“Suas entrevistas eram ricas em aforismos exigentes
sobre a vida e sobre o amor.”
François Truffaut
Joyeux anniversaire, Framboise!
Caminhava impetuoso para o fastígio o verão de 1967. Num dos primeiros dias do mês de julho, eu folheava um exemplar do Paris Match, que ganhara de um primo migrado em França. Era uma edição toldada pelos fumos negros do luto, nas páginas onde se reportava o desastre que vitimara uma bela e talentosa atriz dos novos tempos do Cinema francês. Uma atriz que eu não conhecia de Carnaval nenhum e muito menos de um filme. Pelas fotos da matéria, a extinta parecia ser uma pessoa pulsante de sangue bom, quente e latino. Aparentava ter sido, melhor escrevendo.
No dia 26 de junho, ela dirigia, vinda de Saint Tropez, um Renault 10 alugado, na auto-estrada La Provençale/A8. Seguia em direção a Nice, onde pegaria um avião para Paris. Receando perder o voo, acelerou em demasia, desafiando uma chuva persistente e intensa. De repente, perdeu o controle do veículo, embatendo num sinal de trânsito, à saída de Villeneuve-Loubet, a 10 quilómetros do aeroporto. O carro capotou, rolou alguns metros e explodiu.
Testemunhas declararam ter visto a motorista tentando escapar do Renault, sem conseguir abrir a porta. Quando os bombeiros dominaram as chamas, depararam com o um corpo carbonizado no interior da carcaça ainda fumegante. No momento era impossível apurar ser o da esbelta manequim da Christian Dior. A polícia só a identificou a partir de fragmentos de um livro de cheques, de um diário e da carteira de motorista. Seu nome era/é Françoise Paulette Louise Dorléac, nascida em Paris, no dia da primavera de 1942.
France tinha pressa, muita pressa de chegar a Orly. Não poderia falhar a conexão para Londres. No dia seguinte esperava-a uma longa jornada de trabalho. Na agenda estava a conclusão de sua participação em Billion Dollar Brain, de Ken Russell, uma convencional fita de espionagem. A Solange de Les Demoiselles de Rochefort, de Jacques Demy, planejava ficar mais um tempo na capital inglesa, promovendo a estreia deste filme que, em definitivo, a credenciou junto do grande público e da crítica.
Quando, nos anos 80, encontrei Demy no Festival de Avellino (Itália), consegui ser muito sincero com ele. “Sem desprimor por Lola ou Les Parapluies de Cherbourg, a fita sua que mais me agrada é Les Demoiselles de Rochefort, muito por “culpa” da Françoise Dorléac. Aquele desastre… Françoise era uma atriz fascinante…”
Um sorriso tímido, porém cordial, se acendeu espontâneo nos lábios carmins do autor de Peau d’Âne. “Na verdade, ela era especial. Uma profissional dedicada, uma ótima companheira de trabalho. Não era só uma mulher bonita. Sendo mais preciso, a France é e será sempre uma talentosa atriz. Não é apenas a irmã da Catherine, tragicamente desaparecida, quando caminhava para o apogeu..”
Uma camélia rosada.
Filha do ator Maurice Dorléac e da atriz Renée Simonot, Françoise tirocinou em produções um tanto triviais. Após esse aprendizado, obtém um papel mais exigente na comédia dramática Ce Soir ou Jamais, dirigida por Michel Deville. Sua Danièle agradou tanto ao criterioso Philippe de Broca, a ponto de ser escalada para encarnar Agnès, noiva de Adrien (Jean-Paul Belmondo) em L’Homme de Rio, um filme de aventura com locações no Rio de Janeiro e em Brasília.
Entremeando produções de cariz comercial com filmes de vocação artensaística, sua breve carreira de sete anos e 16 longas atinge o zênite sob a direção de François Truffaut e Roman Polanski.
A empatia gerada entre Françoise e François torna Nicole Chomette, a aeromoça de La Peau Douce, sua mais memorável prestação, que estende bons auspícios para a composição da sensual e divertida Teresa de Cul-de-Sac. Um exercício virtuoso de um tempo em que Polanski ainda conseguia ser um autor alternativo.
Alguns anos depois, num depoimento soando a epicédio, Truffaut contou que todas as vezes que lhe escrevia, colocava no sobrescrito “Mademoiselle Framboise Dorléac”. De certeza, acreditava, ela leria a carta sorrindo.
“Ela podia lançar sobre alguém de quem desconfiasse, um olhar subitamente muito duro. A vida ainda não a curtira, a indulgência viria mais tarde”, sublinharia um nostálgico François.
Sem dar chances a dúvidas, o diretor francês Emmanuel Laurent observa que Peau Douce é um presente de amor para Françoise, pela maneira como Truffaut a filma. “Ele a seduz com a câmera”.
Se ambos fossem vivos, François imaginaria presentear a atriz amada com uma corbeille de camélias. Foi essa a homenagem que a mana Catherine Deneuve prestou a 15 de outubro de 2010, dia em que foi apresentada em Courbon, uma deslumbrante variedade de camélias, batizada com o nome da irmã menos nova. Híbrida, a flor resultou da fusão da Camellia sasanqua ‘Crimson King’ e da Camellia oleifera ‘Jaune’. O fruto desse enlace é uma flor em tons rosáceos, onde vibram estames amarelos. No ensejo, Catherine comentou o simbolismo desse ato: “Dar a uma planta o nome de alguém que amamos é um tributo eterno e muito reconfortante.”
A intéprete da Delphine de ‘Les Demoiselles de Rochefort’ já tinha homenageado France, publicando em 1996, o livro –ilustrado de fotos de ambas- ‘Ele s’appelait Françoise’, em colaboração com Patrick Modiano (Prêmio Nobel de Literatura em 2014). A essas lembranças se seguiu a dos Correios de França que em 2012 emitiu um selo postal. Em Rochefort, os fãs podem se recordar dela, calcorreando a praça batizada com seu nome.
Passadas mais de cinco décadas sobre seu súbito desaparecimento, a flor plantada por Françoise nos ecrãs continua prenhe de viço, frescor, aroma, perseverando imarcescível, seduzindo os cinéfilos disponíveis para afagar a pele doce dessa camélia, colhida de uma Nova Vaga em terna e eterna preia-mar.
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Danyel Guerra (aka Dannj Guerra) nasceu no Rio de Janeiro, Brasil. Tem uma licenciatura em História pela FLUP. E tem-se dedicado ao estudo da História do Cinema. Após ter lecionado História no Ensino Secundário, transitou para o Jornalismo, trabalhando como repórter e redator efetivo (Carteira Profissional nº 803) nos diários Notícias da Tarde, Jornal de Notícias e Correio da Manhã. É o colaborador mais regular da Revista Athena.
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