O TERRAPLANISTA – por Francisco Fuchs

Até aquele dia, Emanuel jamais questionara o que seu professor lhe ensinava. Ao contrário de alguns de seus colegas, que com o passar dos anos aprenderam a temperar as lições recebidas em sala de aula com um grão de sal, ele sempre se deu por satisfeito com todas as explicações. Emanuel era inteligente o bastante para saber que sua inteligência não era privilegiada e, por isso mesmo, esforçava-se o quanto podia para assimilar o conteúdo das aulas. Ele não enxergava a si mesmo, no entanto, como um conformista; apenas não via razão para questionar verdades há muito estabelecidas. Se o verdadeiro não se torna falso, nem o falso se torna verdadeiro, por que perder tempo com vãs especulações? Assim, se era por aderir à verdade que o chamavam, por vezes, de conformista, e se a zombaria de que era alvo soava aos seus ouvidos como um elogio ao invés de uma ofensa, o que mais poderia fazer senão conformar-se?

Os dois colegas de Emanuel que mais desdenhavam de sua estrita aderência ao Programa apenas faziam, entretanto, objeções menores a algumas rotinas secundárias. Um deles dizia, por exemplo, que o topázio rosa não era tão eficiente na cura do câncer de estômago; do contrário, teria curado suas duas tias, que foram acometidas daquele mal quase simultaneamente e vieram a falecer poucos meses depois. Outro, mais ousado, criticava a queima cerimonial das vassouras usadas para espantar espíritos malignos como um desperdício inaceitável, e advogava que toda aquela madeira podia ser aproveitada como lenha comum se houvesse uma simplificação das solenidades e se os sacerdotes de segunda classe fossem autorizados a conduzir os rituais. Sugestões como essas, elaboradas por estudantes de todas as escolas secundárias e devidamente filtradas pelos seus Professores, eram submetidas ao julgamento do Supremo Conselho Diretor; e mesmo os questionamentos mais insólitos ou intrincados eram prontamente respondidos. Não era raro que alguns desses estudantes fossem escolhidos para estudar em escolas de elite da Capital, o que acabou acontecendo, aliás, com os dois zombeteiros colegas de Emanuel. Heresias, no entanto, não eram aceites com benevolência. Aqueles que ousassem questionar as rotinas fundamentais do Programa, ou as próprias decisões do Conselho, eram enviados aos inúmeros campos de reeducação, onde tantos encaneciam e morriam; mas o Conselho era magnânimo, e somente os mais recalcitrantes chegavam a ser executados.

Emanuel havia estudado História e sabia que aquele era o melhor dos mundos possíveis. É claro que ninguém que possuísse um mínimo de sanidade mental comemoraria a morte de 98% da população mundial na Grande Guerra Globalista, e que a lembrança de tão monstruoso evento era, ao menos para a maioria, eternamente dolorosa. Mas o fato é que, embora ao custo do sacrifício de tantas vidas, enfim a humanidade havia encontrado o rumo da suprema realização. Em vez de recordar os horrores da guerra e lamentar os que ficaram pelo caminho, tínhamos de celebrar a liberdade que passamos a usufruir. Como reza o ditado popular, todo Beta acaba por encontrar seu Alfa; pois foi a partir da grande refutação de Eratóstenes no YouTube que as fábricas de falsários foram definitivamente fechadas, e o período das trevas, deixado para trás. Muito embora o YouTube e o Magister já não existissem há séculos, e não houvesse nenhum registro daquele momento histórico, aquelas palavras haviam sido gravadas não apenas na Doutrina, mas no coração das pessoas. Isso sim, era algo a ser celebrado, e todos esperavam ansiosos pelas festividades que marcariam o bicentenário do fim da Guerra Globalista, durante as quais todas as rações seriam dobradas e seria até permitido, aos cidadãos de segunda classe, o consumo moderado de álcool e de alimentos impuros. A única nota destoante na comemoração do bicentenário foi a decisão de suspender completamente, naquele ano, os sorteios da loteria de esterilização. “Mais braços, mais abraços”, rezava o mote da campanha que, obviamente, desagradou a população. Algum sórdido globalista havia plantado o boato de que aquela medida excepcional devia-se aos milhões de mortos pela recente epidemia de sarampo, mas era evidente que não havia qualquer relação entre as duas coisas. O falsário foi enforcado em questão de dias e não chegaria a ver, no ano seguinte, o nascimento de uma infinidade de crianças que, dentro de alguns anos, estariam na escola a aprender o Programa.

Ter um bom professor era uma questão de sorte. A não ser em casos excepcionais de aposentadoria, invalidez ou morte, só chegávamos a conhecer dois professores: um para o ciclo primário, outro para o secundário. Depois disso, ou seja, a partir dos quinze anos, estávamos prontos para trabalhar e constituir família. Aqueles que eram sorteados na loteria de esterilização recebiam a oportunidade de concluir um terceiro ciclo de três anos, tornando-se sacerdotes de primeira classe. Os sorteados que detestavam os estudos e recusavam essa generosa oferta, abdicando do prestígio advindo do exercício do sacerdócio e da cidadania de primeira classe, ganhavam o privilégio de fazer sexo sem restrições e sem conseqüências; assim, por uma razão ou por outra, ganhar na loteria era sempre motivo de júbilo.

Eu adorava o professor de minha escola, que acumulava os títulos de Professor e de Sacerdote de Primeira Classe. Paulo possuía aquela rara virtude de ir ao coração das coisas sem apelar a truques retóricos ou explicações complicadas. Ele sempre terminava suas aulas repetindo um dos axiomas fundamentais da Doutrina: “A sabedoria impõe limites ao conhecimento.” Ao mesmo tempo, porém, fazia questão de insistir no valor do saber e da curiosidade investigativa, explicando que “impor limites” não significa sufocar inteiramente o desejo de conhecer, mas apenas moderá-lo para que ele jamais entre em contradição com o Programa. “Em caso de dúvida, execute o Programa, aplique a Doutrina”, ensinava.

Lembro-me, como se fosse hoje, da aula sobre a segunda definição de circunferência. Dias antes, havíamos definido a circunferência como um conjunto de pontos eqüidistantes a um ponto central. Nessa aula, porém, Paulo disse à turma que essa definição não era suficiente e nos perguntou se algum de nós sabia o porquê. Nenhum aluno se manifestou. Paulo repetiu:

— A definição é perfeita, incontestável, e mesmo assim ela é insuficiente. Sabem por quê?

A turma permaneceu em silêncio. Paulo pegou um pedaço de giz, fixou-o numa das pontas de um grande compasso de madeira e usou-o para traçar uma circunferência no quadro-negro.

— A definição é insuficiente porque é incapaz de gerar uma circunferência.  A partir de agora saberemos produzir circunferências, e até círculos, simplesmente com base nesta nova definição: “um segmento de reta que se move sobre um plano enquanto uma de suas extremidades permanece fixa”. Agora prestem atenção: o que existe entre as duas pontas de um compasso? Uma linha reta. Assim, se fizermos o mesmo movimento com o giz deitado no quadro-negro, e não quase perpendicular a ele, como fazemos ao usar o compasso, obteremos não apenas uma circunferência, mas uma circunferência totalmente preenchida, ou seja, um círculo. Se tiverem interesse, façam a experiência usando uma folha de papel e um bastão de carvão…

Essa aula me marcou porque, depois dela, calhei de aprender a desenhar circunferências quase perfeitas no quadro-negro, usando o antebraço como se fosse a perna de um compasso girando a partir do cotovelo. Ao descobrir minha habilidade, Paulo passou a me chamar sempre que era preciso desenhar uma circunferência no quadro-negro. Era mais prático requisitar minha ajuda do que servir-se do pesado e desajeitado instrumento que usara até então, e eu ficava orgulhoso em desempenhar o papel de compasso oficial da turma.

Mas acabei me lembrando dessa lição por outro motivo, vários meses depois, desta vez numa aula de História das Pseudociências.

— Como vocês já sabem, os Antigos, enganados pelas Fábricas de Falsários, ensinavam que a Terra era uma esfera quase perfeita e que havia um Universo de tamanho inimaginável repleto de formas esféricas. Hoje vou contar a vocês como eles explicavam a formação de uma esfera, que, como vocês sabem, é uma forma tão perfeita que pode ser considerada divina.

A maioria dos alunos não tinha o menor interesse nessas aulas, mas aquelas teorias absurdas me fascinavam. Os Antigos não apenas acreditavam em coisas como “gravitação”, “evolução” e “viagens extraterrestres”, mas diziam que todas essas coisas eram comprovadas cientificamente, e usavam máquinas extremamente complexas que existiam na época para criar simulacros de realidade. Que grandes ilusionistas eram eles, produzidos em série naquelas Fábricas de Falsários que não admitiam vozes dissonantes! O fato é que nosso Programa, elaborado a partir de inúmeras rotinas colhidas em diversas fontes confiáveis, não faz menção a nenhuma dessas teorias mirabolantes.

E nem poderia. Afinal, o Programa é considerado infalível justamente porque não destoa da realidade, ou seja, jamais contradiz a mais elementar observação. Por exemplo, qualquer um pode constatar com seus próprios olhos que animais mortos não se transformam em petróleo, que nunca um macaco acordou dando bom-dia e que a Terra, embora tenha lá seus altos e baixos, é plana. Mas os Antigos, que pareciam querer causar transtornos mentais nos mais humildes, não podiam deixar nem mesmo essa simples verdade transparecer, e insistiam em chamar a Terra de “globo terrestre”. Como podia a humanidade ter permitido que um simples bibliotecário causasse mais de dois mil anos de confusão nas mentes de bilhões de pessoas?

— E então, como vocês acham que essas “esferas celestes” da antiga pseudociência se formavam?

— Acho que eu sei, Professor.

Tomei um susto tão grande que quase perdi a voz: pois eu mesmo havia dito aquelas palavras. “Eu” é uma maneira de dizer, pois se as palavras saíram de minha boca, eram “minhas”; porém elas não se originavam da minha consciência vulgar, essa que sabe que está chovendo porque percebe pingos d’água a cair do céu e sabe que estamos com fome porque sente o estômago queimando. Eu estava como que tomado pelo sopro invisível de uma idéia; era como se eu não estivesse pensando em absoluto, e, no entanto, algo em mim sabia que, na verdade, aquela era a primeira vez na minha vida em que eu estava pensando alguma coisa. Todas essas coisas me passaram pela cabeça na fração de segundo que antecedeu minha resposta.

— Assim como o círculo se forma pelo movimento de uma linha reta em torno de uma de suas extremidades, a esfera se forma pela rotação de um círculo em torno de seu diâmetro.

Paulo se manteve em silêncio por quase meio minuto, tempo que, numa sala de aula, era uma pequena eternidade. Ele parecia não acreditar que eu, aluno esforçado porém medíocre, tivesse dito aquilo, e principalmente, que eu tivesse dito aquilo daquele modo; pois qualquer imbecil pode enunciar uma verdade e continuar sendo imbecil; e mais do que isso, uma verdade incontestável, quando enunciada por um imbecil, acaba tornando-se, de alguma forma, um pouco menos verdadeira. Mas o que havia acontecido ali era algo inteiramente diferente; era a própria verdade — embora humilde, embora parcial, embora perfectível — que havia saído pela minha boca. Curiosamente, aquele era um momento que pertencia apenas a Paulo e a mim; os demais alunos não perceberam nada do que se passava.

— Emanuel, sua resposta é excelente, mas está, ao mesmo tempo, correta e incorreta. Posso explicar para você?

— Claro, Professor.

— Primeiramente, note que não é preciso um círculo completo; a rotação de um semicírculo ao redor de seu diâmetro leva ao mesmo resultado. Mas não é disso que quero falar. Sua resposta está correta, mas apenas no âmbito da Geometria. Quando falamos da formação de um planeta esférico (ainda que não exista tal coisa), não podemos nos limitar a pensar em termos de Geometria. Devemos entrar no terreno de outra ciência, a Física. Note que a existência da coisa não está em questão: agora mesmo estamos falando de realidades que não existem (planetas esféricos), mas isso não nos desobriga de nos atermos, em nosso esforço de imaginação, às propriedades reais que essas coisas não existentes teriam se existissem. Você está me acompanhando?

A essa altura, Paulo estava dando aula somente para mim e nós dois sabíamos disso. Embora eu não tivesse assimilado seu discurso, queria muito que ele continuasse e assenti com a cabeça como se houvesse entendido. Paulo notou minha artimanha e fez mais um esforço.

— Imagine que ainda existissem, nos dias de hoje, ateus. Pois bem, o que eu estou dizendo é que mesmo um ateu poderia, embora sem acreditar em Deus, estudar Teologia; e que essa Teologia seria a mesma estudada pelos crentes, ou seja, não faria diferença que o ateu acreditasse ou não em Deus; ele teria de estudar os atributos e nomes divinos e assim por diante… Ora, do mesmo modo, se queremos imaginar a formação de um planeta esférico, temos de aceitar as premissas que seriam válidas num mundo em que planetas existissem…

— Mesmo que não acreditemos em planetas esféricos! Agora entendi, Professor.

— Então posso continuar. Vamos fazer, todos, uma experiência mental. Imaginem uma grande nuvem de matéria fumegante rodopiando no espaço, girando sobre si mesma. Essa nuvem de gás e poeira vai se adensando gradativamente (pois nesse universo, não esqueçam, existe a gravidade), e aos poucos vai esfriando, e se condensando ainda mais, sempre girando em torno de um eixo…

Enquanto falava, Paulo fazia um gesto com as mãos em que uma girava em torno da outra, até que, por fim, ele as uniu, como se desse um aperto de mão em si mesmo.

— Enfim, quando a nuvem original estivesse muito mais fria e compacta, totalmente condensada, endurecida, qual seria a forma do objeto que ela teria formado? Um quadrado? Um triângulo?

— Uma bola… Claro que seria uma bola… A forma perfeita…

— E essa esfera, depois de condensada, manteria seu movimento e continuaria a girar em torno de um eixo; é o que eles chamavam de “rotação”. Portanto, sua intuição, Emanuel, estava correta, porém incompleta, já que era uma idéia puramente geométrica e não estava ancorada na Física dos Antigos. Mas lembre-se, planetas esféricos não existem! Tudo isso serve apenas para explicar como eles pensavam… É bom sabermos essas coisas, seja por curiosidade histórica, seja para não cair nos mesmos erros.

Saí daquela aula sem saber o que pensar. O fato de haver chegado tão perto da solução de um problema inexistente, já que não dizia respeito a nada de real, por meio de um raciocínio correto, ou ao menos parcialmente correto… Aquilo era demais para mim. Naquela noite, tive sonhos estranhos. Num deles, um redemoinho fortíssimo me levava para bem longe da Terra, cujo domo brilhante de metal martelado ia ficando mais e mais distante; tentava libertar-me, mas em vão; tentava gritar, mas não conseguia.

A angústia de Emanuel foi diminuindo à medida que os dias se sucediam e as aulas abordavam tópicos mais prosaicos. Uma coisa, no entanto, ainda o incomodava. Parecia-lhe que Paulo nunca mais olhara para ele do mesmo modo; porém não conseguia perceber o que, exatamente, havia mudado. Talvez Emanuel tivesse conquistado um bocado de admiração do Professor, mais nada; mas se era apenas isso, por que teria ele passado a sentir-se tão pouco à vontade na escola?

Tudo se precipitou numa das últimas aulas do ano. Naquele dia, Paulo estava mais eloqüente do que de costume, e repisava pontos fundamentais da Doutrina que todos os estudantes já estavam carecas de saber. Como puderam os Antigos pensar que o tamanho do universo era descomunal e que todas aquelas luzes no céu eram sinais luminosos vindos de um passado distante, débeis acenos de estrelas que, de tão longínquas, podiam haver desaparecido há muito tempo? Como puderam diminuir a tal ponto a dimensão do homem? Como podíamos ser apenas os excrementos de um verme microscópico orbitando um incandescente grão de pó? Apenas a concepção da Terra Plana era capaz de satisfazer as aspirações espirituais mais profundas da humanidade, que, protegida pelo Domo e pelas sábias deliberações do Supremo Conselho Diretor, habitava o único mundo que jamais havia existido; e podíamos ser bem pequeninos em relação a ele, é verdade, mas de modo algum éramos infinitesimais.

— Vocês estão quase formados e já podemos examinar esse argumento com mais profundidade. Vou começar com uma pergunta: um gigante vale mais do que um anão?

Paulo olhava para mim como a esperar uma resposta, e eu não me fiz de rogado.

— Claro que não!

— Mas um gigante está mais próximo do tamanho da Terra do que o anão.

— Não é desse jeito que funciona, Professor! O gigante pode ser muito maior do que o anão, mas, comparados à Terra, os dois têm praticamente o mesmo tamanho.

— Correto, Emanuel… Vamos explorar as conseqüências desse raciocínio? Se, considerando-se a escala da Terra, a diferença de estatura entre um gigante e um anão é desprezível, isso não quer dizer que o tamanho de um homem pouco significa?

— Não significa nada! Nem o tamanho, nem a cor da pele, nem o formato do rosto… Segundo a Doutrina, tudo o que importa na vida de um homem é a execução do Programa.

— Mas se o tamanho do homem, assim como outras características físicas, nada significa, e se o valor do homem não reside nelas, por que insistíamos em compará-lo, tenha ele o tamanho que tiver, a um universo incomensurável? Por que essa comparação nos causava tanta angústia? Por que nos sentíamos tão pequenos? E por que continua sendo importante para nós viver num mundo com limites tão bem definidos?

— Não sei, Professor… Estou um pouco confuso…

Onde Paulo queria chegar com essa conversa? Olhei em torno e vi que os outros alunos não pareciam compreender o que estava acontecendo.

— Emanuel, como nasce uma montanha? Nós estudamos isso. Você diria que são forças geológicas que fazem aquela parte do terreno elevar-se?

— Sim.

— E as montanhas podem ser bem grandes, não é verdade?

— Sim, existem montanhas muito grandes e cordilheiras enormes.

— E as montanhas são muito maiores do que uma bactéria, não são?

— Certamente…

— Mas nós já concluímos que o tamanho nada significa, não é mesmo?

— Sim…

— E você ainda não percebeu?

— O quê?

— É absurdo comparar uma montanha a uma bactéria. Qualquer bactéria possui mais valor do que a maior das montanhas.

— Mais valor?

— Exato.

— Não entendi.

— Uma montanha é um amontoado. Gostamos de lhe dar um nome próprio e de lhe atribuir uma individualidade, e não há nenhum problema nisso. Um vulcão, por exemplo, ou mesmo um furacão: nós lhes damos nomes próprios e gostamos de pensar neles como se possuíssem uma personalidade, humores, caprichos… mas sabemos, no fundo, que não é nada disso. Uma montanha, tal como o vulcão e o furacão, simplesmente acontece. A bactéria, por sua vez…

— Ela também acontece!

Mais uma vez, Paulo exibiu aquela expressão indecifrável que me intrigava.

— Sim, ela também acontece, mas, ao contrário da montanha, ela acontece produzindo a si mesma. Todos os seres vivos acontecem produzindo a si mesmos (e aos demais), e isso basta para fazer deles algo inteiramente diferente de todos os amontoados, sejam eles montanhas, planetas ou estrelas. Mas, se for assim… que importa se o Universo é infinito ou do tamanho da Terra?

— Um momento, Professor… Nós não produzimos a nós mesmos; quem nos produz, e produz todos os seres vivos, é justamente o Programa!

— Exato, Emanuel! Mas… quem executa o Programa? Será que nós mesmos não damos um jeito de modificar o Programa que nos produz, não diretamente, é claro, mas indiretamente, aproveitando as brechas do acaso e usando-o, sempre que possível, a nosso favor?

— Não sei, Professor. Tudo isso é muito difícil para mim.

— É difícil para todo mundo, Emanuel. De qualquer modo, estou só especulando. Em caso de dúvida, execute o Programa, aplique a Doutrina!

O resto da turma permanecia indiferente. Pela primeira vez, comecei a levar a sério a idéia de que todos estavam ali somente pela ração extra, e que nada mais lhes importava. Nosso Professor estava pondo em dúvida importantes pontos da Doutrina, mas ninguém parecia estar tenso; ninguém roía as unhas, ninguém fazia cara de espanto… E a obrigação de defender a Doutrina era dele, não minha! Ou seria minha?

Naquela noite dormi mal e tive pesadelos medonhos. Sonhei que a Terra era uma magnífica bola azul vagando pelo espaço infinito, mas que eu pilotava uma gigantesca máquina de terraplanagem capaz de achatar continentes e oceanos. Eu pisava com raiva no acelerador e, à medida que avançava, planificava a Terra inteira e esmagava os globalistas contra o muro de gelo da Antártida, tingindo de vermelho as águas plácidas e geladas.

No dia seguinte, assim que acordei, fui ao Posto do meu bairro e pedi uma audiência com o Supremo Conselho Diretor. Fiquei surpreso quando soube que ela seria marcada para a semana seguinte, e mais surpreso ainda ao saber que seria realizada num bairro vizinho. Então eu havia morado durante toda a minha vida, sem desconfiar de nada, tão perto da mais elevada autoridade planetária?

Aquela semana demorou a passar. Dormi pouco na noite anterior ao dia da audiência, mas não perdi a hora. Senti-me decepcionado quando cheguei ao prédio do Conselho. Era, sem dúvida, um prédio imponente, mas muito velho e mal conservado, de modo que quem passasse diante dele jamais adivinharia que o planeta inteiro era dirigido dali. Subi as escadas devagar, pois havia chegado antes da hora marcada. Fui recebido numa sala de reuniões ampla, porém decrépita; as cadeiras revestidas de veludo vermelho roído por traças e os velhos mapas desatualizados nas paredes nem de longe sugeriam a importância do lugar. Três sacerdotes de primeira classe, todos de cabelos brancos, me saudaram e indicaram a cadeira que havia sido reservada para mim. Poucos minutos depois, fui autorizado a expor meu caso.

Contei tudo que sabia. Disse-lhes que havia aprendido, desde a mais tenra idade, que havíamos sido criados por um Programa divinamente inspirado, e que meu Professor, ele mesmo um alto sacerdote, havia exposto idéias perturbadoras em sala de aula. Abri meu coração e disse-lhes que, influenciado pelos ensinamentos do Professor, quase cheguei a acreditar que a vida na Terra, na nossa Terra, a Terra das plantas, dos bichos, a Terra do homem e de tudo que virá depois, realmente poderia estar evoluindo na superfície de uma esfera quase perfeita que rodopiava num universo infinito. Disse-lhes, por fim, que não desejava o mal de meu Professor, mas que, segundo o Programa que aprendi a executar, o ensino de heresias não podia ser tolerado; e que, assim, submetia meu caso à infinita sabedoria do Conselho.

— Muito bem, disse, após alguns momentos de silêncio, o ancião que aparentava ser o mais velho. Trouxemos para esta reunião o seu Professor, que tem o direito de explicar-se diante de todos. Vejamos o que ele tem a dizer.

Ditas essas palavras, Paulo entrou no recinto acompanhado por um jovem um pouco mais velho do que eu. Não havia raiva em seu semblante, mas parecia estar triste.

— Como vai, Emanuel? Quero apresentar a você meu filho Simon.

— Seu… filho?

— Sim.

— Mas… O senhor não é um sacerdote de primeira classe? Não ganhou na loteria quando tinha a minha idade? Não compreendo… Como pode ter um filho?

— Emanuel, há muitas coisas que você, infelizmente, não sabe. Eu só estou aqui porque gosto de você. Trouxe comigo meu filho para que ele se mire no seu exemplo e jamais cometa o erro que você cometeu.

— Que erro?

— Uma coisa de cada vez… Primeiramente, quero que você compreenda um pouco melhor como funcionam as coisas. Desse modo, não se sentirá injustiçado.

Aquelas palavras, pronunciadas tranqüilamente na presença dos membros do Conselho, soavam como uma ameaça e deixaram Emanuel arrepiado.

— Injustiçado, Professor?

— Sim, Emanuel. Onde você pensa que está?

Emanuel compreendeu imediatamente que alguma coisa ali estava muito, muito errada, mas não podia fazer outra coisa senão cumprir valentemente seu papel.

— Na sala de reuniões do Supremo Conselho Diretor?

— Emanuel, você, como sempre, está certo, mas apenas parcialmente. Você está, de fato, na sala de um Conselho Diretor. Há, no entanto, milhares de salas como esta em todo o mundo. As decisões são tomadas ora aqui, ora ali, ora em outra parte. Não importa, pois o Programa é sempre o mesmo. Por vezes otimizamos uma rotina, mas é só isso.

— Milhares de Conselhos?

— Milhares. Como acha que um pequeno grupo de pessoas seria capaz de julgar e resolver os problemas do mundo inteiro? Na verdade, Emanuel, mal se pode dizer que existe um Supremo Conselho Diretor. Quero dizer, ele existe, mas seus membros só se reúnem para jogar cartas e fazer intermináveis orgias com moças e rapazes que acabaram de ganhar na loteria.

— Não acredito no senhor.

— Compreendo. Na sua idade, eu também não acreditaria. Emanuel, quero que saiba que, se dependesse apenas de mim, nada disso estaria acontecendo. Você quer me escutar?

— Quero.

— A coisa toda é muito simples. Todos os seres vivos executam um programa que está escrito em suas próprias células. O Homem, embora também possua um programa desse tipo, foi… programado para executar também um outro tipo de programa. Está me acompanhando?

— Estou.

— O problema é que os programas humanos foram se multiplicando, e todos os homens queriam impor aos demais o programa que haviam adotado. Com o passar do tempo, a situação foi se tornando insuportável: os programas se tornaram mais letais, e os meios para realizá-los, cada vez mais poderosos. No século XX, dezenas de milhões de pessoas morreram em conseqüência direta da execução de uns poucos programas, e por causa da guerra outras dezenas de milhões de vidas foram perdidas. Por fim, no século seguinte, explodiu a Grande Guerra Globalista, que exterminou quase toda a humanidade. Decisões difíceis tiveram de ser tomadas, pois todos os intelectuais haviam sido mortos e nossa tecnologia havia regredido meio milênio. O dilema era terrível: ou teríamos homens livres, ou teríamos uma sociedade organizada. Optamos pela segunda alternativa. Na verdade, não tínhamos opção.

— Mas…

— Deixe-me continuar. Um homem livre é aquele que, dando ouvidos aos outros homens, aprende a produzir a si mesmo, ou seja, a escrever e reescrever o programa que ele mesmo irá executar, e, no decorrer desse processo, auxilia os demais homens a fazerem o mesmo.

— Mas Deus…

— Deus não ensina ninguém a ler, Emanuel, e ninguém pode aprender a ler em nosso lugar. Nós é que temos de aprender a ler por nossa própria conta, pelo nosso próprio esforço, embora precisemos, para tal, da ajuda de outros homens. Sem isso não poderíamos ler o Programa, ou a Doutrina, e muito menos falar de Deus. Sem isso, seríamos simples animais. Nesse sentido, e nesse sentido apenas, a Cultura tem precedência até sobre Deus. Você compreende, Emanuel?

— Não sei… Acho que sim.

— O problema é que é muito difícil produzir uma sociedade de homens livres. Eu sei que você percebeu como eram as coisas no colégio; pude ver isso em seus olhos. Em geral, os homens só querem receber sua ração e executar cegamente um programa que eles não escreveram e que, muitas vezes, sequer compreendem. E como se isso não bastasse, quase sempre o maldito programa visa apenas à submissão de outros homens, ou, em casos extremos, ao seu extermínio. Como eu já disse, a decisão era difícil, mas não tínhamos muita escolha. Por isso impusemos um Programa que, em grande parte, é composto das crenças mais estúpidas que se possa imaginar. Assim nos asseguramos que, por meio da manutenção de uma estupidez generalizada, a sociedade permaneça coesa em torno de um único Programa e de uma única Doutrina. Teremos tempo, no futuro, para nos tornarmos inteligentes de novo. Não tenho muitas esperanças, mas pode acontecer.

Emanuel estava chocado demais para dizer qualquer coisa. O tom daquela conversa o havia deixado preocupado com seu próprio destino, mas ainda queria fazer mil perguntas.

— Então você, que nos ensinou crenças idiotas, chama os Antigos de falsários?

— Gostemos ou não, somos todos falsários, Emanuel. Você acha que estar parcialmente certo é uma prerrogativa sua? Pois saiba que até no Programa há afirmações parciamente corretas! Por exemplo, os Antigos descobriram que existe, de fato, um Domo em torno da Terra. Ele é um escudo magnético que nos protege da radiação vinda do espaço. Mas nós já não entendemos bem como isso funciona, então é mais fácil ensinar que a Terra é plana e usa um chapéu de alumínio na cabeça. É muito mais simples e as pessoas se sentirão ainda mais felizes e protegidas… Mais alguma pergunta?

— Sim… Estou curioso… Como você pôde ter um filho?

— Ah, Emanuel… Você acha que seríamos estúpidos a ponto de deixar o acaso decidir quem seria cidadão de primeira classe e quem não seria?

— Então… são cartas marcadas?

— Sim e não… Tentar abolir o acaso seria apenas uma outra forma de estupidez. Dez por cento dos esterilizados são, de fato, escolhidos por sorteio; é o suficiente para transmitir a sensação de que o sistema é aleatório. Mas oitenta por cento dos “sorteados” são secretamente escolhidos por sua inteligência e beleza; assim, nos asseguramos de ter à disposição gente com suficiente capacidade para assumir as tarefas de direção, e também gente atraente para suprir… outras necessidades. Mas você ainda é jovem demais para compreender o papel que o sexo desempenha num sistema como o nosso. As pessoas se sentem livres…

— E os outros dez por cento?

— Sempre atento à matemática, não é, Emanuel? Esses dez por cento são chamados de imortais porque, aconteça o que acontecer, têm o direito à reprodução garantido. São eles e seus filhos que preenchem as vagas dos Conselhos Diretores. Ocasionalmente, dedicam-se apenas ao sacerdócio de primeira classe ou, como eu, lecionam.

— E qual foi o meu erro? Denunciá-lo ao Conselho?

— Não… Se você fosse apenas um imbecil, ou um fanático, isso até contaria a seu favor. Cães de guarda leais ao Programa são sempre valorizados… Mas você, infelizmente, demonstrou aptidão para o pensamento. Desculpe-me dizer isso, mas se você fosse apenas um pouquinho mais inteligente, teria percebido que, nesta sociedade, pensar é o crime supremo. Apenas os mais dissimulados escapam à nossa vigilância. Veja, tentar criar uma sociedade de pensadores seria genial, mas como pensar é uma rareza, tudo voltaria ao que era antes: teríamos apenas falsários a substituir o pensamento pelo seu próprio Nada ou, não sei o que é pior, por algum dos velhos programas… E como todo programa, por mais tosco ou mortífero ou ultrapassado que seja, sempre consegue muitos adeptos, não podemos permitir que isso aconteça. Já que é impossível escapar das mediocridades combatentes, fizemos da mediocridade unívoca nosso Domo protetor.

Meu estômago estava embrulhado. Durante minha vida inteira havia chamado de “conhecimento” aquele véu laboriosamente urdido, e agora sentia-me nu como uma criança que acaba de chegar ao mundo.

— O que acontecerá comigo?

Depois de um silêncio consternado, Paulo respondeu:

— Lamento. Você será enviado para o lado de baixo da Terra Plana.

Eu estava exausto demais para dizer qualquer coisa. Enquanto era conduzido para o campo de reeducação mais próximo, os guardas que me acompanhavam deram-me conselhos a respeito de meu derradeiro lar.

— Nós estamos vendo que você não é doido, mas prepare-se, há um monte de malucos por lá. Conforme-se, não reaja, e eles logo irão esquecê-lo.

— E jamais tente fugir, é algo que a direção do campo não perdoa!

Agradeci os conselhos e calei-me. Havia um comitê de recepção formado por uns poucos internos que pareciam estar ávidos para impressionar os recém-chegados. Tomei um susto quando um deles aproximou-se e jogou violentamente uma velha bola murcha aos meus pés, dizendo:

— Vês? Estavas redondamente enganado! Eis aí a tua Esfera!

Outro, mais calmo, aproximou-se, fixou-me nos olhos e disse:

— Aqui todos ocultam a verdade. Cuidado, há sinais de corrosão no Domo.

Segui o conselho dos guardas e não esbocei nenhuma reação, nem mesmo quando vi meus dois ex-colegas de turma sentados no pátio. Naquela noite, deitei-me no catre que me foi designado e dormi profundamente.

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Francisco Traverso Fuchs descobriu que o tabaco não torna em fumaça as mágoas, e trocou-o pelo chimarrão. No entanto, devido aos muitos anos de tabagismo, sofre de lapsos de memória relativos à mais recente reforma ortográfica. Ousou traduzir As Leis Sociais, de Gabriel Tarde, foi expurgado e tardiamente descobriu (por que claudica?) o Brasil. É mestre em filosofia pela UFRJ, mas prometeu roubar o fogo e tornar-se filósofo.