CORPO DO AMOR
falar de amor é a tentativa de decifrar
o escuro divino com a intuição do âmago
esbarrar no vazio tropeçar no tudo e
inventar meio mundo dando voltas
nas estrelas caídas
mais fácil é falar do teu corpo
do teu copo
do teu sopro de natureza cálida
a morfina dos seus olhos amedrontam
as senhorinhas católicas do meu peito
elas fogem da sua boca despida de terra
e já não guardo mais o mundo todo em mim
-faltam as senhorinhas católicas
amor não é só teu corpo de entranhas ar e fogo
afinal
não é só perfeição
é o devaneio pagão que posiciona os limites
do mundo na curva da sua nuca
e coloca crianças infinitas para escorregar
feito nuvem no seu pescoço
deslizando pelo planeta água
amor é sobre coragem
sobre um salto de ponta num oceano de gota
irregular e doce
é uma prece à assimetria imprescindível
e charmosa das maçãs do rosto
uma ode às nuvens que nunca são iguais
e se misturam eternamente
a cor e o cheiro da manhã nua são a única
harmonia do mundo mais serena
que os tons da sua pele
o ego fraco dos homens bonitos
e o choro que não se assume nem se rende
não erguem meu seio florido
nem inclinam o lírio do meu sossego ao céu
a carne a alma e o espírito se elevam
na força que reivindica a importância de não ser
de amar e
de se perder
o amor não se deita entre paredes de orgulho
e acaba por morrer de cansaço
se os pelos dos poetas não crescessem
na direção do sol que estala lirismo
eu conseguiria domar o ócio
e matar as horas com golpes de afazer
mas vivo à deriva
na eterna espera de não sei o quê
carregando o devir numa bolsa que
nunca estoura
saciando o signo do amor escrevendo
poemas sobre seu corpo
sobre a falta que faz as senhorinhas
católicas no meu peito
sobre o caos sagrado que dá vida à vida
e sobre esses lábios da luamor que beijam
meus pés minhas dores e minha noites
quando me atrevo a falar de amor
e do teu corpo.
BASTARDO
os cordões umbilicais nunca cortados
orbitam um sol que arde sem ter nome
a palpitação dos corações alheios
põe o arrepio pra brincar e
me faz beijar um planeta que não tem nome
o suspiro que invade um coração sem porta
me lança à renúncia que é amar
um homem que não tem nome
crianças que me cobrem na madrugada fria
usam o cerol de suas pipas para sangrar
poemas sem nome
todos os presidentes impronunciáveis
da União Soviética
se embriagaram escondidos e aos prantos
com vodkas que não tem nome
o espírito da nossa época brota de
uma fonte que afoga a congruência e
emerge o absurdo que não tem nome
o perfume que mergulha no olhar sem
ponto de fuga
foge pro fundo de um corpo que esconde
vontades sem nome
o nome do beco é a cor do barulho que ele canta
e quando toco a membrana frágil que divide
o riso e o choro do mundo
foge o nome de todas as minúcias
que respiro
a poesia engole a forma
no espaço de duas pernas
depois explode
o poema prematuro não atende pelo nome
-não haveria poetas
ele só acorda com o grito desvalido
das coisas que sublimam
não existem
e nunca desaparecem.
INSÔNIA
Indomáveis são minhas pernas nessas noites de calor
Correm pelos escritores que ficaram famosos por se contradizer e
me enchem de esperança
Meu caso com o verso é mal resolvido
É nesse desencaixe que se esconde o
mistério do amor
e o telefone escrito num papel de doce
que um homem me entregou no ônibus
Se eu achasse esse papel
O último álbum do Jorge Mautner falaria da mulher
que se casou aos 17 anos
Nas entrelinhas dos versos dos poetas latinos
mora a verdade tropical
Contando o dia em que o caos engoliu a métrica
E que um militante da poesia é tão desimportante
que lambe o continente com a ponta da língua
É dessa umidade que vem a lírica destemida
falando de sol, marte, gozo, criança, miséria e pele
num só poema
-o continente é o desenho de todas as manchas da sua pele
juntas
Eu dormiria agora se a lua me deixasse
Se os postes da rua não fossem tão amarelos
Se o único homem na praça não estivesse fumando
cigarro escondido de sua esposa
Se esse mesmo homem não guardasse um perfume
no bolso pra disfarçar o cheiro
Se os grilos não tentassem cantar minha música preferida
Se eu soubesse qual é minha música preferida
Se eu não tivesse assistido ao jornal sangrento no almoço
Se você não tivesse me sorrido daquele jeito
Se me explicassem o segredo das cores
Se o barulho do único carro que passa
não parecesse com o som da sua chegada
Se Deus me explicasse o porquê
dos bebês segurarem nossos dedos com a força do mundo
Se não houvesse livros na minha cabeceira
Eu dormiria agora
Se minhas pernas não fossem indomáveis nessas noites de calor.
TRANSE
eu visitei um vale dentro da minha cabeça
há um rio que corta esse vale ao meio
os pássaros gorjeiam música tântrica
e as estrelas brilham muito e caem
o tempo inteiro
há várias criaturas aladas
há também uma correnteza fluindo pelas minhas pernas
a ponta dos meus dedos simulam libélulas
batendo a cauda na água
logo percebi que o rio era eu
e que a correnteza sutilmente selvática
era a força de outras mulheres-fluxo nesse rio
qual é o charme das máquinas
e das coisas apressadas
que teimam em dizer que existem?
há um vale
eu sei que há
há também um princípio anárquico que rege
todos os seres que perguntam o porquê
das coisas
os cílios desses seres se descolam
de seus olhos
e vão passear
voam igual dente-de-leão ao vento
às vezes caem nas coxas de seus
amores e fazem cócegas
mas daí é só às vezes
respostas de pernas bambas
dessas muito aparentes
fáceis demais de enxergar
se desequilibram entre os cílios
e não intimidam
essas flores de maracujá
que brotam no canteiro
desses olhos
a propósito,
vocês já viram uma flor de maracujá hoje?
pois então não digam
que gineceus não entram em transe.
PANGEIA
hoje a flor brotou na pele
toda palavra é uma lâmina bêbada
as terminações nervosas do órgão mais sensível
se espalharam pelos dedos, olhos, pernas
as letras dos poemas que minha mente desenha
aram meu peito até esfarinhar
assistir ao noticiário é matar o último lírio verdevida que chora e não se rende
os contornos dos continentes são os contornos das minhas curvas
e hoje é o primeiro dia depois da pangeia
que me rasgou em cinco
hoje
a pele da flor que assistiu a morte da mulher que morreu por ser mulher acordou arrepiada
e eu
à flor da pele
já nasci e morri quatro vezes
só antes desse dia começar a respirar.
NÃO DIZER NÃO
Estamos a um espasmo do fim do mundo
e sei que a assimetria das tuas pintas
são tão importantes para a natureza
quanto as resoluções da Conferência de Kyoto
Não há tempo para concluir a missa
Saiam da igreja antes da saudação final
Deus é graça e
do céu escorre a bênção
toda vez que te observo
Não são tempos de produzir coerências
Nem de revisar os textos
Os homens que resolvam seus problemas.
É tempo de escrever poemas
nas cinturas e nos dedos
até descobrir o porquê do seio do mundo
ter o cheiro dos seus fluidos
Não procurem terapeutas e psicólogos
A solução do problema se esconde
no botão da rosa das mulheres
Beije a boca dessas mulheres como se todas
carregassem seu melhor poema no útero
e o lirismo lhe ofertará um sorriso
Não há tempo para nada do que já foi dito
Por isso que escapam neologismos dos seus olhos
toda vez que você sorri
O sol dá piruetas sobre a explosão dos corpos
que nunca dizem não
Criei um pássaro que tem a textura de tudo
que nunca toquei
e que imita seu olhar desvalido
É com a ousadia desse pássaro que peço para ser arrebatada
ao paraíso que te pariu todos os dias
O tempo que ainda existe é para o nascimento.
♣♣♣
Júlia Moura é brasileira, nascida em Taguatinga-DF, no final da década de 90. É graduanda em História na Universidade de Brasília. Por meio de seu pai, escritor, desde pequena foi estimulada a mergulhar no mundo da literatura. Integra o Coletivo Poético Assum Preto, junto com outros artistas que pulsam a veia das nuances latino-americanas, relacionam-se tanto com o verso arma como com o verso lírio. Militante da poesia, declara fazer parte dessa luta que de tão vã, se torna imprescindível. Inédita em livro. Contato: juifmoura@gmail.com.
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