VIÚVA NEGRA – Jaime Vaz Brasil

 

Uma noite, a solidão chegou contando
que saudade era banal como tristeza
e que a mesa do silêncio estava posta,
e que tudo era não mais que onde e quando.

Foi sentando, e eu fazendo que não via.
Ela, frase que emendava em outra, quase
desenhou na minha pele o seu retrato
que assinei, mesmo dizendo: eu não devia…

Na estante do meu tempo, vi as teias
que ela fez – bem devagar – sem que eu notasse
quase aranha imóvel quieta, na espera,
e eu um livro sem achar quem abra e leia.

Devagar ela vestiu um verso triste
e dançando em minha cama tão vazia
fez que vida, coisa boa e tão alheia,
se agrandasse e viesse a mim, com dedo em riste.

E me vendo assim, menor, ela certeira
me avisou com um sorriso: – Eu já sou tua.
Se pôs nua e voejante pelo quarto
e nós dois fomos um só a noite inteira.

Desejei que ela se fosse, e bem distante
De manhã, no corredor, deixou as malas.
Na partida me encarou tão docemente:
– Voltarei à noite, amor. Talvez bem antes…

♦♦♦

Jaime Vaz Brasil – Poeta gaúcho, com 7 livros publicados e vários prêmios, dentre os quais: Açorianos, Felipe d’Oliveira e Casa de Las Americas (finalista). Atua também como compositor, tendo vários poemas musicados e interpretados por vários parceiros, dentre os quais Ricardo Freire, Flávio Brasil, Zé Alexandre Gomes, Nilton Júnior, Vitor Ramil e Pery Souza.

SERVENTIA – por Jaime Vaz Brasil

Navio de carga Galant Lady

Uma grande rebelião
sem causa e também sem lema
não leva ninguém a nada.
  Mas serve para o poema.

Um tombo dentro da alma
no arranha-céu dos dilemas
aos outros, talvez não sirva.
  Mas serve para o poema.

Um roteiro que tropece
na escadaria do tema
talvez não sirva ao aplauso.
  Mas serve para o poema

Um barco em pleno deserto
que o braço-em-gesso não rema
não vai ao cais nem às ondas.
  Mas serve para o poema.

Uma andorinha sem asas
leva no corpo um corpo um problema
e não traz verão no bico.
  Mas serve para o poema

Tudo o que dorme esquecido
bilhete, foto ou emblema,
a muitos não tem prestança.
  Mas serve para o poema.

Cada tristeza, cada riso
o sofrimento com seus escudos
a correnteza,
o silêncio, o impreciso:
Ao poema serve tudo.

♦♦♦

Jaime Vaz Brasil  Poeta gaúcho, com 7 livros públicados e vários prêmios, dentre os quais: Açorianos, Felipe d’Oliveira e Casa de Las Americas (finalista). Atua também como compositor, tendo vários poemas musicados e interpretados por vários parceiros, dentre os quais Ricardo Freire, Flávio Brasil, Zé Alexandre Gomes, Nilton Júnior, Vitor Ramil e Pery Souza.

 EDITORIAL – “Pessoa: Singularmente plural” – por Jaime Vaz Brasil

A singular pluralidade de Fernando Pessoa passa, antes de tudo, pela gênese artística de seus heterônimos. Seja como Fernando – o próprio – , Álvaro, Alberto ou Ricardo (ou ainda Bernardo e outros menores), o genial poeta criou personagens que existiram soberanos em estilo, temática, dimensão estética e qualidade. Continuar a ler ” EDITORIAL – “Pessoa: Singularmente plural” – por Jaime Vaz Brasil”

A CASA DO CORAÇÃO – por Jaime Vaz Brasil

A Casa do Coração

Na casa do coração
convivem dois inimigos

presos na árida corda
das horas, por seus umbigos.

Na casa do coração
(quem a visita pressente)

um deles pulando corda
e o outro rangendo os dentes.

Na casa do coração
um deles constrói seu nada

enquanto o outro levita
e põe flores na sacada.

Um deles grita e se arranha
e do que pode, reclama

enquanto o outro se enflora
e troca os lençóis da cama.

Um amarra seus legados
em cordames ressentidos.

O outro planta gerânios
e vai ao livros não lidos.

Um deles em cada porta
impõe trancas e cancelas

enquanto aos poucos o outro
pinta de branco as janelas.

Se o próprio Deus tem três faces
porque o homem haveria

de guardar um só conviva
em seu dentro, a cada dia?

 

♦♦♦

Jaime Vaz Brasil  Poeta gaúcho, com 7 livros públicados e vários prêmios, dentre os quais: Açorianos, Felipe d’Oliveira e Casa de Las Americas (finalista). Atua também como compositor, tendo vários poemas musicados e interpretados por vários parceiros, dentre os quais Ricardo Freire, Flávio Brasil, Zé Alexandre Gomes, Nilton Júnior, Vitor Ramil e Pery Souza.

O CICLO MÍTICO DE ÉDIPO – por Jaime Vaz Brasil

  “Aceitar a idéia do Complexo de Édipo sem compreender o mito e a peça de onde  Freud tirou seu nome é uma forma de aceitar a psicanálise sem tentar alcançar o seu mais profundo significado[1][1]”.      

Bruno Bettelheim

I. De Tântalo até Laio

A história do ciclo mítico de Édipo marca seu início com Tântalo[2][2], filho de Júpiter e da ninfa Plota, e considerado um amigo dos deuses. Conta a mitologia que, para testar-lhes a ubiqüidade, matou o próprio filho (Pélope[3][3]) e serviu-o em um banquete, com  grandes requintes, onde os deuses foram os convidados especiais[4][4]. A intenção, desta forma, seria ver se realmente os deuses possuíam clarividência plena, sabiam de tudo e estavam em todos os lugares ao mesmo tempo. O preço deste “teste” é bastante alto: o assassinato do próprio filho e a possibilidade de ser descoberto e punido. Continuar a ler “O CICLO MÍTICO DE ÉDIPO – por Jaime Vaz Brasil”

BESTIÁRIO DA SOMBRA E OUTROS POEMAS de Jaime Vaz Brasil

Bestiário da Sombra

A morte é um lobo à espreita:
imóvel, mudo e pulsante.
(No olho, o gelo põe cores
de quem domina, distante.)

A morte é serpente rasa
e nos vive – de pequenos –
destilando em nossas veias
o seu mais lento veneno.

A morte é um urso hibernante
que dorme, imóvel e quieto.
(Mas quando acorda, nos chama
para o seu sono secreto.)

A morte é um tigre faminto
na farta mesa das horas:
num salto breve, a surpresa
que nos alcança e abraça.

A morte é um rato inquieto
em seus caminhos esquivos.
(Finge que foge assustado,
mas rói o porão dos vivos.)

A morte é águia à espreita
em seu voo mais rasante.
(Com suas as garras, nos prende
e nos some, num instante.)
Ou morte é pássaro leve
ave branca, de outra escola
que nos flutua em silêncio
enquanto abre a gaiola…

♣♣♣

O Adeus

O adeus nasce do instante
entre a palavra e o passo.
(Mas cresce vazio de colo:
estreito, e com todo espaço.)

E nos ensaia seus gestos
seus rituais, suas danças.
É tão esquivo de corpo
que mão nenhuma o alcança.

O adeus nos alimenta
entre a memória e o fato.
(Mas come além do que é boca:
é a fome longe do prato.)

E vive assim, desde cedo
na pele de toda gente.
Chega descalço ou de gala,
e nos faz ave ou semente.

O adeus planta uma sombra
no que seria ou que foi.
(Por que o olho da saudade
só abre um tempo depois.)

Ele é como se, na escada,
a perna fosse o tropeço.
Por isso, prende e liberta
e é sempre fim e começo.

♣♣♣

Coração de Milonga

Enquanto o tempo desenhava
teu rosto dentro do meu corpo,
saudade em dó menor cantei mil vezes.

Falei de nós, um tanto triste
e um bandoneón chorou comigo:
amor, quando é amor, não morre nunca.
(E pra fugir de cada sombra
da solidão, que erguia os olhos,
me disfarçei na dor de um sustenido).

Amor, quem sabe um dia desses
no espelho da milonga eu veja
teu beijo renascido num segundo.

Por ti, amor, cantei o mundo
em noites longas que aprendia
a amar em sol maior
e tempestades…

Amar nas ruas, bares, campos
amar em solos de guitarra.
Amar com toda voz
e em silêncio.

Amar como só poderia
meu coração de milonga.

Quem sabe ler paixões humanas
na vida, sempre tão estranha,
se o amor as vezes fecha toda casa?
Andei por mares, vales, luas
andei em pedras, muros, portos,
amor, varei coxilhas do avesso.
(E andei no rastro do teu nome
no meu cavalo de brinquedo
colhendo a flor azul que me pedias).

Amor, quem sabe um dia desses
na alma da milonga eu veja
a face calma e breve das respostas…

Por ti amor cantei o mundo
em longas noites que aprendia
a amar em sol maior
e tempestades…

Amar nas ruas bares campos
amar em solos de guitarra.
Amar com toda a voz
e em silêncio.

Amar como só poderia
meu coração de milonga.

♦♦♦

Jaime Vaz Brasil  Poeta gaúcho, com 7 livros públicados e vários prêmios, dentre os quais: Açorianos, Felipe d’Oliveira e Casa de Las Americas (finalista). Atua também como compositor, tendo vários poemas musicados e interpretados por vários parceiros, dentre os quais Ricardo Freire, Flávio Brasil, Zé Alexandre Gomes, Nilton Júnior, Vitor Ramil e Pery Souza.

 

PEQUENOS CONTOS -II de Jaime Vaz Brasil

Guilherme Tell e Eu

Meu primo ganhou de natal um arco-e-flecha. Treinávamos pontaria em latas, galinhas e árvores. Fizemos torneios. Ele era mais velho que eu, treinava mais e vencia sempre. Aí me convenceu a colocar uma maçã na cabeça. Se eu pudesse, contava como é sentir aquele zunido da flecha vindo, aquele friagem que amolece a gente e o barulho dos ossos da cara se rebentando enquanto a flecha entra: é tudo muito rápido.

♣♣♣

Meu Primeiro Fórmula Um

A mãe pediu que eu cuidasse do mano, ela ia sair. Ele ainda bebê de carrinho e eu sempre quis ser piloto de fórmula um. Os móveis atrapalhavam muito o meu desempenho. Tanto foi que experimentei empurrar o meu carro escada abaixo. Até hoje juro que foi acidente. Continuar a ler “PEQUENOS CONTOS -II de Jaime Vaz Brasil”

PEQUENOS CONTOS DE JAIME VAZ BRASIL

© Yang Cao, sem título

A Arte de Conquistar o Mundo

O exército do país A invadiu o país B. Morreram muitas pessoas nos dois lados. O país A, apesar de enfraquecido com as baixas, venceu. Mesmo debilitado, percebeu que amedrontara o país C, e isso o impeliu a invadi-lo. Outras mortes, mas a coragem já superava qualquer dificuldade. Pôs abaixo o país D. Mal terminaram a comemoração regada a vinho, tomaram posse do país E. Até que um dia, seus poucos soldados não contiveram o exército de meia dúzia de esfomeados do país Y que, a exemplo de J. Pinto Fernandes, não estava na história, mas aproveitou a situação e tomou posse com paus, pedras e pelegaços. Continuar a ler “PEQUENOS CONTOS DE JAIME VAZ BRASIL”

UM HOMEM SÓ PELE – por Jaime Vaz Brasil

Lonely man under wind blown tree — Image by © Howard J. Winter/Corbis

Não posso pegar vento, por isso quase não saio mais de casa. Até saio, mas é direto para o trabalho. Depois, de volta e depressa.

Quando eu era pequeno, me lembro um pouco disso de não tomar vento. Mas a situação era outra. Quando conheci Alice, conheci a paixão e suas maravilhas. Os abraços de Alice, os beijos de Alice, os braços que eram dois eram quatro eram oito braços, aquele carinho e aquele modo de me levar ao céu que só ela sabia. Assim que juntei uns dinheiros, casamos. E Alice cada vez mais aquilo tudo, os beijos, o modo com que me cavalgava inclinada sobre meu corpo, agarrando com força meus braços, os gritos e gemidos que não imaginei encontrar em mulher esposa. Quando nasceu nosso filho, Alice ficou diferente. O olho dela ficou de mirada única. Continuar a ler “UM HOMEM SÓ PELE – por Jaime Vaz Brasil”

O DUELO FINAL – por Jaime Vaz Brasil

Basil Rathbone and Tyrone Power , no filme “The Mark of Zorro”, dirigido por Rouben Mamoulian

No porão, esperávamos o Águia. Atrasado, como sempre. Mas viria, cedo ou tarde. Viria com o nariz erguido, a roupa surrada e a tatuagem no braço que lhe valera o apelido. Iniciamos sem ele. Raimundo Sanchez estava com aquele casaco que o deixava ainda mais gordo, e foi desenrolando devagar a planta, desenhada em papel de embrulho. Olhamos em direção à porta: ninguém nos observava. O esquema todo abriu-se ali, clareira em mato de silêncio. Domingues, o manco, questionava os riscos de cada etapa. Quando mostrávamos a ele a fronte encurvada do seu medo, tentava se defender:

Continuar a ler “O DUELO FINAL – por Jaime Vaz Brasil”

NOSSO TIO, TENENTE ALFREDO NUNES, CONTAVA HISTÓRIAS – por Jaime Vaz Brasil

Nosso velho tio Alfredo Nunes era tenente do exército. Depois de reformado, sempre que nos visitava, dizia dos acontecidos no tempo de quartel. Gostávamos de ouvir das manobras e dos exercícios de guerra. Nosso tio Alfredo era uma espécie de herói familiar. Ficávamos ao redor dele. Depois de uma cerveja que outra, desenrolava a língua. Já conhecíamos todas as histórias que o tio Alfredo poderia contar. Fazíamos reparos quando ele tropeçava num exagero que outro. Uma história nosso velho tio Alfredo repetia mais que as outras.

— Já contei do soldado Demétrio? Continuar a ler “NOSSO TIO, TENENTE ALFREDO NUNES, CONTAVA HISTÓRIAS – por Jaime Vaz Brasil”