SOLICITAÇÃO DE AMIZADE DE LOURDES BALLET – por Fernando Corona

 

Olavo entrou em seu apartamento e parou no meio da pequena sala para respirar profundamente, já que tinha por hábito não usar o elevador. Estava ofegante por ter subido dois lances de escada e também respirava fundo porque ao entrar sentira que das janelas escancaradas vinham uns ares de outono já com cara de inverno e isto para ele era sempre um cerrar de olhos, um transportar-se para tantos e tantos portos de sua larga vida que agora completava setenta anos.

Chegara aos setenta, esta marca que tanto o amedrontava, e pensou que sempre tivera setenta, já que quase nada havia mudado, com exceção do joelho emperrado e dos cabelos que se foram, mas pensou também que seria melhor não brincar muito com isto e fechar logo as janelas, pois junho em Porto Alegre é sempre travesso e uma gripe aos setenta não é a mesma coisa que uma gripe aos quinze.

Esfregando o frio das mãos, depois de estancar o vento, Olavo observou o silêncio daquele apartamento vazio, vazio de Emma que já se fora – e tinha tantas razões para isto – fazia mais de quatro anos e ele desde então decidira não mais ligar-se a ninguém, pois foram tantos casamentos e separações, alegrias e dores, que agora seria um bom momento de ficar só para, quem sabe, descobrir alguns novos sentidos ou encontrar algumas peças importantes que ficaram para trás e estariam faltando ao quebra-cabeças de sua existência, estes setenta que passaram estupidamente com a rapidez de um isqueiro que acende um cigarro, uma fagulha tola e mal aproveitada, uma luz que não se agarra ou um pássaro que se afasta em direção ao horizonte.

Imóvel, Olavo viu que já era tarde no relógio que ficava em cima do piano e sentiu que o álcool ainda corria frescamente por suas veias pois havia derrubado várias cervejas junto a seus filhos e alguns amigos e aquele espumante com o qual brindaram no final foi o bastante para lhe dar coragem de dizer algumas poucas palavras e quando voltaram a sentar viu que havia gente secando lágrimas bêbadas e beliscando os restos das pizzas ou tentando chamar a atenção dos garçons como se isto pudesse esconder ou afastar aquela névoa de melancolia que ficara no ar, pois Olavo discorrera um pouco sobre o relógio que teima em não parar jamais, este mesmo relógio que desde cima do velho e empoeirado piano agora lhe fita e lhe diz que já é tarde, mas tarde para o que mesmo?

Se tivesse dez anos menos, Olavo levaria sua embriaguez para passear pela Cidade Baixa, mas a vida vai chegando num ponto que é assim mesmo, uma série de pequenas renúncias e despedidas de hábitos e quereres. De qualquer forma não encontraria mesmo ninguém conhecido em meio às camadas e camadas de tantas outras gerações que se sobrepõem sem rosto e que parecem até falar outro idioma, então melhor é baixar o facho e resignar-se em não sair, e uma boa dose de conhaque na frente do computador não estaria de todo mal, quem sabe entrar na rede, ver o quê que há por aí, talvez Beluzzi esteja ainda acordado e navegando em busca de clássicos como faz sempre e poderiam trocar algumas palavras e isto seria bom para encerrar a noite porque Beluzzi sempre tem algo nobre para dizer ou contar.

O programa estava aberto e Olavo notou, com decepção, que havia apenas uma notificação e depois de um grande gole de conhaque, clicou, e ali estava uma solicitação de amizade no nome de Lourdes Ballet e isto lhe jogou um gosto de oliva na boca e fez de sua alma um redemoinho que voltou no tempo 40 anos e pousou numa noite quente de agosto, em Madrid, quando depois de tocar Fotografia de Jobim, Olavo deixou o piano e no balcão viu o garçom aproximar-se e falar-lhe discretamente que “hay dos chicas que quieren invitarte a una copa” e então, um tanto curioso, foi sentar-se com as meninas, que se apresentaram como duas irmãs que viviam na Cataluña e estavam de férias em Madrid e disseram ter achado a música sublime e que Olavo pedisse o drink que quisesse, pois era merecedor, por ter tão grande sensibilidade ao tocar o piano e Olavo não conseguiu tirar os olhos de uma delas que em silêncio ouvia a irmã tomar a iniciativa da conversa e apenas respondia, como que hipnotizada, ao olhar do pianista, que para romper um pouco aquela cadeia de eletricidade lhes perguntou os nomes e sem prestar atenção à resposta, chamou o garçom para pedir “una caña, por favor”, pois esta era a bebida que elas tomavam, e ele pode então suspirar, relaxar e ouvir de sua preferida que elas haviam estado ali na noite anterior, e tinham gostado tanto que resolveram voltar e ele sorveu aquele espanhol com acento catalão que dava a sensação de que as palavras da menina saltavam de sua boca e flutuavam pelo ar como bolhas cristalinas e a voz era suave e segura, e a ele veio a lembrança de um minueto de Bach cheio de ornamentos, e então a irmã tirou da bolsa uma Polaroid e “vamos sacar fotos”? e fez questão de bater a primeira e Olavo se postou ao lado da menina, o flash espocou e verificaram que a foto havia ficado boa, apesar de não estarem fixos na câmera e sim ainda cruzando olhares e logo a irmã chamou o garçom para lhe pedir que batesse uma dos três, e quando a lâmina saltou da máquina também recebeu a aprovação de todos.

As lembranças seguintes, no entanto, se tornaram turvas devido ao álcool e Olavo tem na memória que depois disto se despediram na Puerta del Sol e a menina lamentou terem de voltar a Barcelona na manhã seguinte e não poderem se conhecer melhor e ele seguiu no taxi, pensando que não prestara atenção ao nome dela e também que aquele olhar era uma faca cravada no peito mas nada podia fazer pois estava num bom momento com Cora que estava grávida e dentro de duas semanas voltariam ao Brasil e sua vida seria uma outra paisagem e um novo texto.

Alguns dias depois, no telefone era Marquito, com seu sotaque porteño.

– Loco! Hay uma carta para ti en el Club.

– Carta? Que carta, Marquito?

– Yo que sé! A lo mejor de aquella mina que me hablaste.

A carta tinha letras redondas, algo assim como as palavras dela, e era da mais pura delicadeza. Agradecia a ele pelos momentos bonitos e musicais que haviam passado juntos e terminava dizendo que esperava que se encontrassem um dia.

Assinado: Lourdes Ballet

Olavo a leu 3 vezes antes de coloca-la covardemente numa lixeira. Melhor esquecer. Esquecer e seguir.

E agora, ali estava ela, 40 anos depois, lhe mandando um convite para amizade na rede. Havia muitas fotos em seu perfil e Olavo foi vendo uma por uma. Claro que o tempo tinha feito suas marcas, mas aquele olhar terno e acastanhado permanecia intacto. Fotos com filhos, com netos, com irmãos, muitas fotos de viagens, Lourdes com 50 ao lado do marido talvez, Lourdes com 40, que mulher linda! Lourdes na praia, fotos antigas, Lourdes em Madrid com a irmã e assombrosamente Lourdes com Olavo no Club, cruzando miradas, e então não há como segurar as lágrimas que começam a brotar sabe-se lá de onde, coisa ridícula chorar deste jeito estas lágrimas de todo tipo e cor, lágrimas da mais profunda dor, do êxtase da alegria , lágrimas do que foi feito e do que foi relegado, lágrimas que inundam o conhaque e o salgam, lágrimas de saudades já esquecidas, lembranças perdidas que agora se transformam em fogos de artifício, rios pelos que se foram e já não voltam mais e assim foi o resto da noite do homem que toca piano que bebeu até a garrafa secar, que chorou até a ultimíssima gota e que antes de levantar da cadeira digitou na caixa de diálogos quase sem poder enxergar:

– Muchas veces me acordé de ti.

Num esforço supremo, aquele Olavo vazio e borracho conseguiu chegar tropegamente até o sofá e deitar-se de barriga para cima. Agora ria e calculava o quanto poderia pegar por seu velho Fritz Dobbert. Então, sua voz saiu alta e pastosa, com ares de praça de touros:

– Me voy a Barcelona! Yuhuuuu.

Pelas janelas pode ver que já havia um filete de manhã, e uma chuva fina avisava que seria um lindo dia feio. Se acomodou melhor, fechou os olhos e pensou: quero ter aquele olhar perto de mim neste pouco que talvez me reste. Antes de cair no sono profundo ainda murmurou:

– No tengo setenta. Tengo quince.

♣♣♣

Fernando Corona

Fernando Corona (Porto Alegre, 1958). Pianista, produtor musical e compositor e está iniciando na atividade literária. Tem uma página no Facebook e um Blog com o título de CRÔNICAS, nos quais o humor é a característica principal.