênero, ‘The Big Sleep’, de Hawks, co-roteirizado por Faulkner, a partir da novela de Chandler, que confirmou a epifania de Lauren Bacall..

Em coerência, nas páginas de ‘Alice…’ incutiu intertextualidades com o cinema, mesmo antes das “hostilidades” da intriga começarem. Aludo a um dos momentos mais (in)tensos, embora um tanto descontextualizado, em que se encena o remake de uma sequência crucial de um filme de Bryan Forbes, que gera um nevrálgico anticlímax.

Ao longo de todo o texto, seu estilo fluente, por norma escorreito, donairoso, mostra-se sagaz no plano da narração, alcançando um apreciável nível de eficácia. O registro denota, igualmente, uma buliçosa alacridade nos domínios da descrição. Um  dos trechos mais aromáticos de toda a narrativa será a descrição do jardim das

maravillhas, na casa de Alice, um recanto paradisíaco, de vicejante “verde e rosa”, devassado por borboletas iridescentes. Signo que pode ser descodificado como um símbolo totêmico da protagonista.

Quem aparentado esteja com publicações anteriores não se surpreenderá com a pujança (e)fabulatória, que não se inibe de questionar estereótipos. As personagens principais

–em especial a estóica heroína- são convincentes, alardeiam envergadura psicológica/sentimental e pulsão dramática q.b..  Atributos bem configurados na poética declaração de amor de Alice.

Escondendo cartas na manga

Capta-se, sente-se, na edição do texto, um ritmo envolvente, por vezes trepidante, sem óbvias falhas de racord, dosando e adensando o suspense, instalando um pathos dramático capaz de nos sensibilizar. Dotada da argúcia do jogador de carteado, sabe esconder  cartas na manga do vestido, malogrando as expectativas do leitor. O mau da fita será uma personagem de que eu nunca desconfiara, por exemplo. Um ás bem ocultado.

Em  ‘Alice…’ o modus operandi  adotado indicia ser suscetível de cativar e agarrar  até quem mais rotinado esteja (e exigente seja) na leitura desta modalidade de desventurs.  Para esse desiderato são fortes aliados a

concepção ideal do projeto novelesco, a concatenação do material ficcional e a elasticidade da sua execução formal.

O enredo –e suas peripécias-  é, de um  modo geral, entretecido com assinalável dinamismo, denotando um satisfatório domínio das técnicas e “truques” que são apanágio  das narrativas de ação, em que Eros e Thanatos duelam fatal e tragicamente.

Uma das ilações proporcionadas pela leitura sublinhará a

destreza com que Pacheco Pereira concretiza seu plano de construção diegética. Em regra, a narrativa decorre sob os auspícios de um fluida diacronia que, contudo, se vê sacudida por uma bem-vinda turbulência. Um exemplo: no final do cap. 28, uma personagem vai abrir e ler uma carta.

Porém, o narrador sustém a curiosidade do leitor sobre o

conteúdo, só a satisfazendo capítulos adiante.

Realce-se a pertinência, com acentuada densidade emocional, de algumas analepses, nomeadamente as que colocam no proscénio do drama, reverberações memoriais da valida donzela e do seu fiel e dedicado paladino.

Acredito não estar cometendo um spoiler  se perspetivar

que este romance culmina numa prolepse que enseja o desenho de uma feitura poieticamente apoteótica.

O procurador literário instruído por BPP muda o registro prosado dominante, concebendo uma textualidade afeita aos primores de uma sutil prosa poética. Lendo embevecido o apogeu, me sinto gratificado. E ambos são perdoados por não me terem proporcionado o the end imaginado para este romance que irá além de uma história de amor, de crime, de vingança, de memória.

A virtude está (mesmo) no meio

A este ‘Alice…’ eu o memorizarei como um tríptico literário, ou ele não abarcasse um prólogo, duas partes (I e II) e um epílogo. E, acatando as regras do jogo pictórico, a virtude pulsa em pletora no painel central, onde todo os sucessos dramáticos se estampam. Painel que no caso da opus em apreço, se impõe ainda mais virtuoso, ao limite de conseguir (trans)tornar o Prólogo e o Epílogo (em) segmentos  assumidamente laterais. Afinal, ambos sujeitam-se a ser obnubilados pela fulgurância irradiada dessa centralidade.

Devo revelar que só li o Prólogo após ter alcançado o “finalmente”. Uma atitude preventiva. E sensata. Evitei assim ser condicionado pela mensagem de um texto enxuto, redigido segundo o atilado figurino de um/uma publicista, porém em demasia explicativo e (auto)justificativo, ameaçando contaminar minhas sensações e ilações sobre os eventos prometidos no painel axial. Um vício típico de (quae) todos os prolegômenos.

O Epílogo age, enfim, como um apêndice literariamente inócuo, não acrescentando valor pertinente ao entrecho.

Malgrado tais senões, a bela persevera sendo aliciante. Enfatize-se, por bom fim, que seu epicentro povoa-se de ótimas vibrações  ficcionais, bafejadas pela justa medida, pelo justo equilíbrio do cânone helênico. O que torna ‘Alice e os Abutres’ uma aventura muito mais aliceante.

* ‘Alice e os Abutres’, de Beatriz Pacheco Pereira, é um romance ilustrado, de 189 pp, edição Âncora Editora, Lisboa, 2021. Integra ilustrações de obras pictóricas de Antónia Gomes e Helena Leão e escultóricas de Beatriz Pacheco Pereira.

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Danyel Guerra (aka Dannj Guerra) nasceu no Rio de Janeiro, Brasil. Tem uma licenciatura em História pela FLUP. E tem-se dedicado ao estudo da História do Cinema. Após ter lecionado História no Ensino Secundário, transitou para o Jornalismo, trabalhando como repórter e redator efetivo (Carteira Profissional nº 803) nos diários Notícias da Tarde, Jornal de Notícias e Correio da Manhã. É colaborador regular da Revista Athena.

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