ADALARDUS – por Rosa Sampaio Torres

 

 Introdução

Em número anterior desta revista Athena havíamos publicado artigo dedicado ao mítico bispo Wilkarius, “o Espada Gloriosa”, que com outros três cavaleiros de muito prestígio apoiaram a descida do Imperador Carlos Magno para a Itália no século VIII, tendo em vista auxiliar o papado a enfrentar os lombardos. Nesta oportunidade havíamos sugerido a associação deste grupo de dignitários com os quatro cavaleiros lembrados pelo historiador Giovanni Cavalcanti no século XV, varões muito religiosos saídos das proximidades de Colônia, do magnífico Castelo de St. Gilles (1).

A fonte documental Franks comenta a existência deste grupo de religiosos que prestam fidelidade a Carlos Magno:

“Début décembre 771, à la mort du roi Carloman, Wilcharius archiepiscopus et Folradus capellanus cum aliis episcopis ac sacerdotibus, Warinus et Adalhardus comites cum aliis primatibus, qui fuerunt Carlomanni, se rendent à Corbeny auprès de Charlemagne pour le reconnaître comme leur souverain”.

Traduzindo o texto acima:

“No início de dezembro de 771 com a morte do rei Carlomano o arcebispo Wilcharius e o capelão Folradus com outros bispos e sacerdotes, os condes Warinus e Adalhardus, que com outros foram anteriormente apoiantes de Carlomano, dirigem-se para Corbeny frente a Carlos Magno para reconhecê-lo como seu soberano”.

A fonte Franks usa o conjunto de documentos conhecidos como Annales Laurissenses, documentos em que estes quatro cavaleiros são referidos em 771: “Os Annales Laurissenses” registram que o rei Carlos veio a “Corbonaeum villam” em 771 com “Wilcharius archiepiscopus, Folradus capellanus, Warinus et Adalhardus comitês.

Neste atual artigo pretendemos apresentar, agora, a figura também marcante de Adalardus – um desses nobres cavaleiros apoiantes de Carlos Magno, de vida religiosa igualmente extraordinária. 

 Adalardus

Adalhardus nascido c. 752 – falecido em 826 era neto de Carlos Martel – filho de Bernardo de Flandres e sua companheira Chrothais. Adalhardus acompanhou seu primo o Imperador Carlos Magno à Itália, e mais tarde será até mesmo santificado (2).

Pelo casamento em 705 de Carlos Martel com Rotrude de Hesbaye, filha de São Lewthivinus (um wido) vinha o parentesco de Adalardus. Seu primo Carlos Magno, filho de Pepino, o Breve, também neto da própria Rotrude,

A biografia de Adalhardus nos chega por um ilustre contemporâneo seu, Paschase Radbert, autor da longa obra “Vita sancti Adalhardi”, e por ela temos uma ideia da vivência deste cavaleiro da Idade Media, que participou da descida franca para a península em tempo já bem distante. Adalardus saído com cerca de vinte anos do centro franco, tendo vivido várias temporadas na Itália.

O resumo desta obra sobre sua vida, já vulgarizada, nos lembra que Adalardus seria rico herdeiro de vastas propriedades de seu pai, o velho Bernardo, na própria região de Flandres.

Como seu primo Carlos Magno, que era dez anos mais velho do que ele, teria passado também pela mesma educação e formação da elite carolíngia como exímio cavaleiro e militar – o exército franco de cavaleiros bem treinados era o mais potente na época – mas tornou-se também um cavaleiro muito erudito, falando correntemente o tedesco, o  latim e o galo-romano. Teve a proteção deste primo, tornado Rei dos Francos, depois Imperador do Ocidente, e adiante tornou-se um dos seus mais próximos conselheiros. Muito jovem participou de campanhas do rei contra  saxões e sarracenos. Assumiu algumas missões como missus dominicus.

Nomeado praefectus do palácio, Adalhardus com seu pai Bernardo participou na expedição contra os lombardos. Porém, não concordando com o repúdio da esposa de Carlos Magno, Desiderata, filha de líder lombardo Desidério, Adalardhus preferiu a vida religiosa.

No inicio desta sua nova vida religiosa, Adalardus tornou-se um eremita perto de Benevento, na Itália, em seguida monge na própria  abadia de Corbie, próximo ao centro franco, e em sua nova vida muito modesta chegou a servir como jardineiro. Mas o scriptorium foi o lugar onde Adalhardus melhor se adaptou e exerceu a técnica da escrita minúscula, tipicamente carolíngia, que prevaleceu no Ocidente. A biblioteca da abadia enriquecida por suntuosos manuscritos iluminados, que hoje são conservados nas mais famosas bibliotecas do mundo.

Adalardo com sua grande cultura teria mantido correspondência com altos dignitários carolíngios da época –  Alcuíno, abade de  S. Martinho de Tours; Angilberto, abade de Saint-Riquier; Paulo Diácono, abade de Monte Cassino, e Eginhardo, conselheiro de Carlos Magno.

Quando Alcuíno se retirou, Adalardus tornou-se um dos primeiros conselheiros de Carlos Magno.

Em 781, possivelmente necessitando de sua experiência Carlos Magno o nomeia para Regente na Itália em nome de seu filho Pepino, então com apenas quatro anos de idade. E, em 796, Adalardo tornara-se por fim o conselheiro do próprio de Pepino, já então Rei da Itália. Até 805, Adalardo divide-se entre a vida religiosa em Corbie e a cidade de Pávia.

Porém, com a morte precoce de Pepino I, Carlos Magno ainda mais uma vez nomeou Adalardus em 812 tutor do muito jovem neto, Bernardo da Itália (797 – 818), filho do falecido rei Pepino.

Com esta nova incumbência Adalardus irá acompanhar, agora, a tragédia da descendência de Carlos Magno, tragédia que marcará também seu próprio fim de vida.

Após a morte de Carlos Magno em 814, este jovem neto Bernardo foi mandado cegar por seu tio, Louis o Pio, herdeiro de Carlo Magno, como castigo de traição em episódio controvertido. Não sabemos em que medida Adalardus também esteve envolvido neste episódio que resultou, também, em sua própria punição – na ocasião desprestigiado com seu irmão Walla, ambos sofrendo prisões monásticas.

O episódio da punição do muito jovem Bernardo, rei da Itália, até hoje é controvertido. O jovem rei Bernardo, neto de Carlos Magno, nascido em Milão (n. 797 – f. 818) foi tido pelo lado de sua mãe como ilegítimo, e assim teve ameaçado seu poder na Itália por elementos na corte, que teriam desejado sua saída para tomar poder na Itália.  Tentando prevenir um ataque do rei Luis, o Pio, Bernardo teria preparado forças para um possível revide. O imperador Luiz já sob influência de sua esposa Emengada, oriunda da família de Hesbaye, possivelmente desejosa de manter o poder na Itália para seus filhos e sua própria família. Entretanto, mesmo Emengarda tendo intercedido em favor e pela vida de Bernardo, este foi tido como traidor. Não foi morto, mas cegado – morrendo dos ferimentos logo em seguida, em 818 – e assim sua descendência afastada do poder na Itália. O Imperador carolíngio, posteriormente, com grande sentimento de culpa por sua morte (3).

Somente em 822 Luiz, O Pio, liberou Adalardus e seu meio-irmão Walla de suas prisões monásticas e reconsiderou sua atitude, colocando Walla numa posição de poder na corte de seu filho Lotário e Adalardus em sua própria casa.

Reconsiderado publicamente, Adalardus chegou a escrever os estatutos da abadia de Corbie – “Statuta antiqua abbatiae sancti Petri Corbeiensis” – estatutos que teriam servido de modelo para outras abadias. Morreu em 826, aos de 75 anos.

O seu meio irmão Walla sucedeu-o como abade de Corbie.

Adalardus foi canonizado em 1026.

Conclusão    

Em virtude deste episódio em que o jovem Bernardo foi cegado, a linha dinásticas do velho Bernhadt (Urso Grande), pai de Adalhardus, dinastia bernardenga, sofreu na Itália alterações significativas. Assim sendo, custamos a conseguir encontrá-la e mesmo retomá-la.

Já ao fim deste atual trabalho, tivemos ainda notícia que Bernhard Von Franken (n. depois de 753 – f. após 821), teria sido também filho do velho Bernardo de Flandres, de um outro casamento com Gundelinda de Alsácia – meio-irmão, portanto, de Adalhardus, e teria também descido com o pai e o meio–irmão para a península.  Bernhard Von Franken é citado historicamente como monge no mosteiro de Corbie em 801, e pode ter sido durante um certo período também desprestigiado como os seus meios-irmãos (4).

Segundo nossas pesquisas, mesmo com as punições sofridas pelos descendentes do velho Bernhadt, em gerações seguintes esta linha dinástica na Itália teria deixado descendentes berardeschi ou berardenga em Castel Nuovo Berardenga, próximo de Siena provavelmente pela casa de origem francesa da linhagem de São Guilherme de Toulouse.  Notório que o clã dos berardenga da cidade de Castel Nuovo Berardenga fosse oriundo de um ramo franco sálio, de linha francesa – por um Wuinigi, legado do Imperador Luís, o Pio, enviado à península em 865, por nós identificado historicamente (5).

Lembramos que o jovem neto de Carlos Magno, Bernardo rei da Itália, jovem filho de Pepino I que fora cegado por Luiz o Pio, muito cedo havia sido casado na família deste cavaleiro, depois santo, Guilherme de Toulouse.      Bernardo em 813 fora casado com Cunigunda de Toulouse, de quem teve Pepino de Vermandois (815 – c. 878) e um neto Bernardo de Vermandois que, entretanto, não teria voltado á Itália (6).

Esta linha descendente do cavaleiro e santo Guilherme de Toulouse (Angoulême–Taillefer) teria, portanto, colocado descendentes franceses na Toscana, nas proximidades de Siena – a chamada Casa dos Berardenghi. Informações locais de famílias italianas indicam que um Bernardo, fruto de casamento com widos franceses nos anos 867 e 882 fundou o monastério Salvatore Fontebuona (Abazia dela Berardenga). Este clã dos berardenga ainda hoje é rememorado na cidade de Castel Nuovo Berardenga, tido como a origem também das famílias toscanas Scialenghi, Ardenghi, Manenti e outras.

Também membros da família Cavalcanti em suas listas genealógicas iniciais (c.1045) registram o nome Bernado, que aparentemente lhes chega pelos Adimari. A este respeito ver continuação desta linha dinástica no trabalho da autora “os Berardenga” (7). 

Notas:

(1) Revista Athena, ed. maio de 2021, “Os quatro apoiantes de Carlos Magno”. Para comprovação das informações prestadas pelo historiador Giovanni Cavalcanti do sec. XV sobre este grupo de religiosos, consultar nossos artigos: “As tradições de origem família Cavalcanti e dos Monaldeschi no reino franco”, publicado na revista InComunidade ed. 57, junho de 2017; “A descida de Carlos Magno para a península italiana no sec.VIII e a colaboração da dinastia franco-borgonhesa dos Condes de Hesbaye (Wido)” editado no nosso blog http://rosasampaiotorre.blogspot.com/

(2) Adal(h)ardus, abbas Corbeiensis – nome franconizado como Adelardo, ou Adalardo, ainda Adelardo de Corbie – nascido por volta de 752 em Huise (na época Uscia) perto de Oudenaarde, em Flandres. Morreu em 2 de janeiro de 826 – abade e conde de Corbie. Adalhardus neto de Carlos Martel era  filho de Bernardo de Flandres, dux de Saint Quentin, e sua companheira Chrothais.

(3) A enciclopédia Wikipédia por variadas fontes informa que Bernardo foi filho, não se sabe se de casamento legitimo ou ilegítimo do rei Pepino I da Itália (filho do imperador Carlos Magno) com  Berta de Toulouse – esta filha de uma filha de Guilherme I de Toulouse e de Guiburga de Hornbach. Guiburga de linhagem também proveniente dos wido de Hesbaye, por Lampert de Hornbach.

O jovem Bernardo foi casado em 813 com Cunigunda de Toulouse, de quem teve Pepino de Vermandois (815– c. 878), conde de Vermandois, casado com Rothaeide de Bobbio (818 -?), filha de Teodorico de Nibelung. Seu neto, Bernardo de Vermandois.

Guibour ou Witburg, Guiboar, Cuningunda de Gellone, c.760 – f. 804 (nascida Von Hornbach) era filha de Lampert (Lando), da linha wido, que  por casamento conde de Hornbach e da Bretanha (n. na Bretagne 720-785. Guibour pela fonte Geni, nascida em 735, França – falecida c. 783), foi casada com Guilherme, “Saint Guillaume”, Gellone de Toulouse.    

(4) Pela fonte Geni, Bernardt Von Frank, nascido (730-784 – 821), filho de um segundo casamento do velho Bernardt de Flandres (duc de Saint Quentin); era meio–irmão de Adalardo e outros – foi pai  de Eckbert Von Merseburg. Preferimos indicar a data mais próxima do nascimento deste Bernardo depois de 753, data posterior ao nascimento de seu meio–irmão Adalardo, c.752, e depois de seu irmão Valla, mais velho.

(5) Torres, Rosa Sampaio – artigo “Os Bernardenga” editado no blog http://rosasampaiotorres.blogspot.com/ e “As linhas francas descidas para a Itália com Carlos Magno”, inédito.

(6) Winigisum ou Guinigi – nobre guerreiro descido com Carlos Magno, documentado em 789, falecido em 822 – referido historicamente como franco sálio. Possivelmente oriundo da dinastia bivinide estabelecida em Viena e Paris. Por informações históricas teria descido na “entourage” de Carlos Magno junto com o lombardo aliado, Hildebrando, tendo substituído o próprio Hildebrando como dux em Spoleto no ano de 789 (789-822) .Chegou a intervir na época em favor do papa Leão III (799). Winigisium morreu em um convento, acreditamos pela  queda em desgraça do jovem rei Bernardo, filho de Pepino e seu protetor em 814.   Winigisium constatamos irmão de Suzane de Paris, nascida e falecida no Sena, Paris, filha do Bigó de Toulouse e Septimânia, Begon de Paris (c. 770-816) e de Alpais de Paris (c. 793 – )  filha ilegítima do Imperador,  Luiz o Pio, com Teodolinda de Sens, ainda  irmã de Engeltruda de Paris. Susane casada com Wulfhard, conde d’Argengau e Flavigny – ele ascendência wido de Hesbaye e da dinastia uldarich.  Susanne teria sido, como constatamos, nora de Uldarich II – este de linhagem originária wido/udaricher e a descendência dela, corrigindo a linhagem, constatamos de dinastia winiges e berardenga na Toscana – ancestrais comprovadamente,por documento  de um dos ramos da família Cavalcanti no ano 1200. Ver nosso trabalho “Os Bernardenga”, publicado no blog http://rosasampaiotorres.blogspot.com/

Seu descendente e sobrinho do mesmo nome, Winingo, no século seguinte foi ainda considerado franco de lei sálica, mas por seu pai já de uma linha Hesbaye/udalricher.  Este mais jovem Winingo foi também casado com uma neta de S. Guilhermo, uma guilhermida, e teria deixado na Toscana descendentes que retomaram a chamada dinastia bernardenga na Itália –  linha  que lembramos havia sido interrompida com o punição do rei jovem rei Bernardo, cegado por tentativa de sublevação contra Luiz o Pio. Por documento no século XIII é registrada a presença de um ramo Cavalcanti em Ascianno, na Toscana, com este prenome GuinizingoGuinizingo dei Cavalcanti. Ver nosso trabalho ”As propriedades de Antigos Cavalcanti” no nosso blog. Família ainda atuante de banqueiros em Lucca ainda no sec. XIV, Winingi ou Guiningi.

Fonte local de Castel Nuovo Berardenga, região que apresenta restos de construções muito antigas, acrescenta: “Il nome deriva dalla Contea dei Berardenghi, che prese il nome da uno dei figli del conte Wuinigi (Giunigi, Guido) di Ranieri, [filho de Ardingo di Ranieri?] appartenente alla popolazione dei Franchi Salii, sceso in Italia in qualità di Legato dell’Imperatore Ludovico il Pio (865), poi divenuto Governatore politico di Siena (867881) e di Roselle (868). Egli si chiamava Berardo e questo nome, ripetuto costantemente dai discendenti, diede poi il nome anche al território”.

Informações sobre a “Abadia da Berardega’ na Toscana  acrescentam: ”ABAZIA DELLA BERARDENGA in Val d’Ombrone, presso un antico castello denominato il Monastero sul torrente Coggia, nella Comunità, Giurisdizione e tre miglia toscane a levante di Castelnuovo Berardenga, nel popolo dei SS. Jacopo e Cristoforo a Monastero, Diocesi di Arezzo, Compartimento di Siena. – Dedicata a S. Salvatore e a S. Alessandro in luogo detto a Fontebuona, fu edificata e ampiamente dotata sotto gli anni 867 e 882 da Wuinigi conte di Siena di origine francese, autore delle illustri prosapie dei Scialenghi, degli Ardenghi, dei Manenti, dei Berardenghi ec. Destinata in origine per le donne, cui doveva presedere una delle famiglie del fondatore, passò ai monaci Camaldolensi, ai quali fu rassegnata nel 1003 dai pronipoti del conte Wuinigi che ne aumentarono le entrate, confermate dalla contessa Beatrice duchessa di Toscana, nel 1070, e da vari sovrani e pontefici, segnatamente rapporto alla giurisdizione di molte Page 1/2 Dizionario Geografico, Fisico e Storico della Toscana (E. Repetti) http://193.205.4.99/repetti/ chiese di quel Contado”.

(7) Torres, Rosa Sampaio – os artigos: “Os Bernardenga” e “As propriedades de Antigos Cavalcanti” editados  no blog http://rosasampaiotorres.blogspot.com/ e ainda “As linhas francas descidas para a Itália com Carlos Magno”, este inédito.

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Rosa Maria Sampaio Torres – pesquisadora em História (PUC-Rio), é também graduada em Estudos Sociais e pós-graduada em Ciências Políticas. Aluna do filósofo brasileiro Carlos Henrique Escobar acabou por desenvolver, também, seus dotes artísticos – especialmente como poeta, autora do livro “Bendita Palavra”. Já reconhecida como ensaísta, é autora de inúmeros artigos históricos sobre a família Cavalcanti, da qual descende, e agora sobre o poeta Guido Cavalcanti.