PEGADAS IMPRESSAS NO JARDIM DA LITERATURA – por Marcos Fernando Kirst

Em memória de Marilene Caon Pieruccini

“Escuto o barulho do mar/ Marulho de cantiga/ Antiga mais que o ar/ Magia que nina a lua/ Na rua vazia de você/ Pensamentos desertos/ Abertos com a sombra/ Que assombra o lugar/ Perdidos na dor da escolha/ Havida no meio de mim/ Nunca há paz neste jardim”

(Solo de Clarineta).

A alma em constante ebulição criativa e reflexiva da escritora gaúcha Marilene Caon Pieruccini encontrou a paz no jardim da existência no dia 14 de novembro de 2019, quando seu corpo enfim cedeu, após anos de batalha pela saúde. O jardim, no qual dizia poeticamente jamais encontrar paz, como no poema de sua autoria acima, era o refúgio mental da literatura, da cultura e das artes, universo que habitava e transformava com sua produção criativa e onde desempenhava de forma plena sua atuação cidadã. Marilene tinha convicção de que a arte e a cultura são ferramentas vitais para a transformação dos seres humanos em cidadãos plenos, construtivos, positivos e criativos. Pautou toda a sua atividade literária, profissional e pessoal a partir dessa ótica e, assim, não só deixou sua marca (insubstituível e saudosa), como formatou, ao natural, uma pequena (mas significativa e ativa) legião de acólitos, que seguem fazendo a diferença em Caxias do Sul e região, para seu orgulho e satisfação, onde quer que agora esteja.

Portadora de um espírito sagaz, de pensamento rápido, bem humorada, às vezes ferina, crítica e posicionada, Marilene recusava-se a condescender com aquilo que julgava equivocado, principalmente no quesito das políticas culturais (e em especial quando da falta delas) expressas na cidade em que morava, Caxias do Sul, com seus hoje 500 mil habitantes, município referência no Brasil devido à sua pujante economia e, cada vez mais, também referencial devido à qualidade das manifestações artísticas que abriga, em todos os âmbitos. Era presença constante a participativa nos conselhos de cultura e demais órgãos vinculados ao setor, tendo presidido a Academia Caxiense de Letras (onde ocupava a cadeira número 15) em uma de suas mais produtivas e destacadas gestões. Era respeitada em suas opiniões e posicionamentos, até porque, tinha o que dizer e embasava seu saber em seara sólida, pavimentada sobre décadas de estudos e formação (e muita leitura, naturalmente).

Natural da cidade serrana de Vacaria, no Rio Grande do Sul, nasceu em 23 de abril de 1945. Graduou-se em Filosofia e fez mestrado em História da América Latina. Mas consolidou sua atuação profissional, literária e cultural na vizinha Caxias do Sul, cujo reconhecimento se concretizou em 2008, quando a Câmara de Vereadores lhe concedeu o título do Cidadã Caxiense, conferido aos cidadãos nascidos fora da cidade que dedicam esforços para a construção de uma Caxias melhor. Anos antes, em 2003, conquistara o prêmio literário mais importante da região, concedido anualmente pela Biblioteca Pública Municipal, o de Melhor Obra Inédita, para seu livro ensaístico “Os Sertões na Teoria de Carl Gustav Jung”.

A poesia e os minicontos eram os seus principais focos na criação literária oriunda de seu talento, em paralelo à pesquisa histórica, outra de suas paixões. Considerando-se a qualidade e a quantidade da produção advinda do inquieto jardim criativo em que dizia não encontrar paz (felizmente, pois, assim, nesse desassossego constante, se autoinduzia a escrever), pode-se afirmar que publicou pouco. Mas esse pouco é significativo e endossa a qualidade de seu talento, o que pode ser confirmado em obras como “Retalhos de Mim”, “Retalhos de Uma Alma Nua”, “A História do Aço no Brasil” (em coautoria com sua filha, Angela Pieruccini), “A Outra… A Deles… A Nossa História”. Muito de sua produção, porém, pode ser encontrado de forma esparsa em antologias e publicações diversas (como a revista literária “Athena”, por exemplo), com as quais generosamente colaborava e junto às quais se engajava na apresentação de outros autores que admirava e divulgava (de novo, generosamente, uma de suas mais marcantes características: não tinha medo de sombra, gostava de ver virem à luz os talentos e se empenhava em favor desse reconhecimento que, muitas vezes, pode lhe ter faltado).

Sua voz posicionada, ativa e contundente já está fazendo falta no cenário cultural da região. Felizmente, deixou um legado também significativo para inspirar aqueles que comungam suas visões de construção de um mundo melhor por meio da cultura e da arte. Afinal, uma guerreira jamais se retira sem antes ter modificado o campo de batalha. “No espaço da noite os passos/ Da hora que se nega ir embora”, já vaticinava Marilene, em seu poema “Prelúdio”. É na saudade de seu sorriso e de sua presença que sua alma guerreira se nega a ir embora, para a sorte da comunidade regional e para a sorte da literatura. A nós, só resta agradecer à Marilene, por ter decidido dedicar sua existência a essa crucial e boa batalha. E, na medida do possível, seguir seu exemplo.

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Marcos Fernando Kirst é jornalista e escritor, residente na cidade de Caxias do Sul (RS). É colunista do jornal “Pioneiro”, onde publica crônicas semanais literárias. Foi Patrono da Feira do Livro de Caxias do Sul em 2010. Em 2011, ganhou o Concurso Anual Literário Municipal de Caxias do Sul com a obra poética “Em Silêncios”. Integra a Academia Caxiense de Letras desde 2012, onde ocupa a cadeira número 11. Ganhador do Prêmio Açorianos de Criação  Literária 2014 com a novela “A Sombra de Clara”, também laureada com o Prêmio Vivita Cartier, em Caxias do Sul, em 2016.  Já lançou 21 livros.