UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (5) – por Lúcio Valium

COMPASSOS

Somos os dois irmã. Passos lentos nos dias roubados em terra de além Tejo.

Tapas ao cair do escaldante sol. Nas bandas do azul sorvem nossas narinas ávidas. Há vidas, logo embelezem-se. Os olhos com planícies sem fim. Queijo muito fino. Aterrar lentamente. Uma folha na brisa. Nada de utopias nem psicanálise. Esquecidos exames institucionais e ignoradas recomendações. Só apalpar o instante. Inspirar as manhãs e seguir de mansinho. Sem pressa. Em trilhos vazios. Onde árvores antigas repousam. Foram arrumadas ali pequenas casas. E histórias de dor. Que a pintura oficial vai apagando. Com suas escrituras vampiras. Olhamos e sentimos a vida. O que ali sangrou.

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ENTREMENTES

Na instituição aumentam a velocidade. Roubam horas. Espetam farpas metálicas no sono. A ameaça de um abismo. Sem dó.

Também na hospedaria irrompem danças desconexas no voo paranóico.

E medicação para a hipnose dos tumultos. Que veloz é a forma do tempo.

Um doido. Uma estátua inquieta com a ideia da naifada nos clientes. E a coisa anda. Como o formigueiro nas garras humanas. Não há teoria para a dor. Saber dar é um ofício de borboleta. A arte da soldadura é como o cristal. Talvez a seringa esteja a necessitar de pólenes inventivos. E quanto a aspirar a sinalética dos dias um gesto de pele com a sonoridade das árvores.

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MEIGAS MENTES

No corredor mais longo encontrei o doente do quarto 24. Está chanfrado.

É agressivo com os elevadores e insulta máquinas. Quanto à sua lógica verbal é como patinar em zinco com óleo de automóvel. Não tolera perguntas. Despreza hierarquias. Chora sozinho depois de alguma manifestação de afecto. Não escreve nem bebe não lê nem sai para o jardim. Só ouve uma espécie de música minimal e a maior parte do tempo tem o rádio sem sintonia. A meteorologia deprime-o. Caminha sem camisa com uma gabardina curta. Não toma banho. Lava os dentes cinco vezes por dia. Café e copos de leite frio são o seu alimento. Sabe as horas de uma outra forma. Ninguém o detém mais do que catorze segundos.

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FICHEIROS

Ando pelos corredores do edifício como se não existisse ninguém.

Caminho calado olhando o chão. Abro uma porta à sorte. Entro sem saber porquê. Estas palavras não são minhas. O sol enaltece manchas no vidro. Sobre telhados longe jovem grua insinua-se perante antenas vizinhas. Gélida manhã silêncio.

Café e percepções. Regresso em lentas grafias. Após delírios sinápticos.

Um fervor sanguíneo golpeava cérebro e garganta. Perduram tonturas e visões. Nado lentamente a chegar. O som das águas. Acordo agora e ensaio a levitação.

A estratégia dos dedos. Um modesto festim de tinta sobre as chagas.

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VINHO INSUBMISSO

Após eloquentes sessões de choques eléctricos volto ao cheiro dos carris.

Invade-me uma desvairada vontade de saborear os dias. De inventar festivos golpes contra a farsa. Rasguei gráficos e sabotei ecrãs e agora a luxúria e o desplante de vadiar no temporal. Quero tempos em desajuste nas ruas mais despidas. Ignoro os sinais que se acendem aos figurantes. Enojado com o palavreado dos vermes seguirei em diálogo com quem emborquei vinho insubmisso. Não tenho fórmulas nem pragmatismos na folha de serviço. Vejo que a alta finança encaixa lustrosas maquias em cérebros curtinhos. Proliferam modas e fardamentos na ornamentação do real. Tudo é vendido.

Não estou para negócios. Não viajo no tempo deles. Andarei pelo areal de manhã sem deixar rasto. Vou ao teu encontro e ficaremos deitados na cavidade das grandes rochas de cobre.

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POSTAL

Daqui deste laboratório sem uso escapando a reuniões nocivas lhe digo.

Senhora escreva teatro. Não arda no fogo dos documentos. Ouça a voz rebelde dos anjos Oleg. E deite-se no tapete. Dentro das meiguices. Regresse célere à oficina.

As plantas aguardam-na. Os ponteiros querem seguir os seus passos. Não permita que desenhem no seu caderno. Faça a sua poesia de candeeiros. A luz pintada com o seu verniz. Não fique no limbo de sinónimos dolorosos. Venha até à cabana das especiarias. Um desvio do mundo. Um golpe um recolhimento.

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DESALMADA MENTE

Corpo de farrapos. Mente sugada por ferros retorcidos. Sinto-me um velho piano desdentado um sapato miserável. Dormindo em apodrecidos baldes de petróleo e bebendo diluente por taças ferrugentas. Feridas e espasmos. Gestos estragados danificados. Um doente atravessando a noite ininterrupta. Garras inclementes amarrando o ser à voracidade do veneno.

Porquê a gélida dor íntima. Pergunta contínua do louco. Que fizeram os médicos na sala de ensaios. Inquietação repetitiva do louco.

Estive em zona frequentada por loucos. Estou a chegar para te ver. Para dormir na hospedaria abraçado ao teu sono. Como um gato ao lume. Para beber um vinho de partilha do mundo. Na tua voz.

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RASGAR

Chegar à farsante instituição com a garganta inundada de cola sangrenta e os olhos revestidos de líquenes bolorentos. Os últimos tempos têm sido um pandemónio. Pântanos os dias e exaustas as noites. Sabemos de intempéries e de cérebros desvairados. Mas temos no coração luas mentais e uma viagem já longa nos ossos. Também aprendemos passos da dança dos absurdos. Nada de misérias na celebração do nosso festim. Sem lantejoulas. Haveremos sempre de descansar a pele nas grandes rochas. Como pétalas na água.

Entretanto há meninos que se tornam monstros engendrados por mentores ávidos de sangue. Que se afoguem no seu excremento vital. Na sua miséria ornamentada.

Era o que procuravam.

Aqui acorda-se na hospedaria às 5.20 da manhã e enterram-se as unhas na máquina de escrever. Um ofício medicinal. Não sem antes beijar suavemente a fêmea. Que guardará o território enquanto o ensonado operário haverá de regressar à gruta com o vinho das noites. E com vontade de lhe lamber o corpo levanta-se e vai em direcção às vielas caóticas.

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SERVIÇOS

No edifício das altas paredes somos devorados pela repetição. Ser-se como se diz que se deve ser. Continuam os carimbos e as etiquetas. Códigos e eléctrodos viciados. Encenam-se nulidades. Um oásis este panorama. Tudo humanos bem postos. Reproduções guiadas por decreto. Programas em voga. Estamos em cima dos lançamentos recentes. Nada escapa. Queremos tudo. Dirão obedientes estes exemplares numerados. Enquanto isso dedico-me às teclas. Num pequeno laboratório armazeno pensamentos desprezados. Evidenciam uma sonoridade anacrónica. Teimam em soldar lascas de tempo. Quer dizer são peças de vida. Participam da substância do ser. Uma enfermidade e uma companhia.

O exercício da solidão não domesticada.

Acabaram as audiências e é quase noite. Saio disparado. Preciso de cama.

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NAS MÃOS

Não apareci na instituição. Mediquei-me sozinho. Terapia de gestos individuais.

De apetites animais. Vai a tarde encontrando a noite. Cai fumo molhado sobre as cabeças. Os corpos são louça fria dentro das roupas. Também não vou às ruas que sangram. Ficarei olhando os telhados e as velas pela janela da hospedaria. Evito a leitura. O mar e a ventania são música na escuridão. Convidam as mentes à dança dionisíaca. Na hospedaria dormem os corpos após um ano de sofá. Lençóis quentes envolvem a jangada e caixas de livros flutuam com ela. Laranja negro é o céu terrestre. Não há noite sem luz. Assim deslizamos até à madrugada incerta.

Para descobrir a cara. Mantemos o andamento. O baile que inventamos contra a miséria capitalista. Os nossos corpos nas suas valsas íntimas. Bebendo vinho insubmisso. E em tempos por vezes doidos as mentes colam peças na cabana. Onde as mãos do homem passeiam sob o vestido.

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Lúcio Valium – Um ser em desvio, sem lugar! Um homem vivo, em desordem! Um forasteiro que nos caminhos encontrou palavras e perdeu moradas!