“Existe no Universo, um ponto, um sítio privilegiado,
de onde todo o Universo se desvenda”
Louis Pauwels /Jacques Bergier
(Work in Progress)
Strategia del Ragno. Devo ao Cinema a boa ventura de, numa morna tarde de primavera, me ter entreaberto a porta da mansão literária de um escritor de sobrenome Borges. E com uma senha codificada em língua italiana.
Atento ao letreiro/genérico do filme supremo de Bernardo Bertolucci, datado de 1970, reparei que o soggetto partira de um conto de um autor, para mim, de todo ignoto. Consultando, curioso, a ficha técnica da fita, verifiquei que a narrativa tem por título Tema del traidor y del héroe, a terceira da seção Artificios do livro Ficciones, editado em 1944.(1)
Na época, eu ainda não tivera acesso a uma preciosa informação que só chegaria ao meu conhecimento ao ler Borges en/y/sobre Cine, de Edgardo Cozarinsky. Nesse ensaio, ele dá sustento a intuição de JLB de que o conto, gizado sob a imagem tutelar de Chesterton, de Leibniz e da tragédia Julius Caesar, de Shakespeare, nasceu “condenado” para ser adaptado ao Cinemarte.
Breves anos passados, cursando História Universal da Infâmia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, meu colega José Carlos Tinoco, desconhecendo de todo minha atração pelas escrituras do porteño, sugeriu a leitura de um intrigante livro. Intitulava-se ele Le Matin des Magiciens/O Despertar dos Mágicos, da dupla Louis Pauwels e Jacques Bergier, que os autores soberanamente definiram como uma “introdução ao realismo fantástico”. Passando das palavras a ação direta, Tinoco fez uma rápida incursão na sua profusa biblioteca e regressou impante, exibindo o volume de 550 páginas. Como de costume, à exemplo de quem obedece a um ritual propiciatório, abri ao acaso o book e um ensaio refulgente sobre o Aleph borgeano se transfigurou ante meus olhos ofuscados.
“A verdade não penetra num entendimento rebelde. Se no Aleph estão todos os lugares da Terra, aí estarão todas as luminárias, todas as lamparinas, todos os veios de luz.”
As perplexidades do homo sapiens sapiens borgeanus
Em Buenos Aires, no ano de 1949, Jorge Luís Borges publica El Aleph, uma coletânea de estórias de curta linhagem métrica, mas de subida elevação literartística, em que reflete, armado de seu implagiável pendor mundividente, sobre a imortalidade, a finitude, a posteridade, o tempo, a eternidade, o amor, a morte, a verdade, a mentira, o cinismo e o estoicismo, sabiamente entendido este último binômio na sua helênica acepção.
As estórias enfatizam um somatório de preocupações existenciais e existencialistas inerente às condições e às circunstâncias, às causas e às consequências do devir humano, demasiado humano, que poderiam ser classificadas sob a designação de perplexidades do homo sapiens sapiens. Problemáticas que o homo sapiens sapiens borgeanus exponencia de modo literariamente superlativo.
O texto, por assim dizer, epônimo do livro, intitula-se El Aleph e foi previamente dado a estampa em 1945 na revista argentina Sur. Com ele e através dele, manejando-o como um aríete, JLB entreabre uma das portas da percepção, adentrando no território mirabolante do realismo mágico.
A narrativa se desenrola como um causo irônico-cínico-filosófico, relatado com as veleidades do realmente acontecido, em que o protagonista é um pontículo de luz que, supõe-se, contém todos os pontos do Universo infinito e, matematicamente, transfinito.
Num sentido imediatamente denotativo, o signo “aleph” –lê-se “álef”- é uma alusão ao “a”, a primeira letra dos alfabetos dos idiomas semíticos/da língua sagrada, correspondente ao “alpha” do alfabeto grego e ao “a” do alfabeto latino.
“Na parte inferior da escada, para o lado direito, vi uma pequena esfera de cor tornesol, de um fulgor quase intolerável.(…) O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas estava ali o espaço cósmico sem diminuição de tamanho.”
Alegoria da Televisão?
E sem ousar o desdouro de outras aliciantes, prováveis e pertinentes interpretações, na época, alguns críticos, ensaístas e leitores arriscaram que o Aleph alojado no casarão da Rua Garay, na capital argentina, poderia ser descodificado como uma alegoria da Televisão, medium, à época, ainda imberbe e neófito, mas que, em escassos anos, se tornaria vorazmente hegemônico e mediaticamente prepotente, viciante e vicioso.(2)
Uma tese “impertinente” a que declino em aderir por me (a)parecer nimbada de um óbvio ululante, demasiado ululante, o que não abonaria mesmo nada os dotes prescientes do fabulador, naquela que classifico como sua magnum opus.
O curso das décadas tenderia a conferir credível coerência a outra especulação, com foros de inusitado, segundo a qual o contista teria articulado um oráculo fadado para ser decifrado mais adiante, em período de tempo finissecular.
De um porão esconso para a net luminosidade
Na minha interpretação, mergulhado, imerso na vertigem da sua fabulação clarividente, Borges terá premonizado a emergência da era da híper/intertextualidade internetiva/interativa, proporcionada pelo, suposto admirável, mundo novo das cibertecnologias. A ponto da Televisão e outros domínios dos mass media estarem expostos, sujeitos ao risco de se tornarem meios, se não superados e obsoletos, manifestamente secundarizáveis.
Hoje, o Aleph já não tremula no porão do sobrado da excelsa Beatriz Viterbo, entretanto demolido, onde residia seu eminente “dono”, o poetastro Carlos Argentino Danerí. Primo de Beatriz, ele não passava de um funcionário “subalterno de uma biblioteca ilegível dos arredores de Sur”.
O pontículo configurou-se, em tons de iridescentes revelações, diante da visão estupefata do narrador, multivisão depurada com as texturas da alta definição (HD) tridimensional (3D) e subitamente dotada com o dom da ubiquidade e da polilocação.
Atualmente, na dialética da unidade na multiplicidade, que tece e entretece sucessivas teias/redes de informação /desinformação/formação/deformação, o Aleph será um veículo propulsor, nos locomovendo para uma outra realidade. Uma realidade virtual, alternativa e alternetiva sim, mas magicamente ubíqua.
A (inter)net é, assim, cada vez mais, uma corporização virtuosa/viciosa das poli/multivalências alephianas, um volumoso dicionário, uma copiosa enciclopédia, uma divina biblioteca, o universo do conhecimento total e irrestrito, o avatar da onisciente, onipresente, onipotente sociedade da informação, em que o homo sapiens sapiens ousa a audácia de (tentar) se transmutar num homo sapiens sapiens deus.
No momento em que debuxo estas linhas, quiçá minadas de estultícia, tenho diversas janelas configuradas no rodapé do ecrã do meu PC portátil. Da primeira avisto um texto work in progress/process. Da seguinte, visualizo a caixa postal da conta de email, de outra um dicionário, de outra uma ferramenta de busca, de outra a timeline da conta do Facebook, de outra uma estação de rádio, de outra uma canal de televisão, de outra ainda um vídeo alojado no YouTube. De mais uma outra ainda, visiono um filme em dvd. Solerte internauta, estou ao leme da nave estelar, sentado num banco de jardim.
Hoje, contudo, o frondoso jardim das delícias se alonga no World Wide Web, o sistema hipertextual agilizável através da Internet. É nele, a partir dele, para ele que todos os caminhos se bifurcam em sucessivos ramos(links/hiperligações) da árvore do Conhecimento.
Através de uma miríade de ecrãs em múltiplas plataformas, as portas e as janelas da percepção podem, assim, ser abertas, escancaradas para todos os pontos do espectro electrónico/ virtual/digital, até o mais longínquo recanto do espaço sideral/ intergaláctico, até a mais profunda das abissais oceânicas.
Recorde-se, a vol d’oiseau, que a net indexada pelos motores de busca convencionais, a designada surface web, corresponde apenas a cerca de 15% da Web/WWW. Assoma, simplesmente, como a ponta de um iceberg submerso, oculto, dissimulado, que se aprofunda na deep net, a abissal under net, abrangendo os domínios dantescos da dark net, hirsuta e labiríntica floresta d’ enganos, como poderia assinalar Gil Vicente.
Um vade mecum na palma da mão
Estou persuadido de que não corro o risco de estragar o prazeroso efeito da leitura do conto, se antecipar que o Aleph da casa da Rua Garay não passa de um simulacro revestido de ouropel. Revele-se ser o narrador, ele mesmo, a apontar a suspeitada falsificação num post scriptum. Porém, ele otimiza: “Eu creio que há outro Aleph”. “Existe esse Aleph no íntimo de uma pedra?”, indaga, denunciando ambígua simulação, apanágio de quem conhece a resposta certa e precisa.
Continuando a rezar o Credo borgeano, eu acredito que o Aleph está, no tempo que passa e nos trespassa, na palmas das nossas mãos. Uma pedra vade mecum preciosa e perniciosa, que designamos como smartphone, iPHONE, iPAD, tablet. Somando funcionalidades, app e aptidões acrescidas relativamente aos clássicos PC/MAC, essa parafernália será turbinada, já amanhã, pelo aporte da vertiginosa 5G e pelo advento do dúctil Aleph de grafeno ou, em limite, o Aleph “tatuado” na própria pele.
https://www.youtube.com/watch?v=Wgu0xY58uIw
À imagem do Aleph, cometemos a ousadia de adquirir o sagrado dom da multilocação, estamos ao mesmo tempo em todos os espaços. Indo além do infinito, o nosso devir passa a ser o transfinito. Para atingir esse zênite, seremos em breve propulsionados, como num teletransporte, pelo aperfeiçoamento avassalador da inteligência artificial (IA), da nanotecnologia e de novas maravilhas urdidas, com a minúcia de rendadas teias, pela estratégia da aranha da Ciência.
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NOTAS:
1- “Disseram-me que Bertolucci fez uma versão do ‘Tema del…’,mas nunca tive uma informação directa, pois nem sequer me deram conhecimento. Suponho que, se é de Bertolucci, deve ser uma boa versão…”, Jorge Luis Borges entrevistado por Marcos R. Barnatán, publicada no livro Conhecer Borges e a sua obra, Editora Ulissea, Lisboa, s/d, p. 97.
2- Hegemonia que começou a acentuar-se no dealbar dos anos 50, com a emergência das emissões a cores. De 1951 data, precisamente, a primeira emissão, veiculada pela CBS nos Estados Unidos da América. “Viste tudo bem, a cores?”, dispara um ansioso Danerí para o estupefato narrador, alter ego de Borges.
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Danyel Guerra (aka Danni Guerra) Faz parte do Conselho Editorial de Athena. Nasceu na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Tem uma licenciatura em História Universal da Infâmia pela FLUP. É jornalista nas horas (mal) pagas e autor literário nas horas com vagas.
Publicou os livros ‘Tomás Gonzaga-Em Busca da Musa Clio´’, ‘ Amor, Città Aperta’, ‘O Céu sobre Berlin’, ‘Excitações Klimtorianas’, ‘O Apojo das Ninfas’, ‘Oito e demy’, ‘Fernando de Barros-O Português do Cinemoda’ e ‘Os Homens da Minha Vida’.
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