“Há coisas encerradas dentro dos muros que, se saíssem de repente para a rua e gritassem, encheriam o mundo”
Federico Garcia Lorca
O locutor verte, derruba mesmo, um tom enfático, grandiloquente na voz. Agora, muita atenção. Chegamos à pergunta decisiva. Quem é que pintou o quadro ‘La Gioconda’, também conhecido como ‘Mona Lisa’? Você tem quinze segundos para responder. E o concorrente, hesita, titubeia. Só quinze…dá vinti! Disse da Vinci? Sim, dá vinti! Muito bem, acertou! Você acaba de ganhar uma biografia ilustrada do Leonardo da Vinci. Parabéns!
Este episódio sobrevive como uma das memórias auditivas mais prezadas da minha adolescência. Eu raramente falhava a emissão do concurso ‘O Saber não Ocupa Lugar’, na onda média da Rádio Tupi, do Rio de Janeiro. E como o saber não ocupa lugar, continuei – e continuo – com a cabeça vazia. Em compensação, fiquei sabendo que um tal Leonardo di Ser Piero, dito da Vinci, era mesmo um pintor muito importante porque em vez de merecer nota dez, ele é credor de uma rotunda e redonda nota vinti, mais rigorosamente vinci.
A Mona e a Dama
Ainda lembro que, após ter forrado umas quantas notas de vinti, decidi viajar até Paris, empurrado pela curiosidade de admirar in loco a famígera Mona Lisa (‘Senhora Lisa’), que na vida real fora a dileta esposa de Francesco del Giocondo, um abastado comerciante de sedas de Florença. E confesso que perante o sacralizado retrato da Srª D. Lisa Gherardini -também conhecida como Lisa del Giocondo, Lisa di Antonio Maria (ou Antonmaria)-,não fiquei decepcionado com a visão.
Mas que ninguém diga que pairei embevecido ante a miragem do esfíngico sorriso da florentina. Falando com sinceridade, não me senti, outrossim, hipnotizado pelo olhar panorâmico da figura plasmada na fetichizada tela, pintada a óleo sobre madeira de álamo, com aplicação da técnica do sfumato, na primeira década do século XVI.
Suspeito, quando não aposto, que teria ficado mais arrebatado, mesmo giocondo (“sorridente”) e até maravilhado se tivesse viajado para Cracóvia (Polônia), animado do escopo de visualizar, ao vivo, no Museu Czartoryski, ‘A Dama com Arminho’, retrato de Cecilia Gallerani, que Leo terá pintado entre 1485-90, sob encomenda de Ludovico Sforza, Il Moro, duque de Milão. Confesso que aquilo que mais me atrai na tela, desvelada a óleo sobre painel, é precisamente o sorriso, apenas prometido, da dama, que era amásia do aristocrata lombardo, protetor de Leonardo, a quem encarregou da concepção do afresco ‘L’Ultima Cena’, para emoldurar o refeitório do seu convento/igreja de Santa Maria delle Grazie, em Milão.
“Não olhes, não olhes, é apenas uma tipa burguesa!”
Mas voltando à vaca fria de ‘La Gioconda’ – salva seja!-, uns anos passados, li, entre o divertido e o compenetrado, um digest biográfico do poeta andaluz Federico Garcia Lorca, dado a estampa na revista ‘Pública’. Esse texto, sem dúvida, que legitimou o olhar altivo por mim lançado, em direção ao valioso retrato da Senhora Lisa.
Embriagado de chocolate quente e empanzinado de croissants, o arquiteto de ‘A Casa de Bernarda Alba’ literalmente esnobou o quadro, aquando de uma visita ao museu parisiense, na companhia da sobrinha de um amigo, no curso da viagem que os levou a Grã-Bretanha. E na época, o poeta em breve imolado pelos franquistas, terá tido o privilégio de mirar o retrato da mitificada matrona sem o obstáculo da proteção do vidro à prova de bala, até de bala de tutti frutti do Little Richard.
A ironia da presente memória assenta na circunstância de eu ter, à mão de “visionar”, uma obra de Da Vinci a escassas centenas de metros da minha residência. Ainda que esse tesouro artístico esteja subtraído da visão plebeia dos leigos, talvez com receio de que esse olhar esparja um raio de malsã e obscena profanação.
Única em Portugal
Leonardo da Vinci tinha o hábito, testificam os biógrafos, de comprar nas feiras, pássaros engaiolados para depois os libertar em plena Natureza. Semelhante ato de ternura pode ser adivinhado num desenho, em que se figura uma menina lavando os pés a uma criança. Essa singela representação é a única obra atribuída ao mestre toscano que integra o acervo de uma coleção de arte preservada num museu português. Uma opus que justifica, segundo a cotação do mercado, muito mais que uma nota de “vinti”…
Com 184 mm por 111 mm, ‘Rapariga lavando os pés a uma criança’ pontifica, sem exagero, como a joia da coroa da Coleção de Desenhos de Mestres da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP), um dos núcleos mais prósperos do museu da instituição. Desconhece-se de que modo chegou ela a esta prestigiada escola de arte portuense. Talvez fruto da doação de um mecenas que optou por manter um escrupuloso anonimato. Ou, quem sabe, em virtude da oferta de algum professor ou aluno da escola, que a tenha adquirido, envolvida num lote, desconhecendo a excelsa autoria.
Datada de 1480, isso significa que foi concluída quando o gênio ainda não tinha completado 30 anos. Um tempo de tirocínio precedendo o período de maturidade que tem no desenho, a lápis e tinta sobre papel, ‘Homem Vitruviano’ – cerca de 1490 – um dos primeiros apogeus do virtuose florentino.
Na opera davinciana, o desenho ficou para a posteridade como um dos segmentos mais prolíferos. No londrino British Museum se preserva um diversificado acervo de gravuras, desenhos e estudos. Em destaque está um somatório de mais de 20 trabalhos dos seus primeiros anos artísticos. Na maioria são esquissos e testes para pinturas, numa dimensão work in progress. Não será um exercício especulativo sustentar que para ele –a exemplo do que acontece com a esmagadora maioria dos pintores-, o desenho era uma antecâmara para mais superlativas expressões do seu estro singular. Nos desenhos de teste do maestro é possível antever as diretrizes da sua futura deriva criativa em direção a áreas mais prosaicas e pragmáticas como a engenharia militar. Essa vocação utilitária aparece bem documentada em ‘Da Vinci’s Demons’, a excelente série de ficção da FOX, onde se testemunham os atributos de polímata do bastardo nascido em Anchiano, um vilarejo da comuna de Vinci, na província de Florença.
A bom recato num cofre
Contudo, o solitário Da Vinci português, pouco maior do que um postal ilustrado, foi durante muito tempo creditado a Raffaello Motta (dito Raffaellino da Reggio), um pintor da escola maneirista, que morreu precocemente aos 28 anos. Sob essa autoria, o quadro foi exibido pela primeira vez, no âmbito de uma mostra da coleção de desenhos italianos, realizada na Escola Superior de Belas Artes do Porto (ESBAP), em 1962.
Três anos passados, o especialista Philip Pouncey viria a identificá-lo como resultado da inventiva de Leonardo. Corroborando sua tese, deu à estampa em 1978, um artigo em que fundamenta essa atribuição. A identificação ganhou ainda mais consistência e solidez quando o historiador Carlo Predetti, reconhecida autoridade na obra deLeo, relacionou o desenho (“pintado” com tinta à pena e aguada) com outros constantes da coleção de Windsor e dos Uffizi.
“É um desenho de trabalho, uma imagem pertencente a uma série de criações similares. Peça de um puzzle, se assim podemos dizer. Foi a contextualização estilística com outros da mesma linhagem, já catalogados como seus, que abriu ensejo à identificação”, explica a Profª Lúcia Almeida Matos.
Conforme adianta a responsável pelo espólio, a obra está avaliada em cerca de um milhão de euros. Será esta (alta)cotação razão bastante para que a tocante pérola renascentista esteja mantida a bom recato, no interior de um cofres secreto?. Pois é, meu caro Immanuel Kant, perante o belo, o juízo estético será a expressão de um sentimento de prazer puro e desinteressado. Todavia, perante idêntico belo, o juízo financeiro do mercado de arte é a expre$$ão de um $entimento de lucro puramente intere$$eiro.
Se acaso o(a) leitor(a) desejar admirá-la ao vivo, terá de estar atento(a) ao anúncio de uma mostra que inclua o desenho. Em Portugal, uma das mais soberanas oportunidades aconteceu numa exposição realizada no Museu Nacional de Soares dos Reis, incluída no programa da ‘Porto/2001’.
“Este desenho –tal como outros do acervo – não pode estar em exposição permanente. Não só para prevenir a ameaça de furto ou roubo, mas também para protegê-lo da deterioração e de outro tipo de riscos”, justifica Lúcia Almeida Matos.
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Danyel Guerra (aka Danni Guerra) nasceu na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Tem uma licenciatura em História Universal da Infâmia pela FLUP. É jornalista nas horas (mal) pagas e autor literário nas horas com vagas.
Publicou os livros ‘Tomás Gonzaga-Em Busca da Musa Clio´’, ‘ Amor, Città Aperta’, ‘O Céu sobre Berlin’, ‘Excitações Klimtorianas’, ‘O Apojo das Ninfas’, ‘Oito e demy’, ‘Fernando de Barros-O Português do Cinemoda’ e ‘Os Homens da Minha Vida’.
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