TRADUÇÃO E LEITURA DE POEMA DE EUGÉNIO DE ANDRADE – por Maria Toscano

TRADUÇÃO E LEITURA DE POEMA

DE EUGÉNIO DE ANDRADE, 

POR MARIA TOSCANO

VER CLARO
.

Toda la poesía es luminosa,
hasta
la más oscura.
El lector es el que tiene a veces,
en lugar de sol, niebla dentro de sí.
Y la niebla nunca deja ver claro.
Si regresar
otra vez y otra vez
y otra vez
a esas sílabas alumbradas
quedará ciego de tanta claridad.
Alabado sea si allí llegar.
.
Eugénio de Andrade – Prémio Camões 2001.
In “Los surcos de la sed”. Ed. Fundação Eugénio de Andrade, 2001.
Versión al castellano: Maria Toscano, Figueira da Foz, Portugal. 13 enero / 2023.

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VER CLARO
.

Toda a poesia é luminosa,
até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.
.

Eugénio de Andrade – Prémio/Premio Camões 2001.
In “Os sulcos da sede”. Ed. Fundação Eugénio de Andrade, 2001.

 

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Maria (de Fátima C.) Toscano, Doutora em Sociologia. Docente Universitária, Investigadora e Formadora. Coach e Trainer em Programação Neurolinguística.

 

 

HOMENAGEM AO POETA NICOLA MADZIROV- por Viviane Santana Paulo

 

Nicola Madzirov, poeta, editor e tradutor. https://www.poetryfoundation.org/poets/nikola-madzirov

A liberdade do não-pertencimento na

poesia de Nikola Madzirov

Em uma bela tarde, com a silhueta do vulcão Mombacho acima dos telhados das casas, na famosa Calle La Calzada, em Granada, na Nicarágua, conheci o poeta macedônio Nikola Madzirov. Na ocasião do VIII Festival Internacional de Poesia, em 2012, alguns poetas e eu tomávamos cerveja, sentados a mesa na calçada. Falamos de poesia brasileira e de outras nacionalidades, sobre ser poeta e muitas risadas ecoaram pela estreita ruela. Nikola Madzirov nasceu em 1973, em Estrúmica (a maior cidade no leste da Macedônia do Norte, perto da fronteira com a Bulgária), proveniente de uma família de refugiados das Guerras dos Balcãs. Ele conta que aos 18 anos, o colapso da Iugoslávia provocou uma mudança em seu senso de identidade – como escritor, levando-o  a reinventar-se em um país que se via como novo, mas que ainda era alimentado por tradições históricas profundamente arraigadas. No ano seguinte, Madzirov participou do Festival Internacional de Berlim e me presenteou a tradução para o alemão da coletânea de poemas Pedra Deslocada (Versetzter Stein). Assim traduzi alguns de seus poemas (do alemão para o português), publicados no Jornal Rascunho, em 01/10/2012. A revista semanal alemã Der Spiegel comparou a qualidade da poesia de Madzirov à de Tomas Tranströmer. Seus poemas foram traduzidos para mais de quarenta idiomas. Ele recebeu vários prêmios nacionais e internacionais, é editor da edição macedônia da Antologia da Poesia Mundial: Séculos XX e XXI, e um dos coordenadores do site internacional de poesia Lyrikline, com sede em Berlim, além disso, é membro do júri do maior prêmio internacional para este gênero literário, o Prêmio Griffin de Poesia, do Canadá.

Não podemos falar da poesia de Nikola Madzirov sem procurar entender um pouco os duradouros e profundos conflitos envolvendo os países dos Balcãs. Digo um pouco porque esta região é considerada uma das mais instáveis e complexas na Europa, devido à diversidade de etnias e aos conflitos bélicos que perduram há séculos. Sendo assim faço apenas um esboço, no final da entrevista, sobre a história e a literatura da Macedônia.

Nesta entrevista, cuja tradução em inglês foi publicada no site da revista literária online pan-europeia Versopolis, Madzirov fala de suas origens e de sua criação poética.  

O sangue e a poética do não-pertencimento

Nikola Madzirov

 

Diante do refinamento de uma cultura aprisionada em formas e limites que mascaram tudo,

o lirismo é uma forma bárbara cujo valor é não ser nada mais do que

sangue, sinceridade e fogo.”

(Emil M. Cioran)

Você pertence aos Balcãs e não há sangue em sua poesia…”, me perguntam com freqüência. O sangue circula na minha memória. Sempre que vejo uma árvore solitária, os traumas herdados e testemunhados da guerra me levam a pensar no cadáver de um soldado embaixo de suas raízes. Não tenho a ilusão de estar dizendo algo novo, porque tudo está presente mesmo sem ser documentado, como minerais em uma mina ainda a ser descoberta. Acredito mais em brinquedos escondidos do que nos principais segredos das guerras. Às vezes, para escrever, é preciso permanecer nesta solidão que não engendra temores e lembranças maiores do que a própria morte. A melhor maneira de recordar nosso último sonho é não olhar pela janela quando despertamos. Acredito que o desejo de (re)contar existirá enquanto houver o mistério de partir e regressar. Muito freqüentemente me sinto mais seguro quando falo em sonhos e me calo na realidade. Os críticos têm dito que a primeira coisa a lembrar sobre o ‘metafísico’ John Donne é que ele era católico, e a segunda é que ele tinha traído sua fé. Acredito ser esta uma maldição silenciosa que persegue os escritores: trair aquilo do qual pertencem no momento em que sentem que começaram a pertencer. Em uma de suas últimas entrevistas intitulada, “Sou católico fracassado, mas ainda católico”, Adam Zagajewski disse: “A procura reside no ato de procurar, não em definições fortes” (search is in searching, not in strong definitions). Na maioria das vezes eu me sinto como um nômade, mesmo sem mover a gaiola do meu corpo de uma realidade imposta para outra. Viajei e pesquisei muito por mais de vinte anos, mas minha avó costumava me dizer que ela havia viajado por vários países apenas sentada em seu velho sofá na sala. Nos Balcãs, você pode ter essas intermináveis viagens através de ideologias, reinos e novas fronteiras simplesmente sentado no sofá de sua sala.

Elizabeta Sheleva escreve que os escritores, independentemente do lugar onde vivam, são sempre seres estranhos e estão sempre destinados – com base na potência de sua inquietação criativa – a permanecer e existir como desabrigados[1]. Por um lado, desabrigado significa sentar-se na frente da lareira e sentir a força do vento, mas quando se está distante de casa, significa ler o mundo à luz do fogo.

Sinto-me seguro no interior da caverna aberta do não-pertencimento. O mistério da criação artística está no cerne da surpreendente metamorfose quando a eternidade se torna efêmera e vice-versa – quando um anjo precisa de uma máscara de oxigênio para entrar no hospital tentando assistir a um paciente moribundo ou quando uma bola chutada para o alto do telhado torna-se parte de uma constelação desconhecida. Uma metamorfose moderna está acontecendo agora – as pessoas abrem as cortinas de sua vida cotidiana e tiram a máscara para mostrar um rosto falso. Dubravka Ugrešić desmascarou a realidade atual quando disse que “os participantes do carnaval na era pré-digital usavam máscaras, hoje cada um faz o melhor que pode para mostrar seu próprio rosto”[2] Em minha infância, eu costumava escrever nas paredes do meu quarto antes mesmo de aprender sobre as letras e a imperfeição das palavras. Meus pais tinham que repintar as paredes de branco todo verão. Parece absurdo, mas essas paredes foram o primeiro palimpsesto da minha liberdade. Comecei a escrever poesia quando entendi as palavras, mas comecei a entender poesia quando aprendi sobre o silêncio. Naturalmente, isto aconteceu antes da guerra na Iugoslávia. A guerra me ajudou a entender a necessidade de falar mais alto no papel quando tudo e todos ao meu redor se tornavam mais sonoros. Sei que hoje em dia parece comovente quando se ouve dizer que um poeta usou seu sangue em vez de tinta para escrever seus últimos versos, mas na região onde vivo algumas pessoas usaram o sangue de outras pessoas para escrever novas histórias e impor mitos.

As guerras começam com a mudança dos nomes das cidades e das pontes, com a reconstrução da memória pessoal – a dura linguagem da bala vem depois. Nos Balcãs, as pessoas muitas vezes glorificam a história de forma equivocada, receiam que sua linguagem se torne história. A língua em que escrevo é falada por apenas dois milhões de habitantes que emigram todos os dias em busca de um lar seguro, colocando suas memórias nos novos espaços, mesmo antes de arrumar os móveis. Devido ao pânico causado pelo desaparecimento, muitas nações e líderes provisórios dos Balcãs voltaram-se para a história, o que lhes ofereceu um espaço e а fogueira em torno da qual podem contar histórias assustadoras. A poesia foi construída através da estética do desaparecimento (como disse Paul Virilio) e se alimentou das raízes daquilo que era apenas narrado e ainda não escrito. Nos Balcãs, estávamos juntos na guerra e sozinhos na poesia. A claustrofobia tornou-se a principal filosofia de vida – onde os apartamentos possuem pequenas sacadas e tetos baixos para melhor preservar a própria insegurança. E assim, a fragmentação da memória dorme em todas as casas. Meus antepassados eram refugiados e não escreviam poesia enquanto atravessavam fronteiras e montanhas a pé, e não levavam livros quando fugiam de suas moradias, por causa do peso. Por outro lado, há tantos livros escritos sobre êxodos, que creio não caberem em todas as casas abandonadas do mundo. Nestas circunstâncias, acredito que escrever é como plantar uma semente em um vulcão adormecido.

Escrevo sobre coisas, pessoas e processos não para elogiá-los, mas para desmistificar a aurea da história que os cerca. Vivo em uma pequena cidade perto de três fronteiras – macedônia, búlgara e grega – então, atravessar uma fronteira para mim é como atravessar a rua quando os semáforos fecham. Kapka Kassabova escreveu: “As pessoas morrem atravessando fronteiras, e às vezes só de estar perto delas”[3]. Às vezes, penso que cada ruga no meu corpo é apenas um reflexo das fronteiras que atravessei. Contudo, o maior desafio foi atravessar a fronteira do tempo, a fronteira da história, uma vez que todas as guerras balcânicas começam com a conquista do passado – somente posteriormente é que se fala de territórios. Históricos e histéricos – eis uma unidade perfeitamente fatídica! Nesse sentido, eu me considero um arqueólogo ilegítimo que, ao escrever poesia ou ensaios, tenta desmistificar a mitomania herdada e todas as grandes narrativas, colocando-as numa perspectiva diferente, mais iluminada ou mais escura. Contar histórias sobre objetos esquecidos é mais importante do que as cartas e ordens assinadas pelos líderes de guerra. Certa vez, enquanto eu viajava pelo Cáucaso, parei em algumas sepulturas distantes, porque eram diferentes de todas as sepulturas que eu havia visto antes: não havia uma única lápide nos túmulos. No entanto, vi desenhos na placa de pedra horizontal que cobria a sepultura – desenhos que retratavam a vida e a morte das pessoas sepultadas embaixo da pedra. Isso é um belo exemplo de como as pessoas podem se transformar em histórias e viver através das vozes de testemunhas que nunca as conheceram enquanto estavam vivas. Uma vez escrevi que a poesia sempre esteve distante das estatísticas da popularidade convencional. Ao longo da história, ela tem tido o nível elevado de uma forma de arte cordial, mas também tem sido uma espécie de resposta punk-rock à esterilidade social ou aos suaves brandos nacionais. A poesia não é apenas leitura; a poesia é diálogo. Ornamentada ou não, a poesia possui um círculo menor de leitores, semelhantes a espelhos – com ou sem molduras, e o reflexo é igualmente limitado. A poesia está próxima do silêncio, mesmo quando é lida em um bar ao som de uma máquina de café ou em uma estação enquanto se espera por um trem atrasado. Não me incomodaria o fato dos versos serem impressos na embalagem dos saquinhos de açúcar servidos com o café. Isso poderia ser visto como uma campanha promocional. Como todas as coisas produzidas pelas poderosas indústrias, a poesia é tratada como uma mercadoria, o que não está longe de ser uma das idéias de Heidegger em A origem das obras de arte. No entanto, é a estética que move a poesia através da profundidade do tempo. Cada verso é polido pelos anos como uma rocha é polida pelo mar. Não tenho certeza do que é mais ‘representativo’ hoje: um livro de poesia colocado na caixa registradora de um supermercado ao lado das lâminas de barbear e das gomas de mascar, ou um livro de poesia, exaltando algum herói local, exposto atrás de uma vitrine empoeirada de museu. Minha infância foi moldada por um sistema ideológico no qual a poesia devia ser aprendida de cor. Foi uma tarefa árdua, em vez de um ato de memorização. Os líderes políticos são deuses contemporâneos que querem transformar a poesia em uma rotina, e os deuses e as rotinas têm um poder mortal porque passam despercebidos e são invisíveis.

Szymborska diz que a escrita é “a vingança de uma mão mortal”[4], e a elevada expressão das palavras nada mais é do que seu regresso à fonte, às fronteiras do incomunicável. Na língua macedônia, há uma palavra particular para traduzir poesia: ‘prepev’, literalmente ‘re-singing’ ou ‘new-singing’ (re-cantar, novo-cantar), ou seja, que a poesia está sendo cantada de novo, recriada. Sempre que leio um poema ‘recriado’, procuro a voz original do autor, embora saiba que isto é como procurar uma assinatura na parte inferior de um quadro. O pós-modernismo afirma que o leitor possui uma mente atenta para a continuação e a construção da história e para a poesia memorizada, mas cada vez mais sou propenso a acreditar no leitor como um des-construtor diferente, com uma consciência ativa voltada à originalidade do texto. Como tal, o leitor pode reconhecer os segredos mesmo nos versos mais específicos, e incorporar o silêncio do primordial. Uma de minhas avós era carpideira, lamentadora remunerada em funerais, ela costumava ‘re-cantar’, como diziam em minha cidade natal. Ela traduzia todo o luto silencioso em gritos de lamento, e com uma voz que calava o padre e enterrava as esperanças da família em luto, emitindo um grito cosmogênico no túmulo de uma pessoa que ela nem sequer conhecia. Muitas vezes ela me acordava pela manhã testando a força de sua voz no jardim dos fundos, invadindo os meus sonhos como uma ausência estrangeira, entrando em mim como uma chave para uma porta de uma casa em ruínas. Entendi este ritual de luto como a audibilidade da ausência, e a consciência da quietude como o único sinal de presença que se aninhava dentro de mim. Não há nada mais silencioso do que a presença de uma sombra. Todas as histórias ouvidas por mim na infância me mantiveram desperto, e em mim germinaram a semente de sua transfiguração. A flexibilidade da narração oral me purificou do medo da transitoriedade e aprofundou minha fé na transformação, livrando-me do receio de que as mariposas do tempo devorassem o texto que poderia ser desvendado sem a presença de seu autor. Na Malásia, mais especificamente na região de Kelantan, ainda é praticado um ritual transcendental chamado Mak Yong, no qual além da dança e da execução do rubab, são incluídas as vozes dos narradores falando constantemente algo novo, muitas vezes em forma de diálogos, simbolizando o encontro com o invisível, celebrando o ‘angin’ (vento) – o vento metafísico espalha as palavras através do tempo e derrama-as nas almas. Este ritual oral envolve não apenas a coragem de falar, mas também o medo diante da escrita. No entanto, a literatura como testamento para o mundo é importante para que as “palavras […] não percam seu significado” como diria Danilo Kiš[5]. Às vezes, quando escrevo, parece que as vozes do passado se movem cuidadosamente através da teia de aranha do presente procurando não rasgá-la. Escrever o verso com o qual você vive e que você reconfigura a cada nova formulação, é como esculpi-lo dolorosamente em seus ossos. Hannah Arendt, após conhecer W. H. Auden, escreveu: ‘Ele constantemente revisava seus próprios poemas, concordando com Valéry que um poema nunca é terminado, apenas abandonado'[6].

As palavras escritas são como peixes jogados no poço de uma nova realidade – seu turbilhão mantém a água limpa.

[1] Elizabeta Sheleva: ‘Otadžbina/domovina/tuđina’ (‘Fatherland/Homeland/Foreign Land’). Sarajevske sveske, no. 45/46, 2014.
[2] Dubravka Ugrešić: The Age of Skin. Open Letter, 2020.
[3] Kapka Kassabova: Border: A Journey to the Edge of Europe. Graywolf Press, 2017.
[4] From Wisława Szymborska’s poem ‘The Joy of Writing’ (View with a Grain of Sand: Selected Poems, Harcourt Brace, 1995).
[5] Danilo Kiš: The Lute and the Scars (‘Lauta i ožiljci’). Dalkey Archive Press, 2012.
[6] Hannah Arendt: Thinking Without a Banister: Essays in Understanding, 1953- 1975. Schocken, 2018.

Tradução do inglês por Viviane de Santana Paulo, poeta, tradutora e ensaísta.

https://www.versopolis.com/times/essay/1241/the-blood-and-poetry-of-non-belonging

Macedônia e a região dos Balcãs

A região dos Balcãs é formada por pequenos países de diferentes grupos étnicos cuja população se desloca de região para região, como é natural do ser humano. Há sérvios vivendo no Kosovo e vice-versa, e para determinados líderes políticos nacionalistas isso basta para anexar certa região ao país e criar conflitos bélicos. Houve fronteiras modificadas, ao longo dos séculos, países destruídos e reconstruídos, grupos étnicos que sofreram genocídio, idiomas e expressões culturais proibidos, e muitas guerras. E a região continua a ser um barril de pólvora!  Os Balcãs é composto pelos países Albânia, Grécia, Romênia, Bulgária, além das repúblicas que compunham a ex-Iugoslávia: Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro, Macedônia, Sérvia, e Kosovo. A Iugoslávia era uma república socialista, formada pelos países Bósnia e Herzegovina, Croácia, Eslovénia, Macedónia, Montenegro e Sérvia. Esta última tinha duas províncias autônomas (Voivodina e Kosovo). A Iugoslávia atravessou uma forte crise econômica e política durante a década de 1980, período da ascensão do nacionalismo, fatores que levaram à desintegração do país e às Guerras Iugoslavas, consideradas as mais brutais da Europa desde a Segunda Guerra Mundial. O país deixou de existir em 2006 com a declaração de independência do Montenegro, enquanto a província até então autônoma do Kosovo declarou unilateralmente a sua independência da Sérvia dois anos depois, em 2008. Diferente da Sérvia, Kosovo possui a população majoritária composta por albaneses. Até hoje, os conflitos se reacendem como atualmente entre Sérvia e Kosovo.

A Macedônia obteve a Independência em 1991 e tem fronteiras com a Bulgária, Grécia, Albânia e Kosovo. O norte possui o nome de República da Macedônia do Norte, a parte próxima à Bulgária chama-se distrito búlgaro de Blagoevgrad e próxima ao norte da Grécia localiza-se a província grega da Macedônia. Diante da verdadeira “salada” de grupos étnicos que vive no país, no início dos anos dois mil a Macedônia foi abalada por violentos tumultos entre a minoria albanesa e a maioria macedônia. Do lado macedônio, existiam os receios de uma Grande Albânia, incluindo o Kosovo e partes do noroeste da Macedônia. Através da mediação da UE, o Acordo-Quadro de Ohrid, assinado em 2001, os antagonismos entre albaneses e macedônios diminuíram consideravelmente. O país é habitado pela maioria greco-macedônia e uma pequena minoria eslavo-macedônia. Além disso, existem ainda as populações Aromaniana, Meglenoromaniana e Armênia, que são, no entanto, em grande parte assimiladas e cujas línguas são hoje consideradas ameaçadas.

No tangente à literatura, a língua macedônia moderna pertence às línguas eslavas medirionais, é parente próximo do idioma búlgaro e usa o alfabeto cirílico. O primeiro drama no idioma, antes considerado apenas um dialeto (Ilinden, 1923), foi escrito pelo revolucionário macedônio-búlgaro Nikola Kirov-Majski (1880-1962). A revista literária mensal (Mesečni pregled, mais tarde Juzni pregled, 1926-1939), publicada em Escópia, editada pelo russo Petar Mitropan (1891-1988), era uma das poucas revistas que oferecia oportunidades de publicação na língua macedônia, que de outra forma teria sido marginalizada.

A maior contribuição para a codificação da língua macedônia, que havia sido admitida como língua oficial a partir de 1945 (anteriormente chamada de dialeto búlgaro), foi feita pelo filólogo, letrista Blaze Koneski (1921-1993). Entre os primeiros autores estavam Vlado Maleski, Gogo Ivanovski e Jovan Boškovski. O autor Taško Georgievski exilou-se na Iugoslávia após a guerra civil grega em 1947 e escreveu o romance A Semente Negra (inglês 1974) sobre a perseguição de revolucionários macedônios na Grécia.

Uma das figuras mais importantes da literatura contemporânea macedônia é o autor Slavko Janevski. Ele escreveu o primeiro romance em macedônio, Seloto zad sedumte jaseni (1952). O romance de Petre M. Andreevski, Pirej (1980; inglês “Quecke”, 2017) também é um dos mais representativos, e trata do período após o fim do domínio otomano nos Bálcãs, durante a Primeira Guerra Mundial e posteriormente, no qual a população em parte sérvia e em parte de língua búlgara se torna jogo político entre a Sérvia, Bulgária e Grécia. Petre M. Andreevski foi recentemente descoberto como um dos grandes narradores de histórias europeias do século XX. A Segunda Guerra Mundial também permaneceu um tema frequente até depois da independência da Macedônia do Norte, nos anos 90, por exemplo, no romance de Vlada Urošević, Minha prima Emília (1994).

Em relação à poesia, Kotcho Ratsin ou Kočo Racin (1908-1943) foi um poeta e revolucionário comprometido com os comunistas macedônios e juntou-se à resistência em 1943. Foi morto no mesmo ano em circunstâncias inexplicáveis. Os poemas de Racin em Beli Mugri (1939; White Dawns), que contêm muitos elementos da poesia folclórica oral, foram proibidos pelo governo da Iugoslávia antes da Segunda Guerra Mundial. O poeta Kole Nedelkovski (1912-1941), cujo poema revolucionário “Uma voz da Macedônia” (Glas od Makedonija) é um dos mais importantes da literatura macedônia. E para mencionar as poetas mulheres, Danica Ruchigaj (1934), Vesna Acevska (1952), Lidija Dimkovska (1971) são alguns nomes de destaque. Em homenagem a Danica Ruchigaj, que tragicamente faleceu em um terremoto em 1963, foi criado um prêmio de poesia com o seu nome.

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RECEITUÁRIO DE SONHOS – por Wander Lourenço

 

Receituário de sonhos através da literatura

Em sua obra intitulada A interpretação dos sonhos, o psicanalista Sigmund Freud explicita que esforçar-se-ia por elucidar os processos a que se devem a sua estranheza e a obscuridade, ainda que pouco ou nada que aborde a sua natureza essencial possibilite uma solução final para qualquer dos enigmas dos sonhos. Deste modo, aviso aos navegantes: a crônica não se predispõe a elucidá-lo, absolutamente; entretanto, se inclina a utilizá-lo como metodologia de leitura, que prognostica a prevenção como modo eficaz de combate às aflições psíquicas do Homem pós-moderno. Neste compasso, eis que se prescreve o Receituário através da literatura, sob forma de breve contribuição ao estado de saúde mental do Leitor, que se quer são e hígido em lucidez. Assim sendo, o indivíduo apto ao ato de Ler anteceder-se-ia ao diagnóstico clínico, subscrito pela consternação agônica do espírito, às margens do abismo da existência que, por vezes, impele o ser humano ao suicídio físico ou moral. Continuar a ler “RECEITUÁRIO DE SONHOS – por Wander Lourenço”

SERÁ ‘ALICE E OS ABUTRES’* UM ROMANCE ALICEANTE? – por Danyel Guerra

ArteLiteraria, eis a palavra-passe para quem quiser acessar o universo aliceano! Para começo de interação com ele, devo confessar que ignoro qual é a praia predileta de Beatriz Pacheco Pereira, enquanto cidadã. Na certa, todavia, não me enganarei se escrever que, enquanto autora, ela frequenta as finas areias da praia (da) arte literária, onde maresia se faz concórdia com poesia. E desde 2003, em que publicou ‘As Fabulosas Histórias Dela’, coletânea  de contos de feição, noblesse oblige,  fantasista. Continuar a ler “SERÁ ‘ALICE E OS ABUTRES’* UM ROMANCE ALICEANTE? – por Danyel Guerra”

MULHERES NAS RUAS DO PORTO – XVIII- por César Santos Silva

Carolina Michaelis de Vasconcelos (Escadas de) e ( Escola)
Início: Oliveira Monteiro (Rua de)
Fim: Infanta D. Maria (Rua de)

Designação desde 2001
Freguesia de Cedofeita
Designações anteriores: Rua de Públia Hortênsia (1948‑1957), Escadas do Liceu.

Carolina Wilhelme Michaelis de Vasconcelos, que também está consagrada numa escola da cidade do Porto e numa estação da linha do Metro do Porto, nasceu em Berlim, Alemanha, em 15 de Março de 1851. Continuar a ler “MULHERES NAS RUAS DO PORTO – XVIII- por César Santos Silva”

CARTA AOS MEUS ALUNOS SOBRE A LEITURA – por Olinda Gil

Meus queridos alunos, deste e de outros anos letivos.

Eu sei perfeitamente que muitos de vocês não gostam de ler. Posso imaginar porque razão isso acontece, mas o que eu vos gostaria mesmo de falar é a razão pela qual eu gosto de ler (e seria interessante também perguntarem aos vossos colegas que gostam de ler o porquê).

Sei que gostam de ver filmes e séries, de estar no telemóvel nas redes sociais e nos jogos – e eu também! – mas, os livros para mim são muito mais prazerosos do que qualquer atividade das que mencionei.

A primeira das razões porque isto acontece é a imersão, palavra complicada para quem não faz mergulho, mas posso vos dizer eu é o sentimento de estar “embrenhado” na história, no livro neste caso. Algo que não consigo tão profundamente com os filmes e as séries. Distraio-me menos, talvez porque a leitura me obriga à concentração. E nesse momento de imersão eu deixo de pensar noutras coisas, esqueço o mundo, fico só concentrada naquele livro, e é nisso que penso e reflito. Sentimento que se arrasta para depois da leitura. E porque é que isso acontece comigo? Talvez o segredo seja mesmo a fluidez da leitura, que é algo que se adquire com muitos anos de leituras. Outro segredo é, sem dúvida, encontrar o livro correto para mim, para o momento de vida que estou a viver. E acreditem que desisto de muitos livros – afinal é um dos diretos do leitor.

A segunda das razões é o prazer. Não apenas o prazer momentâneo da leitura, mas um prazer que fica em contínuo, de cada vez que penso naquela mesma leitura, seja poucos momentos depois, seja anos, mesmo! Algo que as redes sociais e jogos não nos transmitem. É certo que nos dão um prazer momentâneo, mas a maior parte das vezes até nos trazem frustração. Quantas vezes estamos ali à espera que nos apareça algo de especial e interessante que nunca aparece? Pelo contrário, ao terminar um livro há um sentimento de completude. Mesmo que seja uma narrativa com final aberto.

Ficaram com vontade de ler? Sei que se não tiverem fluidez de leitura suficiente não é a começar pelos “Maias” que vão ter estes sentimentos. Mas há tantos, tantos livros. Vão às bibliotecas, às escolares e às municipais, estão lá pessoas que vos podem ajudar. Perguntem aos vossos professores e aos vossos colegas. E não tenham problemas em desistir e começar outro livro novamente.

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Olinda Pina Gil é licenciada em Línguas e Literaturas Modernas e mestre em Ensino do Português e das Línguas Clássicas. Tem também uma pós-graduação em Gestão de Recursos Humanos.
Iniciou a sua prática de escrita no “DnJovem”, suplemento do “Diário de Notícias”. Colaborou em diversas colectâneas e publicações, e foi 3º prémio do concurso literário “Lisboa à Letra” em 2004, na categoria de prosa.
Editou, a título independente, em 2013 “Contos Breves”, e, pela Coolbooks, chancela da Porto Editora, “Sudoeste” (2016, 2014 em ebook) e “Sobreviventes”(2017, 2015 em ebook).
Escreve no blog www.olindapgil.blogspot.com

PEGADAS IMPRESSAS NO JARDIM DA LITERATURA – por Marcos Fernando Kirst

Em memória de Marilene Caon Pieruccini

“Escuto o barulho do mar/ Marulho de cantiga/ Antiga mais que o ar/ Magia que nina a lua/ Na rua vazia de você/ Pensamentos desertos/ Abertos com a sombra/ Que assombra o lugar/ Perdidos na dor da escolha/ Havida no meio de mim/ Nunca há paz neste jardim”

(Solo de Clarineta).

A alma em constante ebulição criativa e reflexiva da escritora gaúcha Marilene Caon Pieruccini encontrou a paz no jardim da existência no dia 14 de novembro de 2019, quando seu corpo enfim cedeu, após anos de batalha pela saúde. O jardim, no qual dizia poeticamente jamais encontrar paz, como no poema de sua autoria acima, era o refúgio mental da literatura, da cultura e das artes, universo que habitava e transformava com sua produção criativa e onde desempenhava de forma plena sua atuação cidadã. Marilene tinha convicção de que a arte e a cultura são ferramentas vitais para a transformação dos seres humanos em cidadãos plenos, construtivos, positivos e criativos. Pautou toda a sua atividade literária, profissional e pessoal a partir dessa ótica e, assim, não só deixou sua marca (insubstituível e saudosa), como formatou, ao natural, uma pequena (mas significativa e ativa) legião de acólitos, que seguem fazendo a diferença em Caxias do Sul e região, para seu orgulho e satisfação, onde quer que agora esteja. Continuar a ler “PEGADAS IMPRESSAS NO JARDIM DA LITERATURA – por Marcos Fernando Kirst”

“LOS OJOS DE UM EXILIO” de Moisés Cárdenas

Muy pronto, estará en las librerías de España la novela testimonial, Los ojos de un exilio.

El libro, Los ojos de un exilio, publicado por Avant Editorial, es una novela testimonial escrita por Moisés Cárdenas, venezolano, nacido en San Cristóbal, Estado Táchira el 27 de julio de 1981.

Se graduó en la Universidad de los Andes, Táchira, en licenciado y profesor en Castellano y Literatura, profesión que ejerció durante más de diez años en los niveles de secundaria. Continuar a ler ““LOS OJOS DE UM EXILIO” de Moisés Cárdenas”

DA DRAMATOLOGIA- PARTE I – por Castro Guedes

Comecemos por desfazer o carácter equívoco da palavra dramaturgia, usada em Portugal indistintamente entre o significado próprio (a escrita do texto teatral) e a dramatologia, expressão brasileira bem mais adequada ao estudo da lógica do texto, da análise dramatúrgica, que, muitas vezes, aparece, entre nós, como dramaturgia, à mesma. Perpendicularmente outro equívoco resulta da forma de encarar o texto teatral como literatura dramática, que, como a palavra indica, se contém como um género dentro da literatura. Coisa diferente do que é um texto para cena, a que o carácter literário se acrescenta como uma segunda qualidade, sendo a primeira a da sua funcionalidade para cena. Porque um texto para cena é, por exemplo, um texto de Shakespeare, por mais poético e literariamente valioso que seja; e é. Continuar a ler “DA DRAMATOLOGIA- PARTE I – por Castro Guedes”

O TERRAPLANISTA – por Francisco Fuchs

Até aquele dia, Emanuel jamais questionara o que seu professor lhe ensinava. Ao contrário de alguns de seus colegas, que com o passar dos anos aprenderam a temperar as lições recebidas em sala de aula com um grão de sal, ele sempre se deu por satisfeito com todas as explicações. Emanuel era inteligente o bastante para saber que sua inteligência não era privilegiada e, por isso mesmo, esforçava-se o quanto podia para assimilar o conteúdo das aulas. Ele não enxergava a si mesmo, no entanto, como um conformista; apenas não via razão para questionar verdades há muito estabelecidas. Se o verdadeiro não se torna falso, nem o falso se torna verdadeiro, por que perder tempo com vãs especulações? Assim, se era por aderir à verdade que o chamavam, por vezes, de conformista, e se a zombaria de que era alvo soava aos seus ouvidos como um elogio ao invés de uma ofensa, o que mais poderia fazer senão conformar-se? Continuar a ler “O TERRAPLANISTA – por Francisco Fuchs”

“ANUNCIAÇÃO CAVALCANTI”, DE DONATELLO – por Rosa Sampaio Torres

Introdução

Recentemente tive oportunidade de ultimar artigo referente às capelas da antiga família Cavalcanti em Florença.

Nesta ocasião inventariei  importantes peças artísticas encomendadas por esta importante familia florentina. Entre essas peças de arte sobressaíram na ocasião três delas, magníficas – obras que considero historicamente significativas, merecedoras de trabalho detalhado para um publico ampliado – até mesmo visitação especial quando em viagem à Florença. Nesse presente artigo apresento uma delas. Continuar a ler ““ANUNCIAÇÃO CAVALCANTI”, DE DONATELLO – por Rosa Sampaio Torres”

El ALARIDO ESPECULAR DE LOS FRAGMENTOS – Enrique Santiago

 

Tifón despedaza a traición a Osiris y dispersa sus miembros aquí y allá,

pero la ínclita Isis los ha reunido.

Atalanta Fugiens

La vida –intensa y consecuente– de Alfonso Peña, se ve reflejada en su obra plástico-poética, donde se aprecia una mirada profunda de la realidad que se ve confrontada reiteradamente con una propuesta o contrapunto, que se sostiene en el discurso surrealista, el que se manifiesta con la suma de diversos elementos visuales, que van desde el recorte azaroso –reconocido como collage– ensamblaje, hasta la intervención pictórica que se soporta en gran parte en la mancha que surge desde el automatismo psíquico.  Alfonso Peña es un recolector asiduo de impresiones, su ojo deambula por la trama vital en busca de aquellos “objetos encontrados” que el azar dispone en su camino para ser capturados, digeridos y usados para componer su trabajo bidimensional, el cual, requiere en gran porcentaje de una propuesta que reúna variados elementos que en su sumatoria sean capaces de totalizar e integrar de forma lo más completa posible su rica mirada interior, generando de esta manera, dos universos que se manifiestan en el soporte, una realidad exterior dura y cruda  que se conjuga con otra interior que desea transformar lo conocido y que al yuxtaponerse inquietan y hacen reflexionar al espectador, ya que se observa la ferocidad de la realidad impuesta por años de abuso social, su mediocre banalidad, y su racional y violenta sinrazón, la cual es abrazada, intervenida o acosada por la manifestación amorosa del yo interno, donde este último propone una mirada distinta, una alternativa a la condición actual del ser humano, que nos violenta y reprime- desplegando de forma transversal –y centrífuga según la nominación que le dieron al libro que crearon en conjunto con Amirah Gazel– toda suerte de imágenes, manchas y escrituras en pos de expresar un mensaje poético-visual que aúlle desde el ser interior abriéndose paso por un paisaje que le es hostil y ajeno, porque cada obra elaborada se constituye en una denuncia de aquella realidad que nos molesta, pero que también es un despliegue de consideraciones de lo “maravilloso”, el cual está circunscrito fuera de nuestros márgenes conocidos, y que vale la pena tener en cuenta como alternativa para ensanchar la realidad, abriendo así la frontera que mantiene oculta a la otredad, para ser incluida como parte nuestras vidas. Continuar a ler “El ALARIDO ESPECULAR DE LOS FRAGMENTOS – Enrique Santiago”

MARÍLIA SEM DIRCEU, MARÍLIA COM DIRCEU** – por Danyel Guerra

 

A juventude é uma doença

que se cura com o tempo”   

George Bernard Shaw

Ao descerrar as cortinas da janela, devassando o olhar para o belo horizonte, Maria Doroteia dissipa num ápice a boa disposição com que saltara da cama. Imaginava que a luz de um sol radiante seria portadora de bons auspícios. A visão de uma manhã brumosa, nebulosa, umedecida por gotículas de orvalho, precipita-lhe súbita ansiedade. O outono impõe sua lei. E uma espessa lubrina* já atapeta, em tons cinzentos, o caminho do agreste inverno.

Como os caRiocas, esta mineira também não gosta de dias nublados. Mas quem gosta?! Além do mais, o nevoeiro tem o impertinente condão de avivar em sua lembrança a imagem, ainda nítida, de um esperado Desejado.

A escassos metros, envolto no drapejado de lençóis e cobertas do leito, repousa um livro, páginas abertas numa das estâncias do canto “mais doce, alegre e deleitoso” da epopeia. As artimanhas do aleatório não poderiam insinuar aconchego mais propício.

Oh! Que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava! (1)

Não, hoje não vou visitar titia. O clima não está nada convidativo. Fico por aqui, lendo, fazendo umas arrumações nas velharias, decide, apertando o cinto do penhoar* azul violetado, enquanto se aproxima de um escrínio de porcelana, que costuma usar como pesa-papéis. Antes de levantar a tampa, pega numa folha e escreve uma solitária frase.

Ao encarregar Chiquinho da entrega da mensagem, lembra ao moleque que deve ser veloz como Mercúrio. Isto, apesar do escravo não trazer calçadas sandálias aladas, nem coisa que se pareça. Lacônico, o recado tem como destinatário o tenente-coronel dos auxiliares Manuel Teixeira de Queiroga, um buliçoso homem de negócios que mora mesmo em frente da casa da tia Ana Cláudia, à Ladeira da Praça, no centro de Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto.

Na sede da Capitania das Minas Geraes não é só de manhã que uma névoa, tingida de chumbo, inibe a aparição da luminosidade solar. Nas minas, veios, córregos, riachos e ribeirões, haurido o ouro, a autenticidade cede o passo à contrafação. Do mesmo modo, nas relações humanas, quando a falsidade suplanta a verdade, a hipocrisia e a intriga emudecem a franqueza e a lealdade, a insídia tende a impor sua supremacia.

Espalhados pelos corifeus da maledicência, os boatos escalam as precipitadas ladeiras do Pilar de Ouro Preto. Subindo ágeis as calçadas e descendo sem freio morros e outeiros, boatos ciciam que, há mais de um ano, Maria Doroteia apostara suas fichinhas amorosas num idílio secreto com um reinol*.

Reinol que, sublinhe-se, o ex-noivo de Doroteia, o juiz Tomás “Dirceu” Gonzaga, apelidou de “Roquério” e destratou, com irrisória verve, n’ As Cartas Chilenas. Quando escreveu tão jocosos versos, o lírico vate, tornado cronista satírico, parecia estar adivinhando a proeza que o arguto contratador congeminava, armado dos trejeitos de um D. Juan provinciano.

Se certezas intuísse, o poeta não hesitaria certamente em soltar a furiosa Megera no caminho do mal-ajambrado* rival. Na realidade, enquanto o bardo Dirceu padecia, como um Prometeu, as agruras do cárcere, o lisboeta, encostado ao parapeito da janela de seu sobrado*, vestia a casaca do galante. E insistia, persistia em cortejar a ex-nubente, sempre que a formosa subia ou descia as escadas da casa da tia.

Mas que ninguém o acuse de ser um fauno depravado. Nos seus viçosos vinte e poucos anos, a moça já não se encontra em estado de graça. Afinal, Dorô está na idade em que na mulher, o fulgor da juventude começa a se volatizar, como depurada fragrância exposta ao flagelo da ventania.

Ela tem que aproveitar o dia, a tarde, a noite e a madrugada, enfim, gozar o carpe diem aprendido nos carmes* que o pastor Dirceu lhe dedicara. Todavia, tal como de Nefertiti, dela arriscaria dizer que o mito a dotara de todas as virtudes. Mesmo a de se ter resguardado dos ímpetos da lascívia, se tornando uma casta, fiel até à morte, em tributo e respeito ao primeiro amor. É dessas amenidades que se geram, nutrem, crescem e se agigantam as legendas, em especial as românticas.

Em plantão permanente, as línguas da fofoca não se cansam de cochichar que a senhorita soubera da publicação de Marília de Dirceu ao relançar o olhar para um livrinho, abandonado ao acaso, em cima do criado-mudo* da cama de Queiroga. Ao abri-lo, leu embevecida uma das liras que Tomás António lhe dedicara, em carta prenhe de emocionada afeição, nos tempos desditosos da prisão, onde continuou a tecer, com fios de seda, sua (Doro)teia de sedução…

Mal durmo, Marília, sonho
Que fero leão medonho
Te devora nos meus braços (…) (2)

Pelo visto, o reinol Queiroga não é somente o proprietário dos melhores cavalos da vila. Aparenta também cultivar estimáveis hábitos de leitura, isto se não passar de um mero acumulador de livros, para emoldurar estantes e impressionar as visitas num alarde de postiça erudição.

Nos poemas do desafeto, o sôfrego Roquério talvez procure aprimorar os requintes da conquista. Ancioso por arrebatar, de vez e para sempre, o coração da donzela, o “fero leão medonho” afina sua voz para melhor cantar a formosura de Marília, perscrutar seus “olhos belos”, beijar a “testa formosa”, afagar os “negros cabelos.”

Não foi, de certeza, por esquecimento que o pedante rendeiro ocultou a Doroteia a aquisição de um exemplar do livro. Piorando o quadro, foi devido a uma distração sua que a desejada soube do regresso a Vila Rica das arcádicas e pré-românticas liras. O deslize por pouco não comprometeu seus planos. A moça ficou mais que despeitada. Quase revoltada, não apreciou nada ser  (des)tratada como uma menina suscetível, afeita a crises de volubilidade juvenil.

O que em definitivo a desiludiu foram os receios e a insegurança de Queiroga, como se a visão das pastorais de Dirceu, em letra de impressão, nela reavivasse as recordações do malogrado romance com o desgraçado ouvidor.

De súbito, uma forte pancada de vento sacode as janelas do quarto, arrancando Doroteia destes intrigantes pensamentos, trazendo-a de novo à soturna realidade. Abre por fim a boceta e depara com o anel de ouro e diamante, presente do agora degredado na longínqua Moçambique. Sua atenção se dirige, porém, para uma folha de papel, dobrada em quatro, onde Tomás escrevera um soneto dedicado a ”ilustríssima Condessa de Cavaleiros, D. Maria José de Essa e Bourbon.”(3)

A excelentíssima senhora era a venerada esposa de D. Rodrigo José de Menezes, governador e capitão-general das Minas Geraes, filho do famígero Marquês de Marialva. Encharcado de reverente louvação, o poema celebra a memória da mítica Inês de Castro, a cuja linhagem a condessa se ufanava de pertencer. O soneto(4) terá sido declamado num dos saraus que D. Rodrigo, inchado de prosápia, promovia no palácio. Foi a primeira vez que a então mocinha ouviu comentar os talentos poéticos do garboso ministro, vizinho do lado da tia Ana Cláudia, na Casa do Ouvidor.

Maria Doroteia julga convencer-se de que simplesmente obedecera a um impulso, quando resolveu vasculhar nas obscuras galerias do túnel do tempo, lembranças tão antigas de Dirceu. Não por acaso, durante a noite, ao se recolher, ela buscara encontrar o son(h)o, folheando Os Lusíadas. Ao passar pelo Canto III, sentiu-se de modo inelutável, atraída para a leitura do episódio de Dona Inês de Castro.

É no afã dessas rememorações, que um esbaforido Chiquinho a põe em desassossego, clamando que traz recado urgente do Sinhô Queiroga. Basta a Doroteia se inundar da clarividência de uma Sibila para se tornar sabedora do que Manuel lhe quer revelar com tanta presteza. Um saber em indiferença tornado. Lacrado, o sobrescrito lacrado continuará. Doroteia cerra, ríspida, as cortinas, inundando o quarto de uma recatante penumbra. Embora contrariada, se angustia ao escutar sua intuição garantir que tinha sido formal e oficialmente destronada no coração do trovador. Não tanto por outra mulher mas, o que é bem mais incômodo, por outra musa, virgem e intocada como se fosse uma sacerdotisa de Vesta.

Determinada, recusa cair no precipício de uma depressão sentimental. Afrouxa o cinto do penhoar, afasta, resoluta, as cortinas, abre a janela para confirmar se a névoa se tinha dissipado. O Pico do Itacolomi, imponente e soberano em dias de sol luminoso, envolve-se ainda num manto de nuvens grávidas de chuvisco. Apesar do cenário adequado, o Desejado não voltará nesse dia. Nunca mais voltará.

Lá fora, o ecoar rumorejante das águas de um riacho é abafado pela alegria da algazarra de uma turma de meninas. Sem se importarem com a cor da pele, a loura Anselma, a morena Joaquina, a mestiça Benedita e a negra Rosário pulam empolgadas numa maré* jogada em frente do Chafariz de Marília, à Ponte dos Suspiros.

Bom dia, D. Maria Doroteia! Como vai?, saúda Joaquina, voz maviosa de patativa, “as tranças pretas pousadas sobre os ombros infantis”. E Dorô corresponde com o claro enigma de um vibrante e sonoro alerta. Bom dia, Marília…. Não se esqueça querida, você tem encontro marcado com Dirceu!

(**Marília é o criptônimo arcádico de Maria Doroteia Joaquina de Seixas Brandão, noiva e musa de Tomás António Gonzaga, o poeta Dirceu, nascido em Miragaia, Porto (Portugal), a 11 de agosto de 1744.)

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Notas
1 - Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto IX, estância 83
2- Tomás Gonzaga, Marília de Dirceu, 1ª parte, lira XXI
3 - Tomás Gonzaga, Marília de Dirceu, 3ª parte, soneto VI
4 - Atualmente, é convicção adquiria que o soneto foi escrito a duas mãos, com o camarada árcade  Cláudio Manuel da Costa, que não seria também nada “coxo”, no que tange à prática da poesia do encômio.

*Glossário

lubrina – neblina
penhoar – robe
reinol – habitante do Brasil colonial, nascido no reino de Portugal
mal-ajambrado – vestido sem elegância
sobrado – moradia de dois ou mais andares, típica do Brasil colonial
carmes-poemas
maré – jogo da macaca, amarelinha

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Danyel Guerra (aka Danni Guerra) nasceu na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Tem uma licenciatura em História Universal da Infâmia pela FLUP. É jornalista nas horas (mal) pagas e autor literário nas horas com vagas.

Publicou os livros ‘Tomás Gonzaga-Em Busca da Musa Clio´’, ‘ Amor, Città Aperta’, ‘O Céu sobre Berlin’, ‘Excitações Klimtorianas’, ‘O Apojo das Ninfas’, ‘Oito e demy’, ‘Fernando de Barros-O Português do Cinemoda’ e ‘Os Homens da Minha Vida’.

EDITORIAL POR JÚLIA MOURA LOPES – “Afastem de mim esse cálice”

“Com toda a lama, com
toda a trama, afinal, a gente vai levando essa chama”.

Chico Buarque

Neste Maio único e tardio, Francisco Buarque de Hollanda, poeta-músico tão nosso, cronista dramaturgo da “Ópera do Malandro”,  romancista e ainda actor, homem lindo, que tão bem exterioriza o eu feminino, foi distinguido com o Prémio Camões”, o maior troféu literário da nossa língua.

Está reacendida a questão iniciada com o Nobel a Bob Dylan, sobre o conceito canónico de Poesia. Como se pode pretender que a poesia escrita seja superior à cantada, quando sabemos que a mesma teve  inicio exactamente na tradição trovadoresca?

*Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno

Além desta polémica, o Prémio Camões 2019 vê-se no epicentro de outra polémica bem mais feia. Os simpatizantes de Bolsonaro  acusam a escolha de Chico Buarque, denunciando ver nela uma mensagem implícita de  conotação política. Continuar a ler “EDITORIAL POR JÚLIA MOURA LOPES – “Afastem de mim esse cálice””

YUVAL HARARI, O FILÓSOFO DA MODA NO MUNDO GLOBAL- por Cecília Barreira

©Daniel Naber

Considerações sobre Yuval Harari,  o Filósofo da moda no mundo global

Yuval Noah Harari, israelita, professor de história em Jerusalém, incendiou o mundo com as obras já traduzidas em português Homo Deus, História Breve do Amanhã e 21 Lições para o Século XXI.  Com pendor filosófico e profético justifica as suas argumentações com o perigo das tecnologias e o medo da invasão de dados pessoais através da net e das redes sociais.

As contradições nos seus livros são imensas e até passam por branquear a figura de Hitler, comparando-o a um “humanista evolutivo”.  O único alvo deste historiador especializado em Idade Média são as altas tecnologias. Em relação a esse aspeto, Harari sem o mencionar tenta matar Sartre e os existencialistas que acreditavam no poder decisório dos homens. Continuar a ler “YUVAL HARARI, O FILÓSOFO DA MODA NO MUNDO GLOBAL- por Cecília Barreira”

A BUSCA DO ALEPH BORGEANO – por Danyel Guerra

“Existe no Universo, um ponto, um sítio privilegiado,
de onde todo o Universo se desvenda”

Louis Pauwels /Jacques Bergier

(Work in Progress)

Strategia del Ragno. Devo ao Cinema a boa ventura de, numa morna tarde de primavera, me ter entreaberto a porta da mansão literária de um escritor de sobrenome Borges. E com uma senha codificada em língua italiana.

Atento ao letreiro/genérico do filme supremo de Bernardo Bertolucci, datado de 1970, reparei que o soggetto partira de um conto de um autor, para mim, de todo ignoto. Consultando, curioso, a ficha técnica da fita, verifiquei que a narrativa tem por título Tema del traidor y del héroe, a terceira da seção Artificios do livro Ficciones, editado em 1944.(1) Continuar a ler “A BUSCA DO ALEPH BORGEANO – por Danyel Guerra”

(DI)VAGANDO SOBRE LA POESÍA – por Federico Rivero Scarani

“A ilha misteriosa” de Mário Cesariny de Vasconcelos

La poesía involucra, entre varios elementos constitutivos, a los sentimientos, sin embargo estos no hacen la poesía. La poesía es una manera, o un camino,  como tantos, de acercarse a la Verdad, a la Naturaleza, al Cosmos, y a las emociones humanas, aunque su único fin no sea solamente esos. Los antiguos griegos cantaban (con un objetivo didáctico) acerca de sus héroes y de sus dioses convirtiéndose sus obras en clásicos. Para ellos la voluntad divina y el Hado (Destino) conformaban la Verdad y la justificación  de su existencia. Lo novedoso en la poesía tampoco está en el lenguaje, en imágenes que abordan los variados temas si no en el “nuevo ojo” que se sirve del lenguaje poético y de sus correspondientes imágenes para hacer de los temas y motivos exposiciones originales que se mantienen entre lo “clásico” y lo “contemporáneo. Con respecto a este último se puede apreciar los postulados del relativismo estético (también denominado”estética historicista); este es una escuela de pensamiento en torno al arte, ligada al Postmodernismo y difundida especialmente en los países del tercer mundo. Esta escuela de pensamiento considera que la percepción y el juicio estético de un individuo frente a una obra de arte, son únicamente producto de la inmersión del mismo individuo en una cultura específica. Continuar a ler “(DI)VAGANDO SOBRE LA POESÍA – por Federico Rivero Scarani”

ORIGEM DA DINASTIA WIDO E FAMILIA CAVALCANTI – por Rosa Sampaio Torres

A origem franca da dinastia wido e da família Cavalcanti em Colônia, reino franco – século VIII

Ao tentar analisar a origem franca da família toscana Cavalcanti não mais como uma lenda, mas como uma possibilidade real, partimos em busca de traços e vestígios concretos desta provável e muitas vezes repetida origem.

Depois de muito pesquisarmos e termos realizado vários trabalhos prévios nos deparamos com um local possível e sugestivo para a mais antiga proveniência dos membros desta família italiana, como supunha seu genealogista do sec. XV Giovanni di Nicòlo Cavalcanti – localidade próxima de Colônia, no coração do antigo reino franco, com muito antiga Igreja dedicada a S. Gilles – lugar onde comprovamos desenvolvera-se a família dos condes de Hesbaye da dinastia wido, dinastia que sabíamos esteve muito presente na Toscana.

Pequena Igreja por nós localizada leva ainda hoje o nome de São Gilles ou Santo Aegidius precisamente localizada entre Colônia, Mannhein, Aachem e Radisbona, coração do reino franco   atual localidade de Seckenhein-Mannheim (“Neustadt on the Wine Route” – Rhineland-Palatinate) – e fez parte no passado de antiga aldeia que  já aparece  referida no “Codex Lorsch”em 766

A cidadezinha atual onde se encontra a igreja é representada ainda por um símbolo muito interessante – um brasão com a própria imagem de Santo Egídio (S. Giglio, Saint Gilles), seu cetro indicando a região próxima de Neustadt – a Cidade Nova – cidade onde teria se localizado ainda um antigo ramo dinástico rural oriundo de corte, o chamado “Brunchwilre”.

O brasão da cidade com a imagem de santo Egídio:

Por nossas pesquisas em fontes locais comprovamos que essa Igreja de St. Gilles fora doada pelo Imperador Luis, o Piedoso, à Abadia de Lorsch em 823 registrado neste documento que a igreja teria sido anteriormente “comprada pelo rei ao conde Warin”.

A notícia deste documento no começo do século IX indicando a transação de propriedade entre o rei franco e os condes Warin é fato para nós muito significativo, pois comprova o local mesmo da origem desta importante dinastia wido – dinastia que dará origem aos reis franceses robertinos e capetos – e da qual surge, entre várias outras, a família Cavalcanti na Toscana.

Deste modo, ficaria comprovado que a genealogia da família Cavalcanti entre outras se desenvolvera no coração mesmo do reino franco e a partir dos mesmos ascendentes dos condes de Hesbaye – cristãos muito religiosos, conversores, martirizados e santificados, que no século VII haviam sofrido intensamente pelos conflitos ocorridos na mudança de poder do período merovíngio para carolíngio – conflitos politicamente cruéis para esta dinastia cristã, então sob os desígnios do decidido prefeito do Palácio da Neustria, Eboim.

Entre estes homens santos e muito cultos desta dinastia wido citamos o seu capostipide, o famoso São Warin, conde Warin I (Guerin) de Poitiers, que foi mesmo martirizado; São Lambert (Landebertus de Maastrich), conversor, referido na genealogia de Hesbaye, n. 636 – f. 705; São Liutwin (Leudwinus), Bispo ou Arcebispo de Trier e Bispo de Laon – tido como filho de São Warin I; Lampert II (Lamperthus), conde de Hesbaye em 706, indicado como abade de Mettlach, Bispo de Metz, Primaz da Gália e Germânia, primeiro abade de Lorsch. Ainda Robert de Hesbaye I falecido em 764, tido como filho de Lampert II.   Robert I  já  bem documentadofoi  dux em Hesbaye no ano de 732, conde do Alto Reno (Oberrheingau) e Wormsgau em 750, sobretudo  “missus” enviado ao papa na Itália em 757 para preparar a descida franca.

Por nós comprovado que esta estirpe wido saída do condado de Hesbaye por Robert I de Hesbaye enviado como missus à Itália em 757 manteve importante seqüência geracional, especialmente desenvolvida por seu filho, o conde Warin II de Herbaye, conhecido também como Warin, conde Altdorf (n. 723 – f.772) descendência que no século VIII precede e mesmo acompanha a descida de Carlos Magno em 775 para a península italiana, colocando seus membros em ligações não só em Spoleto por casamento, mas também nas linhas de enfrentamento e descida franca em Narbona, Barcelona, Córsega, Raecia e Friul. Fato este muito significativo para os da família Cavalcanti.

A pequena Igreja de Santo Egidio ou Saint Gilles por nós localizada e ainda hoje existente na atual cidadezinha de Seckenheim seria uma das mais antigas igrejas a direita da diocese de Worms, com assentamento e aldeia muito próximo onde se localizou um ramo dinástico de corte decaído. A aldeia mesmo citada no “Codex Lorsch” em 766, dois anos depois da morte de Robert I de Hesbaye falecido cerca de 764, e como vimos neto de São Warin (Guerin ou Guido).

Ainda outras informações coletadas na mesma região completam a história da pequena igreja de Saint Gilles. Na verdade uma antiga fazenda teria sido aí trabalhada desde o tempo dos romanos, com edifícios circundantes dedicados à produção de vinhos.  Vinhedos que mesmo caracterizaram a região Wincingas (Vincincta), significando montanha e vinho cingidos, unidos a aldeia referida no século VIII como Wincingas, e junto a ela construído o Castelo Winzingen nos anos 900 castelo e aldeia arruinados já no décimo século, momento crítico da passagem da dinastia carolíngia já para a dinastia otoniana alemã.

Sobre a vila junto ao castelo de Winzingen lembramos: “A vila de Winzingen era já bem anterior ao início do século XIII, quando foi construída a Cidade Nova (Neustadt) e a cidade de Haard….. a queda da vila de Winzingen, e seu castelo de mesmo nome, ocorreram no século X – castelo…. hoje em estado de ruínas. A imagem do castelo está cunhada no antigo brasão de Winzingen.   E a destruição ou queda de outros castelos ocorreu também nesta ocasião na região do Speyerbach….

Nome da Vila: Castelo Winzingen

Brasão de armas de Winzingen

Neustadt on the Wine Route

O Castelo de Winzingen

Ruínas de vários outros castelos acima do vale de rio Speyerbach, e mesmo de construções posteriores, são observadas ainda hoje uma atrás do outra, como em fileira.

Foto das ruínas do Wolfsburg Castle, em cujas proximidades foram também encontrados restos romanos.

Wolfsburg Castle

Conclusão:

A muito antiga igreja de Saint Gilles localizada na atual cidadezinha de Seckenhein, antigo centro do reino franco, era também no passado região do condado de Hesbaye, marca da Hesbania – região onde nos séculos VII e VIII tem origem a estirpe dos condes wido de Hesbaye – a mesma origem dinástica dos reis franceses, robertinos e capetos como a historiografia moderna já comprova – cristãos extremamente religiosos ainda conversores santificados.

Estes fatos nos trazem à frase notável do historiador Giovanni Cavalcanti descrevendo os antepassados dos Cavalcanti como cristãos muito piedosos e provenientes da região de Colônia:

“La loro residencia delle signoria di piu castella e la principale sedia era in San Gilio. Questo Castello é molto magnífico, di popolo pienissino; del quale uscirono quatro Fratelli…..

Ainda que mudanças políticas posteriores, geradas na passagem do século X ao XI pela substituição das dinastias carolíngias para as otonianas germânicas, tenham determinado a destruição de vários castelos no vale do rio Speyerbach, em especial o castelo Winzingen junto ao assentamento de mesmo nome, é muito provável que estas traumáticas alterações políticas que chegaram mesmo a destruir estes castelos tenham também impactado as linhas de defesas francas da Toscana – episódios que a nosso ver coincidem com o súbito aparecimento dos primeiros membros da família documentados como Cavalcanti no ano 1045.

Novas pesquisas a serem expostas em próximos trabalhos irão apresentar e acompanhar, um a um, os principais membros desta dinastia dos wido saídos de Hesbaye no sec.VIII em descida para estabelecimento ao sul do reino franco, quando  na Toscana bem estabelecidos aparecem como Cavalcanti documentados pela primeira vez.

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Nota: Este artigo é um resumo do trabalho original cuja íntegra, com todas as fontes está publicado no blog da autora http://rosasampaiotorres.blosgspot.com/ sob o título “Antiga origem das famílias italianas Cavalcanti, Monaldeschi e Malavolti nas proximidades de Colônia, reino franco – século VIII” –  artigo sugerido para aprofundamento.

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Rosa Maria Sampaio Torres – pesquisadora em História (PUC-Rio), é também graduada em Estudos Sociais e pós-graduada em Ciências Políticas. Aluna do filósofo brasileiro Carlos Henrique Escobar acabou por desenvolver, também, seus dotes artísticos – especialmente como poeta, autora do livro “Bendita Palavra”. Já reconhecida como ensaísta, é autora de inúmeros artigos históricos sobre a família Cavalcanti, da qual descende, e agora sobre o poeta Guido Cavalcanti.

PENSAMENTO CATÓLICO NO BRASIL – por Cecília Barreira

Alguns Protagonistas do Pensamento Católico no Brasil nas primeiras décadas do Século XX.

Dom Sebastião Leme (1882-1942)

O regime republicano é proclamado no Brasil em 1889 e a nova Constituição em 1891. Foi com o início da República, em 1890, que se separou a Igreja do Estado e o catolicismo só procurou criar um escola partir dos anos 10.

O Positivismo e o Materialismo, oriundos do século XIX, preocupavam a Igreja e as forças políticas conservadoras. A um século de oitocentos ligado ao Progresso e a um pendor de anticlericalismo surgia, em novecentos, uma inquietação nas consciências que se reclamava de fé. Não se pode perder de vista, o início da primeira guerra mundial. Continuar a ler “PENSAMENTO CATÓLICO NO BRASIL – por Cecília Barreira”

ANTONIO ALVES MARTINS, o Bispo Liberal – José Lourenço

“A Voz da Liberdade”, livro de Maria Máxima Vaz é um estudo sobre D. António Alves Martins, Bispo Liberal de Viseu, que também foi político.

Nasceu em Alijó a 18-2-1808 e aos 16 anos entrou no convento de Jesus da Ordem Terceira de S. Francisco da Penitência, onde iniciou os estudos e onde professou com 17 anos de idade. Depois disso, foi enviado para o Colégio do Espirito Santo em Évora, onde prosseguiu os estudos que lhe permitiriam ingressar na Universidade, que já frequentava quando em 1828 o infante D. Miguel restaurou o regime absoluto. Alves Martins tinha então vinte anos. Escolheu a liberdade e juntou-se aos que a defendiam, pelo que foi expulso e perseguido. Alistou-se como voluntário no exército liberal e foi nessa altura feito prisioneiro pelos absolutistas, julgado e condenado a fuzilamento no largo de Santa Cristina em Viseu, onde depois lhe foi levantada uma estátua. O crime político só não foi consumado, porque conseguiu evadir-se e alcançar o exército liberal aquartelado em Leiria e seguidamente procurar refúgio no exílio com outros companheiros liberais. Continuar a ler “ANTONIO ALVES MARTINS, o Bispo Liberal – José Lourenço”

O POETA GUIDO CAVALCANTI E A INFLUÊNCIA TEMPLÁRIA – Rosa Sampaio Torres

O poeta Guido Cavalcanti e a influência Templária

O brasão da família dos Cavalcanti de Florença é notado pela primeira vez na sangrenta batalha de Montalcino em 1260 – brasão em cruzetas reproduzido nos escudos de muitos de seus combatentes, cavaleiros de origem guelfa que defendiam o papado contra os guibelinos da cidade de Siena.

Família muito atuante na vida política da cidade de Florença, o uso do brasão dos Cavalcanti surgia na Toscana em período especialmente marcado pela atuação da Ordem Templária na região e, em cerca de 1255, o nascimento do grande poeta nesta família, Guido Cavalcanti. Continuar a ler “O POETA GUIDO CAVALCANTI E A INFLUÊNCIA TEMPLÁRIA – Rosa Sampaio Torres”

A LIBERDADE E A RAIVA DO PERRO ARAGONÉS – por Danyel Guerra

     Tenha cuidado. Sinto que há em si tendências surrealistas. Afaste-se dessa gente.

  Jean Epstein

“Posso dizer tudo o que penso?….é a escrita automática!…” (1). Em sua edição de junho de 1954, a revista  Cahiers du Cinéma  inseria uma entrevista com Luís Buñuel. Na época, este cineasta era celebrado na Europa apenas como autor de uma tríade maldita, malgrado seu Los Olvidados (1950) ter emocionado Cannes.

Escrita automática? Será que aos 54 anos, o pai da mexicana ‘Susana’ ainda se afirmava fiel aos conceitos teóricos e aos procedimentos formais da finada guilda, na qual foi iniciado em 1929,  pela mão de Louis Aragon e de Man Ray?  Chegado a meia-idade, o rebelde persistia em menosprezar o paternalista conselho de Epstein? Continuar a ler “A LIBERDADE E A RAIVA DO PERRO ARAGONÉS – por Danyel Guerra”

DANTE ALIGHIERI E O SEU DIÁLOGO COM O MUNDO – por Marilene Cahon

Se o homem, pois, é o meio entre as coisas corruptíveis e as incorruptíveis, é necessário, já que todo meio participa da natureza dos extremos, que o homem tenha uma e outra natureza. E como toda natureza está condenada para certo fim último, segue–se que, para o homem, deve existir um duplo fim; por ser, entre todos os seres, o único que participa da incorruptibilidade e da corruptibilidade; assim, único entre todos os seres está obrigado a dois fins últimos, dos quais, um é o fim enquanto é corruptível; e outro, enquanto é incorruptível

 (DANTE ALIGHIERI, Da Monarquia, III, § XVI) Continuar a ler “DANTE ALIGHIERI E O SEU DIÁLOGO COM O MUNDO – por Marilene Cahon”

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