DE FREUD A JUNG, ERA UMA VEZ DANTE ALIGHIERI – por Marilene Cahon

No Monte Olimpo, Zeus, observando a curva geodésica, decidira alterar a lei das três unidades, retirando do Conhecimento as noções de ação, tempo e lugar. Desaparecidas essas realidades, o movimento passou a ser atemporal, permitindo a interação das relações humanas em todos os espaços possíveis.

Divertia-se com as confusões que eram geradas. Seu riso ecoava pelo universo. Quem estava apreensivo e nem um pouco feliz era Khronos. Ao contrário, Kairôs sentia-se cada vez melhor. Aion, por sua vez, chocou-se e emudeceu.

– Senhor, depressa. Foi expedida a ordem de sua prisão. Carlos de Valois entrou em Florença com os Guelfos Negros. Gabrielli di Gubbio foi nomeado ‘Podestà’ e o senhor condenado ao exílio. Tornou-se um proscrito. Se os soldados florentinos o capturarem será queimado vivo.

– Fui denunciado no Tribunal do Santo Oficio?

– E eu sei lá? Só tem que fugir agora mesmo. Vamos.

– Vou pegar algo de que não quero e nem posso me separar.

– Depressa.

A poucos passos daí se ouviam sons de combate.

II

– E se meu Inferno fosse meu próprio íntimo? Minha psique? Ruminava o senhor, andando em círculos na sala medieval.

Não parecia se importar com a túnica escarlate que, volta e meia, fazia-o tropeçar, provocando um palavrão. Pelo menos ela cobria-lhe a fralda cor de rosa sobre a qual sua mulher o questionava todos os dias, como se um ritual fosse e ao qual ele nunca dava resposta.

Sofria igual a um condenado da Inquisição… Perdera Beatrice por não ter tido coragem de indispor-se aos costumes da época. Sentia-se um fracassado. Era um fracasso.

– Completei ontem trinta e cinco anos. Estou vazio. Tenho de fazer alguma coisa. Preciso invadir os porões de minha alma e expurgar meus afetos, senão enlouquecerei. Perdi meu emprego no governo. Meu título de “Priore”. Perdas e mais perdas! Só a Gemma Donati não sai de minha cama. Estou revoltado!

Freud e Jung

III

Em outro ponto qualquer, Freud realizava uma conferência.

– Duas coisas são conhecidas sobre a chamada psique humana. Em primeiro lugar, seu órgão corporal, a cena de ação, isto é, o cérebro. E em segundo, os atos de consciência. A mais antiga área de ação psíquica é o id, “os porões da alma”. Há uma causa para cada pensamento, para cada memória revivida, sentimento ou ação. Cada evento mental é causado pela intenção, consciente ou inconsciente e é determinado pelos fatos que o precederam. O inconsciente não é apático. Tem vivacidade e imediatismo em seu material. Está em constante ebulição. Memórias muito antigas, quando liberadas à consciência, podem mostrar que não perderam nada de sua força emocional.

– Professor, o que seriam os processos mentais inconscientes?

O palestrante percebeu que a pergunta viera do fundo da sala, mas sua miopia impediu-o de identificar o autor. Respondeu, então, com aquele olhar vago de não saber para quem.

– Os processos mentais inconscientes são em si mesmos intemporais. Isto significa que o tempo de modo algum os altera, e que tal ideia não lhes pode ser aplicada.  O ser humano está lançado em um tempo trágico, vazio e puro, que é, paradoxalmente, origem de todas as condições e possíveis, sendo capaz de abrir saídas criativas e também de ameaçar com o informal no sentido da indiferenciação, da repetição do mesmo, do “puro instinto de morte“.

 – Que são os instintos?

Dessa vez viu bem quem perguntou. Outro professor quase de sua idade e que se apresentara a ele, pomposamente, como Doutor Carl Gustav Jung.

– Os instintos são a suprema causa de toda atividade. Seus aspectos físicos são as necessidades. Seus aspectos mentais são os desejos. Todo instinto tem quatro componentes: uma fonte, uma finalidade, uma pressão e um objeto. A fonte é quando emerge uma necessidade. A finalidade é reduzir essa necessidade até que nenhuma ação seja mais necessária, é dar ao organismo a satisfação que ele deseja no momento. A pressão é a quantidade de energia ou força que é usada para satisfazer o instinto e é determinada pela intensidade ou urgência da necessidade subjacente. O objeto de um instinto é qualquer coisa, ação ou expressão, que permite a satisfação da finalidade original. Assim, os instintos humanos servem apenas para iniciar a ação. O número de escolhas possíveis para um ser humano satisfazer uma finalidade instintiva é uma soma de sua necessidade biológica inicial, mais seu desejo mental (que pode ou não ser consciente) e mais uma grande quantidade de ideais anteriores, hábitos e opções disponíveis.

Os aplausos forçaram o palestrante a se calar.

IV

– Um momento, senhor. O Doutor Freud irá lhe atender logo. Sente-se.

– Criatura que se ocupa em morder a ponta de sua caneta tinteiro, avise-o que tenho pressa. Meus inimigos me perseguem e não posso ficar muito tempo no mesmo lugar. Pertenço à corporação dos médicos e farmacêuticos. Tenho prerrogativas.

Sua fala caiu no vazio da sala.

A secretária voltara a se ocupar com sua leitura e fez ouvidos moucos ao ranzinzo do homem de nariz adunco. Lia um artigo publicado pelo seu patrão denominado “Family Romances”:

“a fonte de toda ficção poética é aquilo que é conhecido como “romance familiar” de uma criança, no qual o filho reage a uma modificação em sua relação emocional com os genitores, em especial com o pai. […] No princípio era o ato. […] existem distinções entre os indivíduos da espécie humana, a herança arcaica deve incluir essas distinções; elas representam o que identificamos como sendo o fator constitucional no indivíduo. […] igual para todos os indivíduos no início […] Temos, em primeiro lugar, a universalidade do simbolismo na linguagem. A representação simbólica de determinado objeto por outro – a mesma coisa aplica-se a ações – é familiar a todos os nossos filhos e lhes vem, por assim dizer, como coisa natural. […] trata-se de um conhecimento original […] o simbolismo despreza as diferenças de linguagem […] presumimos a sobrevivência […] de memória na herança arcaica”.

Murmurou para si mesma:

– Meu patrão está cada vez mais complicado. Mistura tanto o que escreve e coloca tantas interrupções que as pessoas deixam de entendê-lo. Preciso ordenar isso tudo. Ou será que faz de propósito? Vou ter que resolver com ele. Assim é que não pode continuar.

V

– Ora, ora. Grandes poetas também precisam do meu divã! Vou alterar o ditado. Agora vale: “de médico, de louco e de poeta, todo mundo tem um pouco”! Pensou o doutor, quando olhou a ficha do próximo paciente.

– Fraulein Ana manda entrar o senhor Dante.

Se não fosse tão absurda, seria tragicômica a figura que adentrou o gabinete do psiquiatra.

Olharam-se como a tatear o terreno da verossimilhança.

O silêncio pesou entre as duas figuras.

Freud imaginava:

– Quando devo começar a fazer minhas comunicações ao paciente? Qual é o momento certo para iniciá-lo na teoria e nos procedimentos técnicos da análise? Preciso lhe dar tempo para que estabeleça uma transferência utilizável, um rapport adequado…

– Boa tarde.

– Boa tarde.

– E?

– E o quê? Disseram-me que o senhor resolve todos os problemas mentais do ser humano. Quero resolver os meus.

– Hum… hum…

– Só vai me dizer isso?

– Talvez.

– Vou embora.

– A porta é serventia da casa.

– Pensando melhor, porque uso fraldas cor de rosa?

– (Apenas um aceno de cabeça, que tanto poderia ser interpretado como um ‘sim’, quanto um ‘continua’).

– Verdade que o uso das fraldas rosa me fizeram um grande bem, mas para que eu possa falar do bem que disso resultou, terei antes que falar de outras coisas, que do bem, passam longe.

A bola quicou entre os dois homens. O momento pareceu ser aquele.

– Bom. É importante destacar a sua forma de apreensão da realidade. Parece-me que tomou por empréstimo representações que fazem parte da cultura e do folclore para se construir e se posicionar em seu Inferno.

– Como o senhor sabe do meu Inferno? De onde o conhece?

– Do seu tenho vagas lembranças de algumas leituras que fiz. Porém o meu eu conheço bem até demais.

O paciente arregalou os olhos, derrubou o queixo e, literalmente, desabou sobre o divã. Então ele não era o único que conhecia O Inferno! O doutor ali parecia estar bem à vontade com o assunto. Enfim, talvez, pudesse ajudá-lo.

– Estou em crise existencial! Como escrevi aquilo tudo?

– Você poderia ter observado as torturas a que algumas pessoas foram submetidas em processos inquisitórios para revelarem o que fosse de interesse do governo ou do papa e pode ter projetado esta representação para si próprio. Transformou o que leu, viu e ouviu em memória arcaica. Ao ocorrerem perseguições políticas, por ser da oposição e tendo ocupado o cargo de prior, foi acusado de várias fraudes, tendo sido banido da cidade e condenado a pagar uma multa. Caso não pagasse, seria levado à morte, se algum dia retornasse. Portanto, houve uma séria modificação no seu relacionamento emocional com a sociedade em que vivia. Guardou isso tudo em seu inconsciente e quando não mais pode suportar, pariu seus versos…

– Alto lá! Eu não pari coisa nenhuma. Parir é função apenas das mulheres. Eu compus. Escrevi. Escrevi.

– … sua memória arcaica foi estimulada pelo próprio processo histórico em que estava inserido. O medo arcaico do desconhecido, medo daquilo que a sociedade mostrava-se capaz de acusá-lo, assoberbou-lhe os instintos e provocou-lhe o pensamento, que então se curvou ao vento da coisa, a coisa como o real das intensidades que habitam e excedem cada ser humano, desamparando-se consigo próprio, em seu eu, em seu corpo. A isso, que é trágico, chamo de pulsão: Eros e Thânatos.

O poeta sentiu leve alívio. Mitologia ele lera bastante. A antiguidade grega fora um dos seus estudos favoritos.

– Memória arcaica, inconsciente, o que tudo isso tem a ver com meus versos?

– Simples. O inconsciente se manifesta tanto nos sonhos e sintomas neuróticos como na fala e na escrita, o que revela uma articulação entre inconsciente e linguagem.

– Isso eu já imaginava. Não é novidade que o acesso do homem ao simbólico se realiza por meio da linguagem.

– É. Isso ocorre a partir de uma falha constitutiva que separa o homem do mundo. É nesta falha que incide a linguagem, cuja atuação se dá como uma ponte que busca superar esta distância. Neste sentido, a própria concepção da realidade inconsciente resulta da inserção do homem na cultura e a linguagem entra em cena para tentar dar conta de um esvaziamento de sentido, ou seja, daquilo que o homem não pode assimilar.

– Penso que esta dificuldade de assimilação do mundo pelo homem vem do limite que constitui a própria linguagem.

– Ela é insuficiente para a apreensão do mundo por um sujeito do inconsciente. Assim, por mais que o inconsciente procure se valer da linguagem na busca de sentido, sempre haverá um resto, um sem sentido, algo da ordem do irrepresentável, um não dito. E quantas coisas não foram ditas em seus versos? Quanto é possível ler em suas entrelinhas?

– Hã? Nunca pensei no não dito. Mas, acho que o senhor tem alguma razão, sim.

VI

Dante fora embora, não sabendo bem como interpretar a conversa que tivera com Freud. Sabia que escrevera a sua verdade, uma nova verdade. E uma nova verdade assusta. E nada fora mais assustador do que se ver naquela selva tão selvagem, cruel e amarga, que a sua simples lembrança lhe trazia de volta o medo. E ainda mais agora, que se dera conta de que aquilo tudo estava encravado em seu interior. Era suas vísceras.

Buscava compreender o medo sentido diante daquela selva ameaçadora.

O poema não fora uma compulsão, pois mantivera a lógica no seu pensar. Fora uma tentativa de encontrar uma saída para compreender e explicar o que sentia na própria alma. Em outras palavras, um entendimento de si mesmo. Uma aceitação.

Teria sido isso o nascimento de um herói?

Aprendera nos estudos mitológicos que herói é alguém que teve a coragem de se rebelar contra o pai, para, ao final, sobrepujá-lo. A sociedade então vigente consideraria como ‘seu pai’? A Commedia seria sua revolta contra ela?

Em seus versos olhara-se despido de todas as máscaras, e, dessa maneira, revelara sua verdadeira face de si mesmo. Fora uma revelação terrível, quase impossível de aceitar.

Passara a metade de sua vida envolvido pelas aparências, como que anestesiado diante da essência das coisas. De repente, despojado de qualquer autovigilância mundana, magicamente adentrara em si mesmo. E sentira tal paúra, que estava enlouquecendo. O que fizera a si e de si mesmo até agora?

Olhava para trás e não via nenhum rastro seu. Seu rosto enrugava-se. Suas mãos estavam vazias. Sentia a morte logo ali depois da esquina. Desesperava-se.

Mapa do inferno, por Sandro Boticelli

VII

Freud passou todo aquele resto de semana lendo A Divina Comédia para poder entender melhor seu bizarro paciente. Durante quatro dias, com paciência, assinalou o que poderia ser mais representativo. Era um prato cheio para seus estudos. Seu colega Jung teria se deleitado com o assunto, mais do que ele mesmo. Se não tivessem se afastado por discordarem em aspectos que considerava básicos em sua teoria, o chamaria para o caso. Os tais arquétipos poderiam explicar muitas coisas, afinal de contas.

Lembrou-se de uma das afirmações que o ex-amigo fazia: Pode-se entender que para o eu se encontrar com o Eu Maior precisa antes percorrer o seu Inferno, expurgando-se por inteiro e então ter a experiência visual interna do Divino. O encontro é a virtualização de um real oculto, onipresente.

 Se aceitasse essa afirmação, poderia então pensar que os versos do poeta deveriam ser absorvidos como uma virtualização do real, uma pulsão que é o real que se retrai e se oculta sob a forma de poema, o que não significa ausência, pois nesta retração existe presença. E Dante estava oniscientemente presente em toda sua obra.

Em cima de uma resposta a um dualismo, o poeta criara real em cima da pulsão. Criara real sobre um não ser de máxima potência, onde ele, Doutor Freud, agora raciocinava: podia ser potência determinada, fixada à representação. Ou potência indeterminada, uma força pulsional autônoma, pura intensidade pulsional, responsável pelo indeterminismo do sentir aligheriano: ‘a sua simples lembrança me traz de volta o medo’. Qual dos caminhos era o real?

– Ana, vem cá. Você leu A Divina Comédia?

– Comecei, mas não terminei. As representações que nela encontrei, algumas me assustaram, outras repugnaram. E, francamente, outras me pareceram forçadas. Outras ainda, mentirosas.

– Ora, ora. A representação diz respeito ao elemento imaginário do objeto, a uma composição imaginária, que forma a substância da aparência, entendendo-se substância como a decepção fundamental com que é marcada toda aparição. Representação é o que se constitui ao redor da coisa como aparição, como fantasma. Estas representações imagéticas são validadas pela mediação simbólica das palavras. Assim, os versos desse poeta entrelaçam realidade e verdade como pertences seus, um sujeito singular. É o que chamo de produção de fantasias como expressão da verdade do desejo do sujeito.

– O homem desejava, então, que tudo aquilo que escreveu fosse verdadeiro? Que acontecesse, ou tivesse acontecido com ele?

A secretária coçou a cabeça e pensou: tenho que responsabilizar alguém para quando eu morrer por uma moeda em minha boca.

– É a verdade dele.

– Andei lendo o que o Dr. Jung escreveu sobre os arquétipos. Se eu acreditar no que li mais o que conversamos agora…

O médico passou a esperar com ansiedade a próxima visita do poeta italiano. Dante transformara em imagem uma reabilitação do mundo do seu imaginário em relação ao mundo das idéias, isto é, processara a reabilitação de um pensamento. E isso era um assunto empolgante, ao menos para ele.

VIII

Ainda em outro local, Jung, após sete anos de amizade com Freud com quem trocara mais de trezentas cartas, curtia seu rompimento. Ele não conseguia aceitar a insistência de Freud de que as causas dos conflitos psíquicos sempre envolveriam algum trauma de natureza sexual. E Freud não admitia o seu interesse pelos fenômenos espirituais como fontes válidas de estudo em si.

– Descrevo a psique como uma realidade, de forma tão literal interiormente, quanto uma maçã é real exteriormente. Freud insiste em substituir uma determinada imagem por outra de cunho sexual. Não tem como seguirmos nossos estudos juntos! Nós que já conversamos treze horas seguidas, não podemos mais nem frequentar os mesmos pubs. Desenvolvi o conceito de imaginação ativa, um método de interação com o inconsciente onde este se investe espontaneamente de várias personificações.  Na imaginação ativa, o consciente interage ativamente com as personificações do inconsciente, discordando, opinando, questionando e até tomando providências com relação ao que é tratado, isso tudo pela imaginação. Com essa imaginação há a possibilidade de compreensão e de interação do inconsciente, de forma que o sujeito o transforme e seja transformado no processo. Acredito que personagens podem fazer entender o motivo de, por exemplo, estar-se com insônia. Freud tem razão quando escreve que o inconsciente individual consiste, fundamentalmente, de material reprimido e de complexos. Mas há também o inconsciente coletivo, que é composto de uma tendência para sensibilizar-se com certas imagens ou símbolos, que constelam sentimentos profundos de apelo universal, os arquétipos, resmungou Jung.

Começou a escrever Sete Sermões aos Mortos.  Sorriu, enquanto vultos enchiam a sala a sua volta. Um mundo extraordinário e transparente se abria mais uma vez para ele, um mundo que Freud jamais conheceria por estar fechado a ele.

IX

– Pensei muito em nossa conversa anterior. Estou mais confuso ainda. Decepcionado. Tenho desejo de matar-me.

– Pois eu reli com cuidado seus versos da Commedia.

– Sabe que o nome Commedia não significa comicidade, mas algo que começa trágico e termina bem? E quem batizou meu poema como “Divina” foi Giovanni Boccaccio? Autor do Decamerão, tornou-se o primeiro grande realista da literatura universal.

– Eu soube disso.

– O que pensa de meu cochilo?

O psiquiatra colocou os óculos sobre a mesinha e olhou durante longos minutos para o teto. Imaginava se ele continuava com as fraldas cor de rosa. Por fim, voltou-se para o poeta.

– Seu cochilo tem sentido dúbio e narcisista, pois pode ter sido o agente causador de seu afastamento do caminho certo, envolvendo-o com as aparências, em detrimento da essência das coisas. Isso porque todo homem leva uma dupla existência: uma em que ele é um fim em si, fazendo assim parte do mundo profano, descontínuo. Outra em que ele é um elo de uma cadeia, a serviço, à sua revelia, do mundo sagrado, da continuidade. O pavor que vivenciou tem a consistência de um núcleo heterogêneo, duro e real no campo do subjetivo. Trata-se de um pavor ambíguo, pois foi, originalmente, estruturado entre o real e o imaginário. A memória arcaica do medo que o desconhecido lhe causa aparece forte no simbolismo com que descreve seu Inferno.

– Minha memória é divinizada. Ela não visa em absoluto reconstruir o passado segundo uma perspectiva temporal. Define-se pelo o que é, o que será, o que foi. Ela me permite decifrar o invisível, entrar em contato com o outro mundo. Confere ao meu verbo poético o estado de palavra mágica e religiosa. Mas expõe-me.  Desnuda-me.

– Mnemosyne, a Memória divinizada, gerou nove Musas, que são as Palavras Cantadas.

– “As Musas colocaram então na mão do poeta o bastão de seu ofício e insuflaram nele sua inspiração.

– Inspirado pelas Musas, você cria, repete, compõe palavras em ritmos.

Torna-se suporte e mestre de sua verdade. Dá a luz A Divina Comédia.

– Percebo que o doutor despiu meus versos. Não sei se é boa ou ruim essa nudez. Mas é o que eu mais desejo, pois sinto que só assim recuperarei meu equilíbrio. Também me sensibiliza dizer que dei a luz e não mais que eu pari.

Dar a luz me soa mais intelectual. Feras me ameaçaram no caminho pelo Inferno. O que devo pensar do Leão?

– O simbolismo do Leão deve ser entendido sob dois aspectos: o homem exterior dominado pelo Eu provisório da personalidade incompleta e o meio no qual ele, o homem, passa sua vida.

– A Loba?

– A Loba é a sabedoria que está dentro de cada um; é o lugar onde a mente e os instintos se misturam, onde a vida profunda embasa a vida rotineira. É o ponto onde o Eu maiúsculo e o eu se encontram. Ela está entre os universos da racionalidade e do mito. É a articulação com a qual esses dois mundos giram. Esse espaço entre os mundos é aquele lugar inexplicável que todos reconhecem, uma vez que passem por ele, porém suas nuances se esvaem e têm a forma alterada se se quiser definí-las, a não ser quando se recorre à poesia, à música, à dança… ou às histórias. Mas jamais será o mesmo.

– E o Leopardo?

– O simbolismo do leopardo é seu modelo de sabedoria, porque junta a maior paixão à mais indiferente calma. Na sua imobilidade reflete o seu salto, sempre exato. A força de suas ancas é proporcional a do seu sono: há nele o abandono da criança recém-nascida, mas o seu instinto está sempre em vigília. A sua leveza sem resistência torna a sua queda sem perigo. Caça e luta lhe são um jogo: joga sem ódio e sem finalidade; constantemente pronto ao ataque sem animosidade, e pronto a se defender sem apreensão. Vencedor indiferente, nunca é vencido.

– Deixa ver se entendi: nos três animais retratei a minha imaturidade diante do ambiente em que vivo; aquilo que eu sei e o modo como aprendi?

– Digamos que sim.

– (Risos). Pretendia mesmo era representar, alegoricamente, os pecados, segundo a filosofia de Tomás de Aquino. A incontinência, o leopardo, a violência, o leão e a fraude, a loba, refletindo níveis de gravidade crescentes, de acordo com os conhecimentos da pessoa, pois quanto mais se sabe, mais grave é o pecado.

– Afirmo que também representam os seus fantasmas íntimos. São as marcas inconscientes da sua estrutura psíquica como sujeito, que se impõe em momentos da sua própria pré-história como forma de apreensão de uma realidade edípica, a qual estrutura e funda o ser desejante. No seu caso específico, é a tríade que molda o agente fantasmaticamente aterrorizante e interrogador do sujeito e de seu dilema de existir: Quem sou? Como sou? Porque sou?

– Devagar doutor. Preciso refletir sobre suas palavras. Falou em realidade edípica. Na mitologia, Édipo era tebano. Tanto ele como seus pais lutaram para escapar de seu destino, mas, sem querer, acabaram realizando tudo, ponto por ponto. Édipo matou o pai. Depois, casou-se com a própria mãe…

– Esse é o mito.

X

Reclinada em uma cadeira Savonarola, Gemma refletia em como confessaria ao padre Chrisóstomo suas dúvidas sobre seu esposo. Havia gerado quatro filhos logo no início do casamento. Agora dormiam em leitos separados. Amantes concretas sabia que ele não tinha, sempre enfiado em seus livros. Mas uma de suas empregadas, a Okoma, lhe falara em uma tal Beatrice para quem ele andara escrevendo uns versos. Apenas isso. Será que tanto estudo lhe esgotara as forças? Afetara-lhe a mente?

– Okoma, manda vir a minha casa a Albetina Floreta. Mas em segredo. Melhor que venha no início da tarde.

– Mandou me chamar?

– Sim. Vamos para meus aposentos onde ninguém nos interromperá.

Albetina Floreta, a benzedeira de Florença, estranhou a exiguidade do espaço que a dama chamara de seus aposentos. Torceu o nariz. Afinal de contas, estava acostumada com ambientes mais ricos. Mas não iria desprezar nenhum negócio. Os tempos estavam cheios de novidades e a atraía desfrutar de algumas delas, senão todas: o moinho, a charrua, a pólvora, a plaina, o arco triangular, os algarismos arábicos, a anestesia, os bancos, os botões, a bússola, o carnaval, o carrinho de mão, as cartas de jogo, o cavalo como força motriz, o garfo, gatos como animais domésticos, a hora de sessenta minutos, a lareira, os livros, o macarrão, os óculos, os nomes das notas musicais, Saint Clauss, o papel, a prensa de tipos móveis, o purgatório, as roupas de baixo, o tarô, os vidros coloridos, o xadrez, o zero, o relógio, as cidades, as moedas, as feiras, a cavalaria, os castelos, as cruzadas, o leme, o astrolábio, as ferraduras, a roda d’ água, o poço artesiano, o estilo gótico…

– Preciso saber o que se passa com o senhor meu marido. Vejo que se afastou das mulheres e fica o tempo todo escrevendo linhas que chama de Commédia. Mas nunca o ouço rir. E para uma Beatrice Portinari, que pelo que me consta morreu há algum tempo. Acho que essa Beatrice foi sua paixão lá pelos nove anos de idade, quando ele a viu a primeira vez.

– Sei. Ambos estavam prometidos a outras pessoas e ela lhe negou o cumprimento na segunda e última vez em que se viram.

– Eu também não casei com minha verdadeira paixão. Fui prometida a meu marido com cinco anos de idade. Mas vamos ao que interessa.

– Seus pais cumpriram com fidelidade o ritual: Petitio, Desponsatio, Donatio, Traditio, Publicae Nuptiae e Copula Carnalis?

– Com certeza. E eu nunca recusei o debitum ao meu marido. Mas ele se afastou de mim. E cá para nós, isso até me alegrou.

– Então, o que estou fazendo aqui?

– Tenho curiosidade em descobrir se ele está possuído pelos demônios.

– Ele usa fraldas cor de rosa?

XI

No caderno de anotações, na noite daquele dia da fala sobre o mito edipiano, Freud escreveu: O intenso pavor de Dante ao longo de sua caminhada no Inferno tem seu núcleo no fantasma da cena primitiva, que dialeticamente é realimentada através de processos regressivos, determinando seus sintomas e desejos. Sua inteligência estava como que sequestrada pelas forças pulsionais, que lhe regiam a conduta na trajetória que fazia. Ainda que a cena primitiva não seja um fato que realmente tenha ocorrido na história do sujeito. O que há é a predominância da fantasia como mito sobre o fato histórico em si. Pode, inclusive, haver a possibilidade da existência de um componente filogenético na construção dessas fantasias.

Passado e presente, causa e efeito, indução e consequência imbricam-se em uma complexa estrutura ativa e dinâmica, onde retroatividade, condensação e deslocamento são terrenos por onde caminham e se formam os versos dantescos. O poeta despertara subitamente e vira diante de si uma cena movimentada, que contempla com viva atenção. Contempla e, ao mesmo tempo, é contemplado.

– Como está clara em mim a realidade edípica do poeta. Se lhe falar nela é capaz de nunca mais o ver. Ou até ser desafiado para um duelo. Mas vou anotar sobre o mito para posterior discussão:

Édipo mata o pai: isto é, percebe que tem que se diferenciar de suas origens, tem que ser ele mesmo. Precisa livrar-se de sua “sombra interior”, que é uma imagem negativa de si mesmo, muitas vezes identificada na figura paterna pelos meninos e na figura materna pelas meninas. O sentido é que a pessoa precisa descobrir que é diferente, não tem que ser igual a ninguém. Figurativamente, isso é “matar o pai”. Tornando-se indivíduo independente, percebe que pode reatar, maduramente, seus laços com as suas origens. Compreende que pode continuar a ser diferente, mas pode fazer uma aliança nova e madura com suas raízes, sem medo delas.

XII

Em um morro, sentado sobre uma pedra, enquanto sonhava com Florença, Dante refletia:

– Preciso contar ao doutor sobre o Virgílio. Se eu não falar, ele é bem capaz de pensar que gosto de homens na cama. Já insinuou que tive vontade de matar meu pai para casar com minha mãe. Por pouco não avancei no pescoço dele. A bem da verdade, sua afirmação foi tão sutil que só me apercebi disso quando mais tarde rememorei nossa conversa. Preciso estar mais atento para não deixar passar idéias falsas a meu respeito. Não fui homem de frequentar lupanares, mas tive uma paixão romanesca em minha vida: Beatrice.  O amor me tomou e não pude evitá-lo. Mas quem ou o que é Beatrice?

Paolo e Francesca! Porque nunca tive a coragem que eles tiveram? Sua história é verídica: a leitura dos amores furtivos de Lancelote e Guinevere deu o mote à paixão, que acabaria em tragédia. Paolo era irmão de Giovanni Malatesta, que os encontrou nus, beijando-se. Um beijo irresistível e avassalador. Ele não aprovou a traição conjugal, matando-os com uma só estocada e ao mesmo tempo. Se fechar os olhos, revejo a cena de meu Inferno: suas almas são jogadas de um lado a outro pela ventania. Paolo inclina-se para trás, a mão esquerda esconde o rosto, enquanto Francesca, de olhos fechados, permanece abraçada a seu amado, tomando-o firmemente pelo pescoço com os dois braços, seja para se manter junto a ele, seja para se proteger dos açoites da ventania. Seu movimento é reforçado pelo tecido esvoaçante que cobre descuidadamente seus corpos. Revejo a precisão da musculatura. Contemplo os bíceps e tórax torneados e também o contorno insinuado de seios e nádegas.

Eu e Beatrice…

Excito-me.

Benditas fraldas cor de rosa.

XIII

– Quero lhe falar de Virgílio, aliás, Públio Virgílio Marão.  Poeta romano que escreveu: O amor vence tudo; deixe também nos entregarmos ao amor.  Ainda mais que ele preferia se deitar com homens e amava dois jovens escravos. (Estou me complicando nessa história!) Bom, meu encontro com ele nada teve de erótico. Ou teve? Não tenho certeza de mais nada. O certo é que ele me livrou de muitos perigos, além de despertar minha razão que apagada estivera, talvez por excessivo silêncio. Ele foi quem me guiou para fora da selva escura.

– Foi seu mecanismo de defesa com o propósito de manter afastados os perigos.  Parece-me que seu encontro com Virgílio significa o reconhecimento de um núcleo de verdade, libertando um fragmento da verdade histórica de suas deformações e ligações com o presente real, e reconduzindo-a de volta para o ponto do passado a que pertence.  Em seu estado de ansiedade, você esperava a ocorrência de algum acontecimento terrível. De fato, você estava sob a influência de uma lembrança recalcada de que algo que era, naquela ocasião, terrificante, realmente teria acontecido. A transposição de material do passado para o presente, ou para uma expectativa de futuro, é, na verdade, ocorrência habitual nos seres humanos.

O poeta olhou meio de viés para Freud. Não estava gostando do rumo que a conversa tomava.

O psiquiatra percebeu a insegurança do paciente e desviou o assunto:

– Por que a história de Paolo e Francesca teve fim tão cruel? Porque aqueles amantes merecem o Inferno?

– Devido à obstinação deles pela paixão terrena. Foi o amor o causador da morte e do destino deles. A supervalorização do amor erótico na vida daqueles amantes está intimamente ligada às influências literárias. Foi a leitura do romance cavalheiresco, Lancelot e Guinevere, a dar o passo inicial à sua paixão.

Veja a que ponto a literatura de amor cortês influenciou a sociedade medieval.

Francesca foi uma vítima do amor carnal, aquele que domina, que aprisiona e do qual não se pode escapar. O amor ilegítimo de Lancelot e Guinevere corrompeu a mentalidade e afastou o ser humano do amor verdadeiro.

– Acredita mesmo no que acabou de dizer? Você me surpreendeu Alighieri. Fez conviverem no Inferno, lado a lado, os costumes e as paixões bárbaras da antiguidade e aqueles que se deixaram levar por Amor. O contraste está entre a barbárie e a gentileza. Ocorre por que ambas as concepções de amor são equivocadas. Eu fui humano e apaixonado. Minha grande interrogação foi sobre a vida amorosa dos homens. Sempre queremos dizer algo com nosso corpo. Alguma coisa que não conseguimos dizer com palavras. Eros refaz seus caminhos até a possibilidade de uma relação de amor com o analista.

– Hã? Esta a me fazer uma proposta indecorosa?

– Apenas levando-o a compreender que sexualidade também é colocar o sexual no registro do pulsional, estabelecendo a ideia de uma impossibilidade de satisfação, só encontrada por meio da fantasia. No rastro da sexualidade caminha o amor; ou, no rastro do amor caminha a sexualidade. Assim como a meta da pulsão é satisfazer-se, a meta do amor é encontrar-se. A energia de Eros faz referência a tudo o que pode se sintetizar como amor. Percebi o conflito irremediável entre as exigências da pulsão do ser humano e as restrições impostas pela civilização.

– Não quero e nem pretendo uma relação de amor com você!!! Minha paixão foi Beatrice (tenha ela sido lá o que for). Não a tive porque não consegui abandonar um estilo de vida. Ela foi Tudo para mim.

– Pois é. Esse Tudo parece comportar um resto que não pode ser dito. Há um outro tudo que gaba a sua perfeição, se vangloria  de tê-lo escolhido perfeito; imagina que o outro quer ser amado como ele próprio gostaria de sê-lo, mas não por essa ou aquela de suas qualidades, mas por tudo, e esse tudo lhe é atribuído sob a forma de uma palavra vazia, porque Tudo não poderia ser inventariado sem ser diminuído. Por exemplo: Adorável não abriga nenhuma qualidade, a não ser o tudo do afeto. Ao mesmo tempo em que adorável diz tudo, diz também o que falta ao tudo; quer designar esse lugar do outro aonde o desejo vem especialmente se fixar, mas esse lugar não é designável; nunca se saberá nada sobre ele e a linguagem vai sempre tatear e gaguejar para tentar dizê-lo, mas nunca poderá produzir nada além de uma palavra vazia, que é como o grau zero de todos os lugares onde se forma o desejo muito especial que se tem desse outro aí, e não de outro qualquer.

– Com o exposto o doutor quer significar que a desejada captura da ‘essência do outro’, na verdade refere-se a uma busca de nós mesmos; uma procura não apenas de uma suposta unidade perdida, como também da força determinante, pulsional que nos atravessa e nos constitui como seres estranhos a nós mesmos. Talvez o ser apaixonado reproduza inconscientemente a alienação primordial ao Outro, em uma tentativa de mergulhar na própria imagem especular.

Freud aplaudiu mentalmente o raciocínio analítico do poeta, inclinando-se diante de sua inteligência. Pela primeira vez admitiu a si mesmo que estava diante de um homem culto, estudado e capaz de grandes interpretações. Os encontros estavam lhe ficando cada vez mais prazerosos.

Mas não podia esquecer-se de trazer à discussão as fraldas cor de rosa.

XIV

Aquela ocasião, Freud atrasara-se para o consultório. Fora atender Berta Pappenteim, mais conhecida como Anna O. Propositalmente, deixara um de seus mais instigantes artigos sobre a mesa da sala de espera.

Alighieri, enquanto esperava, dedicou-se a lê-lo:

No transcorrer da modernidade, os humanos foram feridos três vezes e tais feridas atingiram o nosso narcisismo, isto é, a bela imagem que possuíamos de nós mesmos como seres conscientes racionais e com a qual, durante séculos, estivemos encantados.

A primeira ferida foi a que nos infligiu Copérnico, ao provar que a Terra não estava no centro do Universo e que os homens não eram o centro do mundo. A segunda foi causada por Darwin, ao provar que os homens descendem de um primata, que são apenas um elo na evolução das espécies e não seres especiais, criados por Deus para dominar a Natureza. A terceira foi causada por mim mesmo, quando mostrei que a consciência é a menor e a mais fraca parte de nossa vida psíquica.

A vida psíquica é constituída por três instâncias, duas delas inconscientes e apenas uma consciente: o id, o superego e o ego, ou o isso, o super-eu e o eu. Os dois primeiros são inconscientes; o terceiro, consciente.

O id é formado por instintos, impulsos orgânicos e desejos inconscientes, ou seja, as pulsões. Estas são regidas pelo princípio do prazer, que exige satisfação imediata. O id é a energia dos instintos e dos desejos em busca da realização desse princípio do prazer. É a libido.

Instintos, impulsos e desejos, em suma, as pulsões, são de natureza sexual e a sexualidade não se reduz ao ato sexual genital, mas a todos os desejos que pedem e encontram satisfação na totalidade de nosso corpo.

A sexualidade humana tem três fases, que se diferenciam pelos órgãos que sentem prazer e pelos objetos ou seres que dão prazer. Essas fases se desenvolvem entre os primeiros meses de vida e os cinco ou seis anos, ligadas ao desenvolvimento do id:

1.a fase oral, quando o desejo e o prazer localizam-se primordialmente na boca e na ingestão de alimentos e o seio materno, a mamadeira, a chupeta, os dedos são objetos do prazer;

2.a fase anal, quando o desejo e o prazer localizam-se primordialmente nas excreções. Brincar com massas e com tintas, amassar barro ou argila, comer coisas cremosas, sujar-se são os objetos do prazer;

3.e a fase genital ou fase fálica, quando o desejo e o prazer localizam-se primordialmente nos órgãos genitais e nas partes do corpo que excitam tais órgãos. Nessa fase, para os meninos, a mãe é o objeto do desejo e do prazer; para as meninas, o pai.

No centro do id, determinando toda a vida psíquica, encontra-se o complexo de Édipo, isto é, o desejo incestuoso pelo pai ou pela mãe. É esse o desejo fundamental que organiza a totalidade da vida psíquica e determina o sentido de nossas vidas.

O superego, também inconsciente, é a censura das pulsões que a sociedade e a cultura impõem ao id, impedindo-o de satisfazer plenamente seus instintos e desejos. É a repressão, particularmente a sexual. Manifesta-se à consciência indiretamente, sob a forma da moral, como um conjunto de interdições e de deveres, e por meio da educação, pela produção da imagem do “eu ideal”, isto é, da pessoa virtuosa. O superego ou censura desenvolve-se num período de latência, situado entre os seis ou sete anos e o início da puberdade. Nesse período, forma-se nossa personalidade moral e social, de maneira que, quando a sexualidade genital ressurgir, estará obrigada a seguir o caminho traçado pelo superego.

O ego ou o eu é a consciência, pequena parte da vida psíquica, submetida aos desejos do id e à repressão do superego. Obedece ao princípio da realidade, ou seja, à necessidade de encontrar objetos que possam satisfazer ao id sem transgredir as exigências do superego. O ego é “um pobre coitado”, espremido entre três escravidões: os desejos insaciáveis do id, a severidade repressiva do superego e os perigos do mundo exterior.

O inusitado do que leu descortinou diante dele um conhecimento que o levou a considerar ter muito que aprender ainda. Nascido sob o signo de Gêmeos. Batizado com o nome de Durante, desejou, impulsivamente, que a teoria da reencarnação fosse correta.  Em sua mente concluiu que Freud tivera razão ao escrever que a libido era Eros. Precisava retomar a leitura do mito de Eros.

XV

Aquela noite Dante não dormiu. Após reler com cuidado o mito grego sobre Eros, assinalou o que lhe pareceu importante para uma conversa com Freud. Afinal de contas, muito do que o médico escrevera, de certa forma, ele encontrara na leitura daquele mito. Os antigos gregos não estavam tão longe assim das colocações do moderno Freud. Ele também se servira do mito para escrever seu Inferno. Mas nunca imaginara que o Inferno fosse ele mesmo! Ou que estivesse em seu âmago…

Resolveu copiar os dados que considerou valioso.

1 A paixão de Eros por Psique, mortal linda a ponto de despertar a fúria de Afrodite.

2 Casados, ela nunca poderia ver o rosto do marido.

3. Psique quebra as regas impostas e olha o rosto de Eros que, enfurecido, abandonou-a.

4. Dentre as tarefas que deveria cumprir para reconquistar seu amado, Psique precisava descer ao mundo inferior e pedir a Perséfone, que lhe desse um pouco de sua própria beleza.

5. Quando quis se atirar de uma torre muito alta para poder alcançar o mundo subterrâneo, essa lhe instruiu como entrar em uma particular caverna para alcançar o reino de Hades. Ensinou-lhe ainda como driblar os diversos perigos da jornada, como passar pelo cão Cérbero e deu-lhe uma moeda para pagar a Caronte pela travessia do rio Estige, advertindo-a: – “Quando Perséfone lhe der a caixa com sua beleza, toma o cuidado, maior que todas as outras coisas, de não olhar dentro da caixa, pois a beleza dos deuses não cabe a olhos mortais“.

Devido a sua curiosidade, caiu em sono profundo, sendo salva por Eros que a acordou.

6. Depois de receber a ajuda de vários seres, Psique conseguiu cumprir todas as tarefas impostas por Afrodite para que reconquistasse Eros.

7. Eros casou-se com Psique, e no devido tempo nasceu seu filho, chamado Volúpias.

Concluiu que Eros é o princípio da atração universal, que leva as coisas a se juntarem, criando a vida.  É a força que assegura a coesão interna do Cosmos e a continuidade da vida na terra.  Para Platão, ele seria um dáimon, uma força espiritual intermediária entre a divindade e a humanidade. Para Freud ele era a libido, o Princípio do Prazer, o tal de id. Para ele seria Beatrice?

Palavras diversas para significar a mesma coisa, constatou Dante.

XVI

A lua nova subia no céu da madrugada fria. A floresta aparecia como sombra impenetrável. Embrulhada em uma escura capa que lhe disfarçava completamente, Gemma desenhava com pedrinhas brancas um círculo no chão, enquanto murmurava:

O sagrado três

Minha fortaleza seja

Circundando-me

Vinde e fique em volta

Meu lar e minha morada

Em seguida depositou lado a lado duas velas vermelhas. Em cada uma havia entalhado, respectivamente, o nome de Dante e o seu. Acendeu-as. Enquanto olhava-as queimar pensava em seu relacionamento.

Quando as velas tinham se consumido até a metade, despiu-se e deitou-se dentro do círculo.

Lentamente, colocou uma pequena pedra de Ônix virgem sobre seu coração. Passou uma segunda pedra por todo seu corpo, imaginando que outras mãos a tocavam. Massageou-se com essa segunda pedra durante certo tempo. Até ser sacudida por êxtase arrebatador.

Recolheu os restos das velas queimadas, as duas pedras, juntando tudo em uma pequena bolsa de seda vermelha, onde colocara antes uma madeixa de seus cabelos e uma dos cabelos do marido. Vestiu-se e voltou para casa.

Ofegante, os olhos brilhando, estava quase bonita.

Havia cumprido o ritual ensinado por Albetina Floreta e que lhe custara a fortuna de trezentos florins de ouro. Em pouco tempo descobriria se os demônios haviam possuído Dante. Assim esperava.

XVII

– Sobre seus versos, Poeta, o monte sobre o qual escreve, pode representar, no nível místico, a ascensão da alma a um plano superior. No nível moral, a imagem do arrependimento. No nível pessoal, o encontro do Eu Maior no próprio íntimo. O Encontro com Perséfone. A escalada é permitida, diretamente, pela estrada certa. Pela selva escura, os pecados da alma são expostos e aparecem como demônios com poder e vontade próprios, retardando qualquer progresso. O Lebreiro, que Virgílio menciona, representa algum tipo de redenção ou salvação. Pode ainda representar o controle exercido pelo superego para que você retorne ao verdadeiro caminho. Assim, eu diria que Virgilio seria seu superego e o Lebreiro o ato controlador. Isso porque o superego é uma integração das forças sociais repressivas, que o indivíduo encontra no decurso de seu desenvolvimento. A atividade do superego é evidenciada nos conflitos com o ego, com aspectos relacionados com a moralidade e muito principalmente, com a culpabilidade. Ele é a porção moral da personalidade. Durante o desenvolvimento de um indivíduo, uma parte das forças inibidoras do mundo externo é internalizada, construindo no ego uma instância que confronta o restante do ego num sentido observador, crítico e proibidor. A essa nova instância chamo de superego. Ele é o sucessor e o representante dos pais e educadores do indivíduo, que lhe supervisionam as ações no primeiro período de sua vida; continua as funções deles quase sem mudança. O ego sente sua aprovação como liberação e satisfação e suas censuras como tormentos de consciência ou sentimento de culpa, que surgem como uma permanente infelicidade interna.

– Virgílio me guiou e ensinou a sair do Inferno. Foi minha companhia e meu apoio. Minha racionalidade. Ele sabia o que fazia, havia ajudado Enéias naquele caminho. Por isso confiei nele.  Tinha uma alma de poeta, humana e meiga. Foi também um mago e um profeta. Ele de fato foi quem revelou para a eternidade toda a grandeza do Império e majestade de Roma em sua Eneida.

– Nada acontece por acaso, tudo tem uma explicação que faz parte da nossa história de vida. O apoio consiste na inscrição psíquica do pulsional como uma zona de prazer, apoiado em uma tensão de necessidade. A vivência de satisfação aparece, marcando a experiência de prazer.

– Virgílio satisfez uma necessidade minha e com ele eu vivenciei o prazer!

Um silêncio pesado estabeleceu-se no recinto. A constatação do prazer experimentado voltou nítida à memória do Poeta. O orgasmo fora tão violento, que ele chegara a desmaiar. Seus versos haviam atribuído o desmaio a outros fatos, mas agora não podia mais esconder, nem de si mesmo, que não fora bem assim. Mas então… O orgasmo poderia ocorrer não apenas fisicamente pelo sexo! Poderia ser tão melhor e mais violento em circunstâncias diversas. Poderia ser o orgasmo da alma.

XVIII

Dante trouxera para casa uma tarefa a ser cumprida. Freud lhe dera um texto para que aliviasse a culpa por ter mascarado em seus versos o prazer. Lera e relera várias vezes, mas a culpa não diminuía. Tudo bem. Admitia que houvesse sublimado seus instintos, possibilitando-se atividades psíquicas superiores.

Mas em nada isso inibia a culpa por ter ousado falsear a verdade do prazer. Percebia seu Eu diferenciando-se do mundo externo. Sentiu a noção do princípio de realidade confrontado com o princípio do prazer, capacitando-se a construir defesas que o protegessem dos desprazeres com que o mundo externo o ameaçava. Porém, o sentimento de culpa permanecia nele. Entendeu a angústia que sentia em seu Inferno: Culpa! Culpa e medo de perdas!

A sensação de culpa tem em si muito da natureza da angústia e esta última aponta para fatores inconscientes. Freud explicara que ambos são resultados de uma renúncia pulsional, a primeira diante do medo da agressão externa e a segunda em virtude do medo da autoridade interna representada pelo superego. Obedecer ao superego não eliminava a permanente infelicidade interna.

– Culpa e angústia! Se o remédio contra a angústia é o desejo, também para o sentimento de culpa é disso que se trata, pensava o Poeta, que batia no peito:

– Mea culpa, mea culpa…  Remorso! Reprovação da minha consciência que sente que eu cometi uma falta… Há nesse meu sentir, de forma alterada, o material sensorial da angústia que opera por trás do meu sentimento de culpa.  Angústia duplicada, primeiro como pura falta de representação, segundo, como sinal de perigo. Perdi a fortuna, amigos, cargos políticos, a própria pátria, mas nada disso foi tão cruel quanto à perda de mim mesmo e do amor de Beatrice. E por minha própia culpa! Que preço pago! Busquei minha satisfação em outra pessoa, e aí mesmo que não encontrei o que buscava e retornei. Para onde? Meu arrependimento é meu tormento. Ter desejado e não ter tido, Beatrice foi minha perdição. Por desejar e não escolher, mereço ser punido. Minha existência é fundamentalmente angústia. Se meu ego se submeter ao id, tornar-se-á imoral e destrutivo; se a submissão for ao superego, enlouquecerei de desespero, pois viverei em uma insatisfação insuportável. Se não me submeter à realidade do mundo, serei destruído por ele.

Sentia em sua dor uma ameaça de desmanche e uma exasperada tentativa de ligação: entre o psíquico e o somático; entre a percepção interna e a externa.

A dor que a face do homem refletia era intensa e indubitável.

XIX

Quando Freud viu aquele homem em sua frente, quase não acreditou que fosse o mesmo das outras vezes. Desfigurado e magérrimo, era o modelo do espectro da dor. Reconheceu nele a perda de interesse pelo mundo e da capacidade de amar, a autoacusação, o autodenegrimento, a expectativa delirante de castigo, insônia, anorexia e a perda objetal retirada da consciência. Um luto anormal. Ele havia sido violado. Sentia a dor pulsão. E não podia fugir.

O médico limitou-se a observar o paciente. Sua experiência nesses tipos de casos era o melhor caminho.

– Estou morrendo de dor de alma!

– Poeta, a disposição dolorosa para o luto deve ser atribuída à necessidade de abandono de uma posição libidinal. Desta forma, o desinvestimento do objeto que foi perdido é acompanhado de sofrimento pela dificuldade que o eu experimenta em separar-se dele e, também, pelo ódio contra esse objeto, ódio, aliás, que retorna ao eu na melancolia. Trata-se de um conflito que age como uma ferida aberta, exaurindo a própria vida.

Olhos mortiços fitaram Freud sem o ver.

– Retomemos seus versos. Neles, a sua cartase o ajuda a sentir-se melhor.

– Estou cansado.

– Deixa, então, que eu comente. Mas acompanhe o raciocínio e interfira sempre que desejar.  Esforçamo-nos mais por evitar o sofrimento do que na busca do prazer. Por exemplo, é melhor para você usar as fraldas rosa do que enfrentar toda uma sofrida discussão consigo mesmo por evitá-las.

– ?????? Como sabe que continuo com elas?

Freud fez que não ouviu a pergunta e continuou:

– Em seu Segundo Canto   aparecem duas mulheres, além do poeta Virgílio. Comparo-os todos às instâncias da vida psíquica: o id, o superego e o ego, ou o isso, o supereu e o eu.

O id é a energia dos instintos e dos desejos em busca da realização do princípio do prazer. É a libido.

As pulsões são de natureza sexual e a sexualidade não se reduz ao ato sexual genital, mas a todos os desejos que pedem e encontram satisfação na totalidade do corpo. No centro do id, determinando toda a vida psíquica, está o complexo de Édipo, do qual já se falou um pouco.

– Lembro. Você me acusou de matar meu pai para ficar com minha mãe.

– Você é que o diz. Continuemos. O superego – Virgílio – também inconsciente, é a censura das pulsões que a sociedade e a cultura impõem ao id, impedindo-o de satisfazer plenamente seus instintos e desejos. É a repressão, particularmente, a sexual. Manifesta-se à consciência indiretamente, sob a forma da moral, como um conjunto de interdições e de deveres, e por meio da educação, pela produção da imagem do “eu ideal” isto é, da pessoa moral, boa, virtuosa. Veja que ele diz a você: tua alma está tomada pela covardia, que tantas vezes pesa sobre os homens, os afastando de nobres empreendimentos, como uma besta assustada pela própria sombra. Para te libertar desse medo, deixa que eu te explique como cheguei até você:

 Eu estava com os outros espíritos suspensos no Limbo quando me apareceu uma mulher beata e bela.

– Ó generosa alma mantuana, ajude-me a socorrer um amigo, que está perdido na selva escura. Eu sou Beatrice, que pede que tu vás. Venho do céu e para o céu voltarei. Foi o amor que me trouxe e é ele quem me faz falar.

– Ó mulher de virtude, tanto me agrada obedecer-te, que basta dizeres o que desejas que eu faça e eu o farei. Mas dize-me, não tens medo de descer até este centro escuro?

– Devem-se temer as coisas que de fato têm o poder de nos causar mal, e mais nada, pois nada mais existe para temer.

– Por isso meu conflito: sinto-me dividido entre o princípio do prazer, que não conhece limites e o princípio da realidade, que impõe limites externos e internos.  E é minha consciência que precisa harmonizar tudo e ao mesmo tempo: recalcar o id, satisfazendo o superego, e satisfazer o id, limitando o poder do superego. Como não enlouquecer?

– Você vive espremido entre três escravidões: os desejos insaciáveis do id, a severidade repressiva do superego e os perigos do mundo exterior. Daí seu Inferno. E a terrível angústia, que é a forma fundamental da existência para o ego, a escolha. A submissão ao id o tornará imoral e destrutivo; ao superego, enlouquecerá de desespero, pois viverá em uma insatisfação insuportável. Por fim, a não submissão à realidade do mundo o destruirá. E só você poderá encontrar caminhos para sua angústia existencial, fazendo suas escolhas.

– Tudo que li, estudei e observei e só o doutor conseguiu acender uma pequena luz no conhecimento de mim mesmo. As fraldas rosa, nesse momento, me fazem mal.

– O inconsciente manifesta-se por meio de imagens, que são representações alegóricas dos objetos do desejo. Você em uma selva escura, na verdade sonhava com uma relação sexual proibida com sua musa Beatrice.  No Segundo Canto aceita sua condição humana e sua luta pelo próprio crescimento. Conscientiza-se de seu Inferno e do caminho que deve seguir para a transcendência: “a razão leva à fé, mas não se pode compreender o divino com a razão”. As almas que vagueiam em seu Inferno são as imagens das escolhas, que aparecem a partir da conscientização de si mesmo. Se o poeta se abstiver dessa conscientização, seguirá atrás de uma bandeira, que não vai a lugar algum.

– Percebi que nessa conscientização se digladiam, continuamente, dois instintos: Eros, o instinto de Vida e Thanatos, o instinto de Morte. E preciso sempre fazer escolhas entre eles, mas no final, Thanatos será sempre o vencedor. É um duelo onde antes de começar, sabe-se quem vence quem.

– Você estudou o mito de Thanatos. Thanatos é a “pulsão silenciosa” ecoando em todo ato da vida, inclusive na pulsão do conhecer. Isso porque a morte é a tendência irreversível de toda matéria vivente. A pulsão de morte é também a grande responsável pela neurose do destino. Começamos a morrer no momento em que nascemos.

– Você conhece Leopold Szondi? Sua teoria psicanalista chama-se Análise do Destino. Tenho estudado um pouco sobre ela.

Não querendo demonstrar sua não aceitação do colega, pois não admitia que contrariassem a própria teoria e esse comportamento lhe custara a amizade com Jung, Freud ignorou a interrupção do paciente. E pediu que ele relatasse o que conhecia do mito de Thanatos.

– Na mitologia grega, Thanatos era a própria personificação da morte. Era irmão gêmeo de Hipnos, o Sono e filho de Nix, a Noite e Érebo, as trevas. Representavam-no como uma nuvem prateada ou um homem de olhos e cabelos prateados. Esopo assim escreveu: Era uma tarde quente e abafada, e Eros, cansado de brincar e cheio de calor, abrigou-se em uma caverna fresca e escura. Era a caverna da Morte. Eros jogou-se displicentemente ao chão, tão descuidadamente que todas as suas flechas caíram. Quando ele acordou, percebeu que elas tinham se misturado com as flechas da Morte, que estavam espalhadas no solo da caverna. Eram tão parecidas que Eros não conseguia distingui-las. No entanto, sabia quantas flechas tinha consigo e ajuntou a quantia certa. Naturalmente, ele levou algumas flechas que pertenciam à Morte e deixou algumas das suas. E é assim que vemos, frequentemente, os corações dos velhos e dos moribundos, atingidos pelas flechas do Amor, e às vezes, vemos os corações dos jovens capturados pela Morte.

– Thanatos, na Psicologia, é um impulso urgente e inconsciente de morrer. É ele o aspecto perecível e destruidor da vida. Eros e Thanatos não são duas instâncias autônomas, não são duas faces de uma mesma moeda. São pulsões tencionantes, que operam dialeticamente no sujeito, que vive também uma tensão entre o Ego e o Superego, chamada sentimento de culpa. Contudo, por mais que a autoridade e o Superego, e o sentimento de culpa exijam a renúncia da satisfação das pulsões, estas continuam existentes, movidas pelo princípio de prazer.

– Estudei muito os mitos gregos.  Inclusive, muitos de meus versos estão carregados deles. Temos falado alguns momentos em pulsão. Quero entender melhor esse assunto.

– O conceito de pulsão é “nossa mitologia”. Ela é misteriosa e insinuante. Não se deixa apreender porque habita a fronteira da psique com o corpo. É  propriamente mítica, pois está no interstício, está “entre”. Habita os desvãos  da representação. É força porque age, mas não se vê. É imperiosa e pulsante. Inquieta e inquietante. É a força viva que nos habita e faz viver. As formas próprias de relações imaginárias, de identificações, onde o termo imaginário se aproxima da noção de “instinto”. É a disposição inata do ser humano para responder ao mundo no qual é posto.

– A descrição de meu Inferno é minha resposta inata ao mundo físico no qual estou inserido e que me oprime? Uma resposta que também é dotada de um trágico humor negro, aquelas cenas de almas nuas, correndo de um lado para outro, sem destino?

– Poeta, tanto o Superego como a tensão que ele estabelece com o Ego compõem a consciência do sujeito, de maneira que nada do que ocorre ali consegue escapar de seu conhecimento, a não ser pela negação. Se o Superego exerce um controle discreto quando a situação está normal, quando há pressão, dificuldades, sofrimentos, ou ele busca causas dentro de si, nas suas escolhas, provocando a autopunição, ou ele coloca toda a responsabilidade fora de si, alienando-se da condição de encontrar soluções, de promover enfrentamentos. Em ambos os casos é Thanatos quem fala. O Ego para se redimir de suas culpas e vergonhas, oferecerá sacrifícios, no seu caso, a descrição vivenciada de seu Inferno.

– Conversas, conversas, mas continuo sem minhas respostas: o que fiz de mim mesmo e comigo mesmo até agora?

XX

Em seu consultório, Szondi escrevia freneticamente: na palavra destino encontro tudo o que aciona e sintetiza a vida de um homem, de uma maneira semelhante aos conceitos básicos de arquétipos. O ser humano é sempre compelido em sua vida. Com a maturação tem a oportunidade de escolher entre suas possibilidades e com isso realizar a sua liberdade. O destino obrigado de um homem pertence à herança, a tudo o que lhe foi passado por seus progenitores.  Sua natureza pulsional e afetiva é também parte do seu destino obrigado, assim como o ambiente em todos os seus aspectos. Mas há no homem um impulso para a liberdade. Este impulso tem funções circunscritas no ego para revelar a ação e desenvolvimento das suas possibilidades. Graças às suas capacidades, o homem não é nem escravo da sua natureza, nem joguete do seu ambiente. Mesmo que nunca possa perceber totalmente o uso de suas possibilidades, é, no entanto, um ser tanto de compulsão como de liberdade. As polaridades psíquicas e suas possibilidades de troca constituem o ‘fórum giratório da vida’.   A ideia de destino é dialética, movendo-se sempre entre contrários e opostos. Se o destino se cristalizar em algum lugar determinado do fórum giratório da vida, se tornará obrigado. Mas se for capaz de ir contra a ação condicionante das funções que impedem o colocar em movimento o fórum giratório, pode chegar a ser um destino livre.

Deixou cair a caneta que usava, respirando fundo.  Estava coberto de suor. Assustava-se diante de sua verdade. Tocara uma questão crucial e no momento não tinha ninguém com quem dividir sua descoberta. Exclamava a todo instante:

– Eu sou o que herdei, o que o ambiente fez de mim e o que minha livre escolha fez desse ambiente e desta herança!

XXI

Meu divã está sendo frequentado por cada tipo estranho, pensou Freud ao espiar aquele homem nele reclinado. O corpo franzino nadava dentro do terno de listas largas e o cachimbo entortava-lhe o canto da boca, perfumando o ar com cheiro de cravo do campo.

– Fraulein Ana, como deixa entrar esse tipo de gente em meu consultório?

– Esse tipo de gente, patrão, é o Dr. Leopold Szondi, um estudioso de sua teoria.

– É? O que ele quer?

– Parece que discutir com o senhor uma importante descoberta que fez. Está aqui nessas anotações.

Freud leu-as em um átimo. Respirou fundo e inquiriu o homem no divã.

– Bom dia.

– Bom dia. Tenho necessidade de lhe dizer que o inconsciente pessoal descoberto por você, que se manifesta principalmente por sintomas e o inconsciente coletivo explorado por Jung, cuja linguagem é especialmente o símbolo, eu complementei com o inconsciente familiar. Este inconsciente familiar serve, metaforicamente, como o lugar onde se encontra a herança familiar do homem. Os impulsos dos antepassados são a meta final de uma figura antepassada na vida de um descendente para retornar à mesma forma de existência, que existiu uma vez na história familiar, e ai realizar-se.

– Interessante sua teoria. Não bastasse um inconsciente para complicar a vida, agora temos três.

XXII

Na austera sala, absorto, Dante relia pela quinta vez os Cantos do Inferno. Ia fazendo anotações e mais anotações. Distanciava-se de seus versos, posicionando-se como um severo crítico de si mesmo.

Concluía que os monstros do inferno eram as imagens de seus apetites pervertidos, vivendo nos círculos apropriados à sua natureza.

A alma, depois de morta, perde a capacidade de raciocinar e tomar decisões. Sou dotado de dois instintos: Eros ou instinto de Vida e Thanatos ou instinto de Morte. Eros manifesta-se como libido e tem como função ligar os indivíduos em unidades cada vez maiores. Thanatos pode ser percebido na agressividade e encontra-se ligado a Eros nas manifestações de sadismo.  Na luta entre esses dois instintos, eu permaneço em constante estado de escolhas.  A repressão de Eros se faz necessária, pois implica na consequente repressão de Thanatos, anotava.

Assustava-se com o que ele mesmo escrevera.

Freud havia lhe dito que as principais características do ego são a coerência de seus processos psíquicos, seu controle e o seu núcleo, que é o sistema perceptivo. Na formação do superego havia tanto o material pulsional edípico quanto as restrições impostas pelo ambiente. E que devia reconhecer que no núcleo estava a herança arcaica inconsciente da mente humana. Herança essa datada do período em que a linguagem se desenvolveu. As experiências do ego parecem, a princípio, estar perdidas para a herança arcaica; mas, quando se repetem com bastante frequência e com intensidade suficiente em muitos indivíduos, em gerações sucessivas, transformam-se em experiências do id, cujas impressões são preservadas pela referida herança. Dessa maneira, no id, que é capaz de ser herdado, acham-se abrigados resíduos das existências de incontáveis egos; e quando o ego forma seu superego a partir do id, pode, talvez, estar apenas revivendo formas de antigos egos e ressuscitando-as.

– E se essas experiências assumissem, repentinamente, o controle ativo do ego, isso seria uma reencarnação? – Refletia o poeta com ansiedade.

Definitivamente, esse era um caminho que agora queria deixar de lado em suas reflexões, mas que o assaltava com vigor.

– Todo o Canto IV é portador de uma gama imensa de significados. Cada indivíduo que ali cito. Além de ser uma parte de mim mesmo, carrega consigo um universo de afirmações, histórias, teorias, artes e conhecimentos. O que, realmente, eu quis significar com isso?

XXIII

Retomou o trecho que escrevera sobre Cérbero:

Na minha alegoria, ele é a imagem do apetite descontrolado. O cão de três cabeças, meio cão, meio dragão com cauda de serpente, que tem apetite insaciável. Arranha, esfola, esmaga, dilacera e esquarteja os espíritos dos gulosos. Aqueles que têm apetite desmedido pela carne. Porque, penso eu, o vício capital da gula não se refere aos prazeres do comer e beber, necessidades básicas humanas, mas, sim, ao abuso e as anomalias do sexo.

Mas o que é abusar do sexo?

XXIV

– Dr. Freud, preocupa-me a questão de simbolismos e significados que permeiam minha obra. Serão compreensíveis?

– Consideremos a universalidade do simbolismo na linguagem. A representação simbólica de determinado objeto por outro é familiar a todos e vem, por assim dizer, como coisa natural. Trata-se de um conhecimento original. O simbolismo despreza as diferenças de linguagem. Assim, parecemos ter uma herança arcaica a datar do período em que a linguagem se desenvolveu.  Por esse viés, a noção de símbolo é uma analogia, de algo que, de alguma forma, produz sentido. Sua consistência se localiza lá onde se produz o significado.

– Deixa ver se acompanhei seu raciocínio. O significado, seja ele qual for, se produz na ligação entres os significantes. Só posso dizer o que é uma “casa”, usando outro significante, talvez a letra.  Alguns significantes se tornam portadores de uma grande gama de significados.

– Complementaria que a herança arcaica é a origem da ligação entre significado e significante. Ela consiste em certas disposições inatas, características de todos os organismos vivos. É a capacidade de dar significado ao significante. A herança arcaica situa-se no campo do Imaginário, naquelas formas específicas, por meio das quais o animal humano é capturado em sua relação com o mundo. Compreende o mundo.

– Certo.  O que escrevi poderá ser compreendido pelos homens no seu significante-significado. Mesmo que eu tenha usado muitas metáforas.

– A palavra metáfora é derivada do grego “meta”, além, mais “phorein”, transportar de um lugar para outro. Tem a conotação de transportar o sentido literal de uma palavra ou frase, dando-lhe um sentido figurado. A metáfora se comunica com os dois lados de nosso cérebro. O sentido figurado é compreendido literalmente pelo lado esquerdo associado à mente consciente, lógica e racional, onde se encontram as estruturas corticais responsáveis pelo processamento da linguagem. E ao mesmo tempo, é compreendido no seu sentido figurado pelo lado direito associado à mente inconsciente, intuitiva, criativa, emocional e sábia. A metáfora usa uma linguagem simbólica que é característica da linguagem primária do inconsciente. O que faz uma escrita nos emocionar é a metáfora nela contida.

– Sei, sei…

– Percebi inquietude em sua fala. O que foi?

– Cismo não ter usado claramente as metáforas que escrevi e assim ter armado homérica confusão.

– Será?  Vejamos. Os elementos pagãos que aparecem em sua Commedia se explicam pelo fato de que você não era plenamente católico.

– Tem razão.  Faço parte de uma sociedade secreta – Os Fiéis de Amor – cuja doutrina é gibelina. Como tal, coloco o Império acima da Igreja. O Imperador acima do Papa.

– Seu ódio ao papado e à Igreja rica pode ser comparado à loba, carregando em sua magreza toda a fome de riqueza. Comicamente, isso é explicado com o chão do Inferno todo assoalhado de tonsuras de padres.

– Não esqueçamos que eu era admirador dos Cátaros!

– Só admirador ou um membro?

– Os Gibelinos eram, muitas vezes, cátaros.

– Conheço os fundamentos dos cátaros. Em geral, acreditavam na doutrina da reencarnação e reconheciam Deus como tendo, igualmente, princípios femininos e masculinos. Sendo o ser humano criação e filiação da divindade, as polaridades masculinas e femininas não seriam antagônicas, mas complementares, e, portanto, igualmente importantes. Rejeitavam veementemente a autoridade da Igreja Católica e negavam a validade das hierarquias clericais, ou de intercessores oficiais entre Deus e o homem. Diziam eles que não encontravam em parte alguma dos Evangelhos justificação para a estrutura eclesial romana. No centro desta oposição residia um princípio extremamente importante: a fé só é real se vivida e sentida como uma experiência mística direta, sem passar por uma segunda mão. Além do mais, a única fé real era a que produzisse obras.

– Pois é. A Igreja, sentindo-se ameaçada, tomou a iniciativa de formar Cruzadas. A primeira aconteceu dentro da Europa e contra irmãos cristãos ocidentais. Também cristãos orientais foram trucidados, com as bênçãos de Roma, junto com árabes e judeus nas Cruzadas clássicas à Terra Santa com o fim de extirpar de vez com a ‘heresia’ cátara: a Cruzada Albigense.

– As descrições das crueldades e abominações dessa cruzada são de leitura bem mais terrível do que qualquer narração dos martírios dos cristãos pelos pagãos, porque possuem o acrescido horror que lhes vem de as sabermos indiscutivelmente acontecidas.

– Deve ter visto como exaltei certos poetas conhecidos como cátaros: Arnauld Daniel, mestre da poesia em código; Sordello Casella a quem fiz cantar o poema esotérico Ämor che nella mente mi raggiona, de minha autoria.

– É preciso entender sua Commedia também no simbolismo do não dito, já lhe afirmei.

Dante estacou de chofre.  O não dito significou-lhe uma faca de dois gumes.

XXV

Quando o poeta foi embora, Freud recolheu-se em sua biblioteca. Estava tenso com o que vinha descobrindo em seu ciclópico paciente.

Refletia, absorto:

– O tempo torna-se humano na medida em que é articulado em um modo narrativo e a narrativa atinge a sua significação plena quando se torna uma condição da existência temporal.  No campo do Imaginário, onde o animal humano é capturado em sua relação com o mundo, a noção de símbolo é usada como uma analogia de algo que, de alguma forma, produz sentido. Sua consistência se localiza onde se produz o significado.

A primeira vista, parecendo ser apenas uma relação de personagens, o Canto IV serviu para manter no poeta as principais características do ego, que são a coerência de seus processos psíquicos, seu controle sobre a motilidade e o seu sistema perceptivo na formação do superego. Foi usado como solução para um de seus conflitos quanto à religião.

E o Canto V, que expõe Paolo e Francesca? O indivíduo defende-se dos seus próprios desejos de ser infiel, imputando a infidelidade a outrem. Desvia, assim, a atenção do seu próprio inconsciente, deslocando-a para o inconsciente do outro, e pode ganhar com isso tanto clarividência no que diz respeito ao outro, como desconhecimento no que diz respeito a si.

A defesa aparece como a atribuição ao outro de sentimentos e de desejos, que o individuo desconhece ou recusa em si. É um dos mecanismos do ego, no qual a pessoa acaba atribuindo a outra um sentimento ou pensamento que, na verdade, é dela mesma… Em Paolo e Francesca Dante projetou seus instintos sexuais. Escrevendo sobre os amantes, projetou a própria libido.

No ato projetivo, o indivíduo não se dá conta de que a característica atribuída ao outro é própria, pois o conceito de mecanismo de defesa inclui que tal processo ocorre no inconsciente, devido à repressão para evitar o sofrimento pelo conflito. O indivíduo projeta as excitações internas para o exterior, o que lhe permite fugir e proteger-se delas. Dante transfere-se para Paolo e Francesca.

Sob a máscara do esquecimento e do equívoco, invocando como justificação a ausência de más intenções, Dante expressou sentimentos e paixões cuja realidade teria sido bem melhor para ele próprio. O poeta estaria fora de si ao descrever os dois amantes?

XXVI

Sentada na imensa cama, Gemma, aturdida, pensava no que confessaria ao padre no dia seguinte. Como poderia contar o que fizera? Era uma mulher de seu tempo e como tal lhe fora negado o aprendizado da leitura, porém não era boba. Sabia fiar, tecer e bordar. Também se casara em maio, quando tomou um de seus três banhos anuais e não tinha exalado mau cheiro durante a cerimônia. Seu buquê de flores de jasmim ajudara a disfarçar os odores que por ventura surgissem.

– E se eu for acusada de feitiçaria? Também, quem mandou mexer com coisas do demônio?

E o pior não era isso. Pior mesmo tinha sido o que sentira, usando a pedra de ônix. Fora um sentir intenso e tão prazeroso que até agora se arrepiava ao pensar. Só podia ser coisa do diabo, pois havia momentos em que tinha necessidade incontrolável de repetir o que fizera em seu corpo. Fora possuída pelos espíritos maus? Se assim fosse, não queria ser curada. Mas e a confissão? E se morresse nesse momento?

Gemma vivenciava as angústias do próprio Inferno.

XXVII

– Paolo e Francesca… Eu e Beatrice… Porque não fiz o mesmo que aqueles dois amantes?

Deitado em seu leito, Dante buscava sossegar. Imaginava como teria sido sua vida se ele tivesse sido diferente. Se…

Adormeceu e sonhou:

– Uma mulher aproximava-se dele. O que ele via do seu rosto, o que adivinhava da cabeleira, oculta pelo véu, do seu corpo, oculto pelos adornos, excitava-o.  Era o fino amor. Não lhe pertencia, mas ele se apaixonava por ela. Ansiava por seu toque, pelo seu cumprimento.

Bem perto, Gemma observava-o, disfarçadamente.

O excitante deste jogo vinha do perigo a que se expunha. Amar de fino amor era correr aventura. Obrigado à prudência, e, sobretudo à discrição, tinha que se exprimir por sinais, edificando no seio da confusão doméstica a clausura de uma espécie de jardim secreto, onde ia fechar-se com a sua dama nesse espaço de intimidade. Desejava a espera, o perigo e as dificuldades para ficar com sua musa, pois assim evidenciava seus valores viris. Ejaculou, não conseguindo disciplinar os instintos, conter a volúpia, dosar o ímpeto e represar a lascívia.

Acordou ofegante. Mais uma vez as fraldas rosa lhe foram de utilidade.

Levantou-se, procurou sua pena e escreveu:

Um anjo clama na razão divina,

E diz: “Senhor, entende-se, no mundo,

Que seja maravilha o que provém

De uma alma tal que até no céu resplandece”.

E o Céu, que não possui outro defeito

Que o de não tê-la, ao seu senhor pede,

E cada santo grita por mercê.

Lembrou-se do primeiro encontro. Havia sido os gestos delicados de cumprimento de Beatrice que provocaram nele a produção de poemas que falavam de uma bela dama e do amor que sentia.

– Apenas um cumprimento? Que absurdo fora aquilo?

XXVIII

Dante se via frente a um conflito arquetípico de duas forças poderosas e distintas, que lutavam para poder predominar em sua consciência: imagem e realidade.  Neste contexto, não conseguia se identificar ou rejeitar qualquer uma delas, ficando a mercê de suas intensidades. Percebia as diferenças. As diferenças angustiam. É essa angústia que provoca o querer saber. Só que a abordagem direta é difícil, justamente por que envolve angústia. Assim mesmo pergunta por Farinata, Arrigo e outros, (“e os mais que da virtude o amor inquieta”), quais seriam as imagens transferenciais das virtudes e ou defeitos com os quais cada um acreditava ser dotado?

Imagem e realidade… Virtude e defeito… Caim e Abel!

XXIX

Dante decidiu procurar Jung. Ouvira falar dele como o psiquiatra que divulgara a noção dos arquétipos. E no momento estava interessado em esclarecer algumas dúvidas sobre o assunto.

Não pretendia tratar-se com ele. Queria apenas uma conversa informal, mas esclarecedora.

Dirigiu-se então para a Biblioteca Pública de Bailey Island.

– Bom dia doutor Jung.

O homem interrompeu a leitura que fazia, levantou os óculos até a enrugada testa e olhou interrogativamente para o homem de vestes medievais.

– Ora, ora, mas é o senhor Dante Alighieri quem vejo aqui.

– Já me conhece?

– Por imagens…. por imagens.

– Pois o senhor foi aquela moça ali da entrada quem me indicou.

– Porque me procurou? Soube que é frequentador assíduo do divã de Freud.

– Quero alguns esclarecimentos que vão me auxiliar na solução da minha crise de meia idade. Por exemplo: o que são os arquétipos?

Jung gostou da objetividade do seu interlocutor. Mas mais lhe agradou a possibilidade de mostrar-se melhor que seu não mais amigo, o Sigmund.

São imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos. Chamo-as de imagens primordiais. Anteriores e mais abrangentes que a consciência do ego. Funcionam como centros autônomos que tendem a produzir, em cada geração, a repetição e a elaboração de experiências vivenciadas por essas mesmas gerações ao longo do tempo. Nenhum arquétipo pode ser reduzido a uma simples fórmula. Trata-se de um recipiente que nunca podemos esvaziar, nem encher. Ele existe em si apenas potencialmente e quando toma forma em alguma matéria, já não é mais o que era antes. Persiste através dos milênios e sempre exige novas interpretações. Os arquétipos são os elementos inabaláveis do inconsciente, mas mudam constantemente de forma.

Arquétipos são uma forma de pensamento universal com carga afetiva, que é herdada. Eles dão origem às fantasias individuais e também às mitologias de todas as épocas. Por exemplo, todo mundo quer encontrar sua alma gêmea, pode-se dizer que isto resulta de um arquétipo, da figura de Adão e Eva, ou de outra, pois em todas as religiões existe uma história que ilustra a união entre as polaridades masculina e feminina.

– Compreendi. O Diabo que coloco no centro do meu Inferno é um arquétipo. Caim e Abel também. Sabe? A Commedia, na qual escrevo sobre minha crise de meia idade está repleta de símbolos.

– Símbolos? Tenho grande interesse por eles! Principalmente os coletivos: a estrela de Davi; a Cruz; o Martelo de Thor, adotado por Hitler como Suástica. O Martelo de Thor é do tempo dos Víkings e simboliza a proteção divina contra o perigo. Mas como foi mal usado por aquele alemão danado, é visto agora com medo e desaprovação. Para conseguir desprogramar esse estado, não basta saber a verdade, mas sim repeti-la várias e várias vezes até se reprogramar a mente.

– Descobri que o símbolo sempre evoca algo mais que seu simples significado.

– Certamente. Veja um exemplo: o nome Jesus traz um aspecto inconsciente, que não pode ser definido ou explicado plenamente. Assim são os símbolos.

– Até mais, senhor Jung.

E assim como chegou, foi-se embora. Jung decidiu ler a Commedia, pois seu autor lhe parecera muito estranho.

XXX

Dante saíra apressado porque decidira assistir a uma palestra do Dr. Leopold Szondi. Acreditava que depois dela seria mais fácil entender o Inferno em que estava mergulhado. Não estava muito conformado com o atendimento que recebia de Freud. E seu encontro com Jung também não lhe trouxera grandes novidades.

Entrou no auditório no momento em que o palestrante iniciava a conferência.

– Caim representa o domínio da terra, a tendência homicida, a erupção dos afetos violentos, ainda não éticos: possessão como apropriação, desejo de mutilação e de crime. São as manifestações da pulsão de morte.

O complexo de Caim é determinado também pela libido. Caim quer possuir a terra e regozija-se com a infelicidade do próximo. Dirigi-se contra seu irmão, sente ciúmes dele. No seu desejo de posse, mata esse irmão. Mas aqui não está o Caim inteiro. Inicialmente, não visa possuir. O que ele quer é o amor do pai só para ele. A pulsão da morte, apenas, não dá conta de Caim, há também a coexistência conflitual entre Eros e Tânatos, em uma relação intersubjetiva com o irmão e com o pai.

Caim entra em ódio porque se considera lesado, ele, que se acreditava legitimado a ser o mais amado, pois que se estimava como o mais merecedor. Não era ele, um rude trabalhador, pagando com seu suor e seu sangue um direito presumido a preencher o primeiro lugar no amor do pai?

O Complexo de Caim, tal como está descrito no mito bíblico, é um fenômeno mais profundo e abrangente do que o Complexo de Édipo descrito por Freud, segundo a mitologia grega.

O trágico de Caim é que ele se engana de lei.

A lei que rege a sua existência é de essência materna. É a lei dualista do pertencente recíproco; seja todo meu, serei todo teu, pois saíste de mim e de mim recebeste tudo; pois tudo que sai de ti, teu trabalho, tuas obras, teus pensamentos, me sejam entregues. É a lei da troca anal e da relação sado-masoquista.  Na intenção radical do seu ato encontra-se o germe da necessidade de que o Outro nada encontre para comentar. E esse Outro não responde à expectativa de Caim. Do mesmo modo que existe outro e Outro, existe a lei e a Lei.

Mas Caim não é apenas o impulso assassino, é também o desejo de autoafirmação, o desejo de poder, de ter. Por isso, pode transformar-se, transmutando-se em Complexo de Moisés: o Homem violento e passional a serviço da justiça divina. Por isso o “sinal de Caim”, a marca na testa que, segundo a tradição lendária, assinala a descendência do irmão assassino, tanto pode ser interpretada como indício de que se trata de um Homem violento, quanto como garantia de que esse Homem decidiu interromper a sequencia de iniquidades de seus antepassados e dedica-se ao bem, à cultura, às leis, à humanização[i].

O destino de Caim poderia confundir-se com o de Sísifo. Se o Outro tivesse agregado a sua oferenda, teria podido “imaginar-se feliz”, como disse Camus, mas teria sido um logro. Outro não permitiu que ele perseverasse em um destino de escravo anal.

Mas no final, o que queria o Outro?

Para a questão crucial do desejo do Outro, é Dostoievski quem dá a resposta na lenda do “Grande Inquisidor”, este “grande velhaco, quase nonagenário, com uma fisionomia encarquilhada, com olhos cavos, mas onde ainda brilha uma chama” é quem desejaria de algum modo que se tomasse por um pai.

Na Psicologia do Destino se concebe o homem como um ser, que desde o princípio é arrastado, compelido na sua vida, mas que, com a maturação, tem a oportunidade de escolher entre suas possibilidades e com isso realizar a sua liberdade. Por isso a Psicologia do Destino distingue entre destino obrigado (coercitivo) e destino livre. A “disposição de matar” do homem, o “mau”, vem de Caim; a necessidade da consciência, o estabelecer leis está simbolizado por Moisés. Estas figuras bíblicas são símbolos do destino humano, que por sua natureza polarizada, complementar e integrante, se correspondem intrinsecamente. Em cada Caim há um Abel e, em cada Abel há um Caim. A polaridade de “Caim e Abel e sua integração na figura de Moisés” tem um significado especial, já que a concepção destino analítica de sua ação criadora dá origem à aquisição da consciência, da ética, e da Lei para proteger a vida.

– Seu destino, qual seria? Imagem ou realidade? Livre ou coercitivo? Interrogou-se Dante.

XXXI

Pela primeira vez em sua vida Gemma não se confessou. Nem mesmo teve coragem de erguer os olhos para o altar. Quando o padre finalizou a bênção, saiu apressada, evitando-o.

Sozinha em seu quarto, não encontrava mais paz. Ardia em uma febre desconhecida para ela. Sentia… se tocasse seu corpo…  mas temia o remorso que se entranharia mais ainda nela. Via-se sem saída. Desejo e pecado… De que lhe servira a vida até aquele momento? Estava possuída pelos demônios da carne. Esse era seu castigo… Contudo, sabia agora como viver, nem que por instantes, o paraíso. Ah, se não houvesse depois a maldita culpa!

O divino e o satânico dilaceravam suas entranhas.

XXXII

– O senhor aqui outra vez, Szondi?

– Um certo poeta esteve assistindo minha última conferência e cá entre nós dois, achei-o muito louco, quase maluco.

– ??????

– Dante Alighieri.

– Há. Ele deve chegar daqui a pouco para nossa conversa semanal.

– Posso me fazer presente?

– Se ele assim o permitir…

– Boa tarde. Essa não é a minha hora, Dr. Freud?

– Boa tarde, poeta. Esse senhor aqui presente tem muitas coisas para dizer que poderão ajudá-lo. Podemos conversar os três?

– Se não tem outro jeito… Vou avisando que posso ir-me embora para sempre…

– Acredito que falamos quase a mesma linguagem, senhor. Eu vim na tentativa de esclarecer alguns tópicos que o Dr. Freud aqui parece ter deixado no limbo do conhecimento.

– Só tenho duas dúvidas cruciais: meu inferno e minhas fraldas cor de rosa.

– O inconsciente familiar é a estrutura hereditária particular do indivíduo.

O homem é composto de genes. Há pluralidade de genes, e há, de modo concomitante, pluralidade de possíveis escolhas existenciais na origem da vida, pois cada gene é portador de uma maneira de ser possível, cuja finalidade é a de reproduzir um estado psíquico hereditário. As disposições são reagrupadas aos pares, uma oposta a outra. Estes pares disposicionais antagônicos condicionam os pares pulsionais antagonistas. Há um elo de união.  A unidade entre genes, disposições e pulsões é assegurada em última instância pelo “fator de unidade”, princípio de relação e de equilíbrio total da vida, o Ego-Pontifex.

Um silêncio estabeleceu-se entre os três homens. Szondi passou a desfrutar o prazer da novidade que trazia e que provocava estupefação em seus dois ouvintes.

Dante pensava: – esse está pior que eu! O que o Pontifex, que para mim é o Papa, tem a ver com o uso que faço de fraldas cor de rosa?

O silêncio foi interrompido por Freud.

– Vejamos se entendi bem suas colocações, colega: para o senhor as pulsões são condicionadas por genes específicos, baseados na genética; há uma polaridade das aspirações e das necessidades pulsionais, uma tensão, cujo equilíbrio é mantido pelo Ego Pontifex, que assegura o dinamismo de todas as ações pulsionais.  E essa dinâmica situa-se no nível existencial, o do destino humano.

– Mais ou menos isso, Freud. E assim a base deste destino não é mais uma relação de objeto investida de energia libidinal, mas um movimento que não tem outro fim, senão ele-mesmo. Portanto, a sua tão famigerada energia libidinosa não é mais a energia psíquica única!

– Não concordo com sua teoria, Szondi! A base de todo existir humano é a energia libidinal.

Sentindo-se fora da discussão, Dante retirou-se.

XXXIII

Sozinho, com textos de Jung em sua frente, o poeta buscava por respostas. Observou que este procurava, não só no romance familiar, como Freud, mas no arquétipo da imagem paterna, a importância do pai para o destino do indivíduo.  Um parágrafo prendeu-lhe atenção: “Se nós, pessoas normais, pesquisarmos nossa vida, veremos que uma mão poderosa nos conduz infalivelmente a destinos vários, e nem sempre essa mão pode ser chamada de bondosa. Também na linguagem hodierna a fonte de tais destinos aparece como um demônio, como um espírito bom ou mau. Essa mão é representada pelas imagens arquétipo do pai e da mãe. A força do complexo paterno capaz de determinar o destino provém do arquétipo, e este fato é a verdadeira razão pela qual o consensus gentium coloca no lugar do pai uma figura divina ou demoníaca; pois o pai individual corporifica inevitavelmente o arquétipo, que confere à sua imagem uma força fascinante. O arquétipo atua como um ressonador, ampliando exageradamente as atuações provenientes da imagem do pai na medida em que concorde com o tipo herdado.”

– Mas então, a compulsão que modela a vida de nossa alma tem o caráter de uma personalidade autônoma, ou é sentida como tal? Como um demônio, as imagens paterna e materna, com força mágica, influenciam a vida psíquica da pessoa? Estamos sujeitos ao poder destas imagens-arquétipo, pois orientam nosso destino? E nada mais resta a cada um de nós, senão levantar-nos contra a influência do arquétipo da imagem paterna ou materna, ou então, identificar-nos “com o patris potestas, ou com a formiga-mãe”?

O poeta começava a pensar que a teoria szondiana do inconsciente familiar tinha lá o seu valor.

XXXIV

– Senhora, o padre Chrisostomo veio vê-la.

Gemma nem teve tempo de abrir a boca e o padre adentrava seus aposentos, apresentando-lhe o anel para que o beijasse.

Estranhamente, dessa vez sentiu, ao invés do frio do metal, o pulsar quente da mão humana.

– Percebi que a senhora não tem frequentado os Santos Sacramentos.

– Ah, senhor Padre! Estou em pecado contra Deus e contra os céus.

E a mulher caiu de joelhos diante do clérigo, abraçando-se às pernas que a batina escondia.

– Conta-me o que houve.

E Gemma não mais podendo reter seu segredo, revelou-o por inteiro ao homem de Deus.

Quando parou de falar, o pranto lava-lhe a alma.

O padre, inquieto, ergueu-a pela mão e a conduziu com lentidão para a alcova que conhecia de outras visitas, quando viera lhe dar a bênção divina por ocasião do nascimento dos filhos.

– Vamos, pegue a pedra de Ônix que vou exorcizar seus demônios. Não tenha medo. Sou representante de Deus e tenho poder para apaziguar sua alma. Fecha seus olhos e apenas sinta. Terá uma vivência do paraíso quando o mal se for.

Daquele dia em diante, todas as quartas e sextas-feiras, padre Chrisostomo comparecia para exorcizar os males de Gemma. Essa, depois que ele ia embora, desfrutava de um sono reparador.

Gemma voltou a frequentar a missa e aos sacramentos.

XXXV

Reclinado no divã do psiquiatra, Dante se dispôs a falar. Pediu que Freud não o interrompesse até que finalizasse o que queria dizer.

– Minha linguagem é metafórica e mítica. Meu movimento poético vê as imagens como apresentações, pois os símbolos só podem aparecer em imagens e como imagens. Essa é minha individuação poética. Esse é meu processo de poetar.

Em todas as apresentações eu coloco um contrapasso. Por exemplo, ávaros e pródigos têm como contrapasso completar o giro da roda da fortuna, que ajudaram a desequilibrar, quando viviam. Suas riquezas materiais se transformaram em grandes pesos, que um grupo deve empurrar contra o outro, pois suas atitudes em relação à riqueza foram opostas. Quero mostrar que o faltoso é punido de tal forma que a sua pena lembre sempre a culpa cometida em vida ou o vício que selou o seu destino. No Canto V, um turbilhão agita as almas que em vida foram vítimas da paixão amorosa. No canto X, encerro os heréticos pela eternidade em túmulos abertos, pois em vida não acreditaram na ressurreição. No Quinto Círculo coloco o rio infernal Estige e no fundo dele os rancorosos que, por nunca terem externado sua ira, não podem subir à superfície e ficam presos na lama que há lá.

No Canto VIII, reforço a influência cultural no comportamento humano, fazendo a divisão entre os pecados cometidos sem intenção e os pecados cometidos conscientemente, todavia ambos merecedores de castigos.

Nos círculos da incontinência digo que são punidos os pecados da culpa causada pela falta de autocontrole. Nos círculos da violência puno os pecados que foram cometidos de forma consciente e por vontade do pecador, que teve que agir de alguma forma para escolher o mal. Os seres mitológicos que habitam este círculo são seres meio humanos e meio animais como os Centauros, o Minotauro e as Harpias. No oitavo círculo coloco aqueles que procuram o mal por vontade própria, o planejam e o premeditam antes de executar. São os fraudulentos. Os seres mitológicos que ai habitam mentem, enganam e trapaceiam. São demônios.

Considero a traição o pior dos crimes. É o mal planejado e executado contra uma pessoa desarmada e indefesa, por se sentir segura diante do agressor, no qual confia. É o centro do Inferno, no nono círculo. Ai está Lúcifer, que traiu a Deus e que tortura eternamente os traidores humanos.

Então, eu que trai a mim mesmo, serei torturado por Lúcifer?

Diante dessa questão, o poeta desabado, chorava convulsivamente.

Freud esperou que ele se acalmasse, com ares de profunda meditação.

– Alighieri, presta atenção. Em toda ação humana há três coisas que devem ser evitadas: a malícia, a incontinência e a bestialidade. A alma incontinente tem culpa, mas uma culpa menos grave que a vontade de pecar. Essa vontade quando surge como manifestação da natureza animal é ainda menos grave que aquele ato que é cometido de forma arquitetada, premeditada, usando a inteligência própria do ser humano a serviço do mal. Agora, a traição cometida contra alguém indefeso e desarmado deve ser punida sim nas profundezas mais profundas do seu Inferno.

– Mas então….

– Cale-se. É a sua vez de me ouvir. Você nunca esteve indefeso e muito menos desarmado. Seu conhecimento, seus estudos, sua vivência fizeram-no um homem sábio. Logo, se você se traiu a si mesmo, não estava traindo a nenhum ingênuo. Cometeu erros, é verdade. O erro é o preço que os seres humanos pagam pelo desequilíbrio em suas atitudes e pela habilidade de pensar e agir intuitivamente.  É a possibilidade de errar, ou acertar, que torna a espécie humana a única dotada da capacidade de escolher entre ideias, caminhos, soluções e alternativas diferentes.

Você transgrediu conhecimentos coletivamente aceitáveis. E agora se apavora por que se vê sozinho, diferente dos outros e acredita estar enlouquecendo. Afirmo que seus conflitos emocionais são resultantes do antagonismo da vida social e cultural, diante de um sujeito desejante.

Nos seus versos mostrou o Inferno como o local próprio para aqueles que se deixaram dominar pela natureza projetiva. Estaria buscando um motivo aceitável para si mesmo por se ter deixado levar pela paixão do transgredir criativo?

XXXVI

Envolvido em seus pensamentos, Freud não vira que a noite chegara. O poeta havia ido embora há muito tempo. Pensava no Outro o lugar do simbólico e onde esse simbólico surge. Começava a entender o Inferno como o Outro de Dante. E a disposição do Inferno em círculos não com o objetivo de reduzir as imagens poéticas a seus elementos mais simples ou a um significado único, fixo, mas como a circum-ambulação por diferentes aspectos, até que surgissem inúmeras e diferentes formas de sentidos. Isso porque nada possui um único sentido. Se o sujeito está inserido nos processos culturais, simbólicos e históricos, esses acabam por invadir as imagens poéticas e ele imagina.

XXXVII

Szondi, que se sentira fascinado pelo poeta que encontrara pela última vez no consultório de Freud, lera a Commedia com sofreguidão até chegar ao ponto em que ele abordava o sofrimento dos suicidas.

Reconhecia que ali Dante expunha seu conflito interno entre Eros e Thânatos. E como não soubera se defender de todo sofrimento ocasionado por esta luta, imaginou e trouxe o tema do suicídio como sendo o único capaz de ajudá-lo a unir forças tão antagônicas para ele. Era uma nova imagem poética ali recitada. Mas o que se entenderia por suicídio?

Lembrou que Freud explicara o conflito humano interno, estabelecendo a necessidade do equilíbrio entre as duas pulsões, Eros e Thânatos, para que o suicídio não ocorresse, a pulsão da morte dominando a pulsão da vida. Afirmara que o suicídio seria a expressão máxima do fenômeno da raiva em direção a um objeto do desejo; raiva que a pessoa desviava para si mesma. Suicidar era um momento de revolta. Não acreditava que houvesse suicídio sem o desejo reprimido de matar. E justificou toda morte como um suicídio disfarçado. Ele afirmava que a tentativa de suicídio se constituía em um ato para punir-se e também concretizava um desejo.

Abordara ainda a possibilidade de pensar o suicídio como gesto de comunicação praticado por alguém que se vê tolhido na sua razão comunicativa.[ii]

Jung escrevera que o suicídio devia ser estudado pelo lado da alma. Com as tentativas de suicidar, a alma buscava novos significados para a vida. Tinha um significado simbólico relacionado com a interioridade e era um ato singular para cada ser humano. Para evitar o evento, o homem devia manter a conexão com seu interior e não perder sua alma. O suicídio era uma forma funesta de resistência à vida no mundo. A alma deseja a morte. Por isso todos, em algum momento de sua vida teve a chamada “ideação suicida”, do tipo “vão sentir minha falta?, como será se eu morrer?, a morte dói?…

Szondi pensou um pouco e escreveu: suicídio é uma saída de emergência extrema para um conflito do ego. A vida humana é uma constante mudança, uma circulação dinâmica com suas possibilidades de escolhas. O destino, a história do homem, é a história de suas escolhas e, em decorrência, de suas trocas. Isso constitui o “fórum giratório da vida”. A ideia de destino é dialética, isto é, se move sempre entre contrários e opostos, inconcebível como estagnação.  A morte é estagnação. O suicídio, o ato que concretiza em definitivo tal estagnação.

XXXVIII

Szondi encontrou Dante no Martinho da Arcada em Portugal. Ocupava uma mesa de canto, quase ao lado daquela que pertencia a Fernando Pessoa. A quantidade de jarras vazias sobre a mesa dava indícios do ânimo do poeta.

– Boa noite.

– Boa noite.

– Obrigado por se encontrar comigo.

– Aqui eu não vejo nenhum problema. Nunca iria a seu consultório. Bastam-me as confusões que estou arrumando naquele do Freud.

O recém-chegado escondeu leve sorriso sob a tragada no cachimbo e sem esperar convite, assentou-se diante do poeta.

– Você ia suicidar?

Sem abalar-se com a rigidez da pergunta, Dante com voz cansada e arrastada desconversou.

– O impulso da Vida e o impulso da Morte moram lado a lado dentro de mim. Uma é fiel companheira da outra. Irmã inseparável. Única certeza desse incógnito existir. Sempre não me engana. Sempre não me trai. Caminha junto, pronta a abraçar-me. Dela não poderei fugir. Ela é comigo e pronto. Sinto que vibra dentro de mim um contínuo desejo dela, uma libido de morte. Suicídio é a negação do objetivo derradeiro de minha vida, que é a morte em si mesma. Nasci para morrer. Desejo a morte da alma para ter a possibilidade de mudança e recomeço. Como condenei os suicidas a passarem a eternidade feito árvores, sofrendo os arranhões das harpias, eu contive meu desejo de suicidar. Suicídio é a negação de mim mesmo. Dizem que a morte cheira mal. Não concordo. Ela é perfumada. Tem o odor de ápice de vida. Suicídio é a embriaguez provocada pelo seu cheiro.

– A morte tem sua hora certa?

– Somos nós que, pelas escolhas que fazemos, construímos essa hora. Se tomarmos consciência de cada escolha feita, temos a possibilidade de identificar tal hora. Na história da humanidade há relatos de inúmeras pessoas que sabiam exatamente o momento de sua morte. Mesmo que a vida seja nossa maior incógnita, a morte é uma certeza. O suicídio determina sua hora.

– Um brinde às duas irmãs siamesas!

– Um brinde aos versos que Marilene Caon escreveu e que eu gostaria de ter escrito:

Ao ouvir sua chamada

Meu corpo empalidece

Transformada é a alma

A agonia se envaidece.

Como ir? Sou aprisionada

No fio suave de Ariadne.

Posso parti-lo!

Sem nave?

Perdida ave de arribação

Não sei onde pousar.

Abro os braços, abraços

Na irmã em despedida.

Amanhã, no coração.

Qualquer lugar… Quem sabe?

Szondi imaginou se ele ainda estaria usando as fraldas cor de rosa.

XXXIX

– Gemma, esqueceu a prece inicial quando ajoelha no Confessionário?

– Não. Acontece que não estou aqui para me confessar, padre Chrisóstomo.

– ?????

– Não quero mais ficar amordaçada. Mesmo que eu corra risco de ser queimada na fogueira da Santa Inquisição, vou confessar. Com muito esforço aprendi sozinha a ler. É a primeira pessoa a quem revelo isso, mas como estou protegida pelo segredo da Confissão… Busquei nos livros de meu marido o significado para o estranho desejo que tem me dominado e que você diz que são demônios que, duas vezes por semana, expulsa de minhas entranhas. Encontrei a palavra libido. Vem do latim: libere, desejo de agradar.  E descobri também que foi Santo Agostinho o primeiro a distinguir três tipos de desejos: a libido sciendi, que é o desejo de conhecimento, a libido sentiendi, que é o desejo sensual em sentido mais amplo, e a libido dominendi, que é o desejo de dominar.  Sinto, então, que a mobilidade é a sua principal característica. Pensei sobre isso e cheguei à conclusão de que libido é meu desejo de tocar a minha alma.  Você é um simples instrumento da libido sentiendi…

– Gemma, o que está me dizendo?

– Até quarta-feira lá em casa, padre Chrisóstomo.

XL

– Resolveu voltar, poeta florentino?

– Pois é Freud. Como o tempo é estagnado e somos nós que passeamos por ele, vim dizer que sou um assassino.

– Como assim?

– Sou assassino de mim mesmo. Em cada escolha que faço, assassino tantas outras que poderia ter feito.

– Isso não me surpreendeu nem um pouco. Os textos de Alamut de Hassan Ibn Sabbah, (O Velho da Montanha), chefe de uma seita religiosa, afirmam que ele  chamava os seus adeptos de assassiyun, os que são fiéis ao Assass, ao «fundamento» da fé. E como você é fiel a si mesmo… Pois acredito que você continua com suas fraldas cor de rosa.

XLI

Caminhando pelas areias do Leblon, Dante escrevia em suas anotações:

Usei signos para reforçar a necessidade do equilíbrio nas minhas ações humanas para a curva geodésica da vida. O fundo de meu Inferno é um imenso bloco de gelo. Há ai uma imobilidade alucinante.  A estagnação que significa morte. Só eu posso escolher o movimento para aquecer o meu gelo íntimo.

Meus novos amigos concluíram:

Inconsciente Individual – (Freud) As experiências de vida, mesmo que não estejam permanentemente em nossa consciência, influenciam nossas escolhas e decisões (os mandados dos pais – seja bonzinho, não faça isso; experiências de resultado afetivo emocional  fortes, dolorosas ou, ao contrário, recompensadoras – motiva o comportamento pela escolha inconsciente baseada na experiência individual).

Inconsciente Familiar – (Szondi) A herança dos antepassados que, como tendências instintivas influenciam nossas escolhas, nossas decisões (motiva o comportamento pela escolha inconsciente baseada nas pulsões – tendências instintivas).

Inconsciente Coletivo – (Jung) As marcas em nosso comportamento impressas pela nossa espécie (os mitos como, por exemplo, o herói, o velho sábio) motivam o comportamento pela escolha inconsciente baseada na “experiência” da espécie. Quanto maior a consciência, menor o inconsciente.

– Mas e se eu tivesse a audácia de afirmar que o inconsciente só existe como uma criação teórica seria ainda um respeitado poeta? E que é a maneira como desvendo meu Inferno íntimo que provoca minhas escolhas?

XLII

Da janela do Copacabana Palace Hotel Dante era fascinado pelo mar que no horizonte se confundia com o céu. Entendia que se tivesse suicidado, permaneceria incomodando o mundo “dos outros”, uma vez que eles ficariam procurando significado para seu gesto. Escreveu:

– Com meu Inferno, fiz uma tentativa de aproximação entre as imagens da fantasia e meu comportamento individual diante de uma figura, de um processo arquetípico. Construí um mito, considerando todo comportamento e fantasia como expressões poéticas da alma. Estabeleci a dualidade Imagem e Olhar Imaginativo. Não devo esquecer que imagem sempre envolve alguma fantasia arquetípica, uma perspectiva mítica.

E quanto a Freud, penso que se aproveitou de um sábio filósofo da antiguidade para iniciar sua teoria sobre as pulsões. Lembro que Empédocles ensinou que dois princípios dirigem os eventos na vida do universo e da mente, e que esses princípios estão sempre em conflito um com o outro. Chamou-os philia (filßa) e neikos (neákow), o amor e o ódio. Desses dois princípios, que ele concebeu como “forças naturais a operar como pulsões”, um deles se esforça por aglomerar as partículas dos elementos fogo, vento, ar e água, em uma só unidade, ao passo que o outro, ao contrário, procura desfazer todas essas fusões e separar umas das outras as partículas primevas dos elementos. Ora veja, os dois princípios fundamentais de Empédocles, filßa e neákow, são, tanto em nome quanto em função, os mesmos que as duas pulsões primordiais, Eros e Thânatos, das quais o primeiro se esforça por combinar o que existe em unidades cada vez maiores, ao passo que a segunda se esforça por dissolver essas combinações e destruir as estruturas a que elas deram origem.

Compreendi que o grande conflito de meu Inferno foi a minha impossibilidade pessoal de admitir que eu me identificava com os dois princípios ao mesmo tempo: Eros e Thánatos! Eu só tinha que manter o equilíbrio entre essas duas pulsões.

Fui constantemente dilacerado entre o princípio do prazer e o princípio da realidade. Antes de Freud escrever sobre isso, eu, poeticamente, os descrevi como vivências.  Todas as pessoas que distribuí pelos meus círculos infernais, um dia existiram realmente. Representam comportamentos que a moral social condena. A finalidade do ‘princípio de realidade’ é, no seu confronto com o princípio do prazer, capacitar a pessoa a construir defesas que a protejam dos desprazeres com que o mundo externo a ameaça.

Lançando pessoas reais na vala infernal, me defendi dos que me acusavam e vinguei-me do que me fizeram passar. Também criei minhas defesas. Escrevendo o meu Inferno, optei pela vivência psíquica do máximo do sofrimento, explorando todas suas formas e horrores, objetivando esgotá-lo, para, então, poder alcançar o prazer. Escrevi o Inferno para domesticar minhas pulsões em delicado equilíbrio, no momento preciso de meu relacionamento com o mundo externo. Descrevi de forma completa e com força o dilema dentro de mim, onde se digladiaram Thânatos e Eros. Meu Inferno, imageticamente, foi minha grande punição de poeta apaixonado pela poesia.

XLIII

Sentados em um banco do Parque da Redenção, quatro homens conversavam.

– Chegou o momento de esclarecermos porque você usa fraldas cor de rosa. Como fui o último a chegar aqui, honrarei o ditado que afirma que os últimos serão os primeiros.

– Tudo bem, Carl. Por esse motivo nunca iremos brigar.

– Eu darei a explicação final.

– Está bem, Dante, afinal de contas você é o usuário.

– Seguindo minha linha teórica, afirmo que o uso das fraldas cor de rosa tem a ver com os arquétipos, que são formas sem conteúdo. São “vazios em si”, e serão preenchidos pelas experiências de vida de cada um. Por não possuírem uma forma, eles manifestam-se através de símbolos ou comportamentos. Veja bem, minha vida é a história de um inconsciente que se realizou. A sua vida poeta, é a história de seu inconsciente. O Arquétipo que o faz usar fraldas é a Anima, que expressa as tendências psicológicas femininas na psique masculina. É a imago materna, já que a primeira projeção da anima do filho é em sua mãe.

– Na minha teoria, o uso de fraldas cor de rosa advém de um trauma psíquico de Dante. Defino trauma psíquico como toda impressão ou vivência que provoque afetos penosos de medo, susto ou vergonha e que o sistema psíquico tem dificuldade para resolver por meio do pensamento associativo ou por reação motora.

– Pois penso que é o objeto, no caso as fraldas cor de rosa, que, através da projeção, tornaram-se onipotente e o sujeito, Dante, ao contrário, totalmente impotente. Mas, apesar dessa impotência, o eu tem o sentimento latente de sua potência. Pois se ele é perseguido de fora, é porque ele é maior que o perseguidor. Ele escolhe se deseja um destino livre ou um destino obrigado.

O poeta foi incapaz de conter o riso, que lhe trouxe lágrimas aos olhos. Quando enfim conseguiu se conter falou:

– Minha cor preferida é o rosa. Como ficaria estranho eu estar sempre vestindo uma túnica dessa cor, optei pelo uso de fraldas rosa, que eu mesmo corto e faço. Para Gemma eu disse que homens como eu devem usar esse tipo de vestimenta porque o rosa é uma cor descontraída. Influi nos sentimentos convertendo-os em amáveis, suaves e profundos. E também nos transforma em pessoas sensíveis, amorosas, protetoras e carinhosas. E tenham presente que o rosa que uso é o rosa choque, uma cor íntima romântica.

Freud coçou a cabeça. Imaginou se não estaria diante de um homem com um enrustido desvio sexual de conduta.

Jung esfregou as mãos, pensando em como descobrir de que forma o animus se manifestava em Gemma.

Szondi pensou em como seria interessante desenhar a árvore genealógica do poeta a fim de identificar quem mais em sua família tinha usado as tais fraldas.

Dante fixava os três homens, contendo o riso. Refletia em como os psiquiatras e psicanalistas conseguiam encontrar sérios problemas em um simples gostar de uma cor. E em um óbvio gosto de usar fraldas.

 

[1] No romance de Herman Hesse, Demian, a marca de Caim aparece como um sinal dos seres superiores, onde algo de diabólico coexiste estranhamente com um traço de humanitarismo e de criatividade divina.

[1] Freud cometeu suicídio assistido em 1939. Era seduzido e obstinado pelo desejo de oposição a Deus.

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Marilene Cahon, brasileira, professora, escritora, poetisa, cidadã caxiense, autora dos quinze volumes que deram a Caxias do Sul o título de Capital Brasileira da Cultura em 2008. Membro da Academia Caxiense de Letras a qual presidiu no biênio 2012-2013, ocupando a cadeira de número 15.