DAS INTERMITÊNCIAS DA INFÂNCIA – por Christian Dancini

UM POEMA INFANTE

Como era febril a brisa da manhã…
Aquele vento seco e gélido que raspava
meu rosto, difundia borboletas amarelas
nos pilares do amanhecer.
Eu sentia medo e frio, não conhecia
aquela escola e tinha apenas sete anos.
A tua loucura ébria me deixou confortável
para ser eu mesmo. Tua voz ruminava
nos meus pensamentos mais íntimos.
Era agosto, e o frio percorria a espinha.
Teu riso, teu corpo em movimento, tua pálida
razão… era como cavalgar um anjo, como existir
dentro do quasar do amor.
Tu foste meu anjo caído, loiro e pueril;
um naufrágio dentro do teu regaço agora
tece, ponta por ponta, os fios infinitos da memória.
Brincávamos de gangorra, de balanço, eu não estava
mais só, alguém me ouvia e me existia, me esperançava e
me imortalizava.
Sei que posso ser a sombra da tua sombra hoje, mesmo
que aqueles risos quentes tenham criado a nossa infância,
mesmo se pudéssemos voltar no tempo…
eu nunca mais me senti tão radiante, eu era capaz de
fruir pinheiros no lume dos colossos que residem nos céus.
Estojos, cadernos, trabalho em dupla, sonhos, adeus…

♣♣♣

PAPEL VAZIO

O papel vazio;
o barco em náufrago;
a voz murmurando;
o sono inverosímil
abre as portas para as areias pesadas da vigília.

Eu te quero aos poucos,
mordendo os teus cantos fendidos,
começando por teus lívidos e macios pés,
e terminando nos fios entorpecidos do teu cabelo.

O papel vazio;
a esferográfica grita,
uma protuberância no tempo;
um buraco do tamanho de um crepúsculo, que cabe no rasgo do meu corpo.

Me fogem as palavras para descrever
o sonho azul, o céu de baunilha;
o papel vazio encarando meu abismo.

Se tu foste mais que uma ponderação, todo o meu cansado ser aflito bateria na velocidade
do coração.

A vida subsiste;
o feixe luzidio…
A aparência lúcida de todas as coisas…

eu tentei alcançar o céu da tua boca, para derrubar as estrelas de dentro de ti
para fora do papel vazio.

♣♣♣

OU A JUSTAPOSIÇÃO DO ACASO

Pluvial; reumático; dissidente, onde o sol recua, soerguido por triviais lumes.
Em compensação, as estrelas que morrem brilham mais:
tu e eu, lusco-fusco; o amor é um dança, uma síncope ritmada.
Eu ensimesmo a justaposição dos corpos sem órgãos em movimento.
A membrana plasmática do planeta — útero materno do desamparo —, estoura,
e então, nasce o homem.
Criatura mal afeiçoada, niilista e burra.
Somos cuspidos por uma vagina semiótica.
E eu continuo sustido com o corpo aberto e vazio, intermitente,
nos maculados fios de cabelo do sol que transpassam
uma pequena fresta na porta fechada do agora.

♣♣♣

VISÕES DE UM LOUCO SOBRE AS NUVENS

Visões de tempestades sobre o mar me amedrontam;
difusão de um monólogo de uma flor esmorecida,
afluência de luz no rasgo da Via Láctea.

Há um temor sobre os galhos da aurora, que desviam
um canto assombroso para dentro da minha consciência.
Há profusão no crepúsculo da terra umedecida.

As paredes amamentam a infância de reminiscências;
sobre nós, crianças brincam com lâmpadas iridescentes,
e eu costuro os vãos dos alicerces que seguram meu coração vazio.

Porque escrevo esse poema com sangue ubíquo.
Conjecturas cantando elegias no corpo dos pássaros,
como se eu não soubesse compreender.

As alamedas flamulam luas que luzem peixes.
A próxima palavra é imprevisível, deus sabe
— mas até ele duvida —.
O fogo nas minhas mãos urge, a liberdade da galáxia me encarcera.

Ao longe, me exprimo, nefelibata, sobre a luz da alvorada,
conectando a essência da vida
com a loucura remanescente da morte.

♣♣♣

ENTRE A CAMA E O ANOITECER

Sobre a violenta coragem do mar,
sobre a expansiva voracidade das ondas,
encontro-me submerso.
Mergulho e ascendo, como uma flor que desabrocha
de dentro para fora das águas.
Minha pupila eclode lírios nas estrelas,
e na terra, a esferográfica grita ondas sonoras,
impacientes e tremendas.
Agora, há em mim o eterno lugar do haver;
as tremendas vertigens da cama;
entre a cama e o anoitecer,
o jazigo límpido e feroz de um espírito em chamas.
Sobre a faca e o garfo, sonha o menino.
Pés que caminham sobre brasas.
Rajadas de palavras e vento, no tsunami dos sentidos.
Mergulho nas estrelas e ressurjo, impávido,
pelas cintilantes horas do ‘agora’.
Não me deixes sonhar, pois, ao longe, queima um horizonte,
e eu não mais poderei tocá-lo, apenas ponderá-lo entre versos e vertebras,
no impactante frenesi do momento.

 

♦♦♦

Christian Dancini é um poeta do interior de São Paulo: São Roque. Ele escreveu Reminiscências, pela editora de Embu das artes chamada Embuscadasartes; Pleroma pela editora Ópera e Dialeto das Nuvens pela editora Patuá. Também já colaborou com as revistas: Mallarmargens; Variações; Ruído Manifesto; Editora Trevo e escreveu um artigo para a revista Sinal Aberto.

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