SPAGHETTI E SOMBRINHAS JAPONESAS – por Danyel Guerra

Lisboa, 1981- Glauber Rocha tendo ao fundo um cartaz de ‘Raging Bull’, de Martin Scorsese.

   

“Ida Lupino, John Cassavetes e Glauber Rocha foram uma influência  fundamental para a minha formação. Seu Cinema continua sendo  uma inspiração para mim, enquanto cinéfilo e cineasta”   

 Martin Scorsese

 

 Feliz aniversário, Glauber!   

 Num incerto dia de um outono dos anos 70, Juan Luis Buñuel passeava por Saint-Germain-des-Prés, quando, de súbito, alguém cutucou seu ombro. Ao se virar,  logo reconheceu o cidadão. Trazia um pacote nas mãos e intimou Juan a acompanhá-lo. “Ele parecia ansioso, aflito mesmo”. Em passo acelerado caminharam até à margem esquerda do Sena.

“Então Glauber desembrulhou o pacote e começou a jogar tudo no rio. Era um monte de espaguete, com umas sombrinhas japonesas por cima. Depois me deu um abraço e foi embora. Fiquei sem entender nada”, confessou o filho de Luis Buñuel.

Tal como Juan, eu e vocês também não estamos entendendo nada, pelo menos por enquanto! Se acaso Rocha fosse um diretor de western spaghetti, daqueles que usa muito ketchup fazendo de sangue, este insólito ritual ainda teria algum sentido. Mas não! O mais próximo de um western a que ele chegou foi em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). Ou, com mais propriedade, em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), segundo painel do díptico cordelista sobre o cangaço. E dessas duas versões das malvadezas do matador de aluguel Antônio das Mortes, perseguindo cangaceiros desgarrados, camponeses miseráveis, beatos fanatizados e pregadores apocalípticos, ele só tinha motivos para se regozijar. Uma saga que Scorsese jurou que amaria para sempre. E tem cumprido a jura.

     “Eu inventei o Cinema Novo”

Por muito que sua cinematografia denotasse vibrações eisensteinianas, reverberações do neorrealismo italiano e empatias com a nouvelle vague francesa, ele tinha razões de sobra para se orgulhar da invenção de uma obra artisticamente autônoma. A bizarra performance podia não passar de mais uma tirada caprichosa e farsante, naquele impagável estilo glauberiano. Como esta proclamação prenhe de agridoce insolência.

“Esse negócio de Cinema Novo é o seguinte: O Cinema Novo c’ est moi… L’ état c’est moi!!! Eu inventei isso na Bahia, entendeu?”

Durante quase duas décadas, o ex-aluno de Agostinho da Silva — com quem terá aprendido a se tornar paradoxal, não deixando nada pela metade–, agiu e funcionou como o mais explosivo e controverso integrante do movimento do Cinema Novo, a correspondência tropical à vaga da politique des auters deslanchada em França, nos anos 60. Rocha foi o Lênine da revolução da estetyka da fome e da vontade de comer Cinema (isso mesmo, com “C” maiúsculo).

Quando ritualizou este despacho*, Rocha já teria conscientizado que o capital de esperança da “invenção-revolução” cinemanovista estava se exaurindo. Anos antes, sua loquaz cabeça falante por pouco que não fora cortada pelo poder ditatorial, instalado no Brasil pelos militares da (contra) revolução de 1964.

Filmando a Revolução dos (Es)Cravos

Para os “milicos”, a ficha do rebelde já tinha ficado muito suja após a estreia de Terra em Transe (1967), uma subliminar alegoria política sobre o Brasil coetâneo, que Nelson Rodrigues ousou classificar como “um vômito triunfal, essa golfada hedionda”.  Após golpear O Dragão da Maldade… não era preciso ser muito sagaz para sacar que os dragões militares não iriam suportar que Cannes o santificasse  com a Palma de melhor diretor sem um corretivo. Essas intimidações também explicam os motivos que condenaram Câncer, rodado em 1968, ao longo de quatro dias, a ficar quatro anos na gaveta. Um filme sem história, isto é, sem enredo, com o qual, se abeirando da eztetyka marginal, Glauber procurou provar que “o caminho do Cinema são todos os caminhos.”

Cabra marcado para morrer ou, no mínimo, para ser encarcerado, o rebelde é forçado ao exílio, sendo acolhido em Itália, viaja para França, e visita God(ard) no plateau de Le Vent d´Est (1969), filme do coletivo Dziga Vertov, onde faz uma ponta como ator. Prosseguindo a diáspora, filma no Congo Brazaville, Der Leone Have Sept Cabeças (1970), “uma epopeia africana”, tentativa de explicar a História de um ponto de vista materialista. Na Catalunya, dirige  Cabezas Cortadas (1970), em 14 dias, uma espécie de sequela de Terra em Transe, no território do delírio e do desvario.

“É um filme contra as ditaduras. Trato do que seria o encontro apocalíptico de Perón com Franco, nas ruínas da civilização latino-americana”, sintetizou.

Eis o apogeu do Glauber trash, porém sempre cult. A fase de quarto minguante acentua-se em meados da década. Antes de rodar Claro (1975), em Itália, Rocha ajuda a captar, em cinema (quase) espontâneo-instantâneo,  a Revolução dos (Es)Cravos em Portugal. É um dos “autores” do coletivo As Armas e o Povo (1975), registro engagé e militante do início do processo revolucionário em curso a partir do esfuziante 1º de maio de 1974.

Nesse ínterim, na parte de baixo do Equador, o Cinema Novo vive tempos heróicos, dramáticos, para não dizer trágicos. Numa reflexão inundada de lucidez, Cacá Diegues sublinhará que, como o próprio Brasil, “a história de seu Cinema é a história de uma crise permanente.” A crise declarara-se ainda nos anos 60, consumado o falhanço da proposta de conscientização política e popular. Dificuldades agudizadas pela flagelação teórico-ideológica dos mentores do rival Cinema underground/marginal/experimental.

Ao longo dos anos 70, a problemática se agrava em ordálio, apimentada pela intensificação da censura militar. O impasse é acentuado pela colisão, como um Titanic, no iceberg da trituradora máquina consumista da era do vídeo, anunciando o pós-Cinema.

 Sem ter medo do estranhamento

Nessa conjuntura de crise dialética, um Rocha sem medo de gerar estranhamento páre o politicamente visionário A Idade da Terra (1978), derradeiro título, assombrando Serge Daney, diretor dos Cahiers du Cinéma, e reconciliando o rival desafeto Júlio Bressane com seu cinemarte, enfim buscando afinidades com o figurino underground.  

No ano, 1981, em que desencarna, por pouco em Sintra, por fim expirando no Rio de Janeiro, o Brasil parecia finalmente liberto das manápulas castrenses, embora o regime democrático e o estado de direito só tivessem ficado configurados na Constituição de 1988.

A novidade tornada Cinema estava exaurida. Pobre, mas honrado, o CN iludia-se, porém. Queria continuar sendo, “não uma questão de idade, mas de verdade”, assim clamava o precursor Paulo César Saraceni. O genuíno engajamento dos pioneiros já se esvaíra, a energia generosa dos próceres estava esgotada. Dissipada a coesão do grupo, seus integrantes partiram em direção a carreiras, que um vulcânico Glauber rotularia como acadêmicas, atrofiadas por um indisfarçável “medo do estranhamento”. Por isso, não seria assim descabido interpretar o exorcismo ensenado, ainda nos anos 70, em Paris, como uma manifestação de simpatia mágica.

Podia ser – sabe-se lá! – que o feitiço sujeitasse o CN a uma transfusão de sangue bom, tornando-o capaz de recriar e restaurar a vida pregressa. Ou que se conseguisse “Purificar o subaê, mandar os malditos  embora”, como almejava o conterrâneo Caê Veloso, pela voz da mana Maria Bethânia. Mas eles foram mesmo embora? Não se impõe ainda como imperativo, imperioso, continuar a barrar a ventania soprada pelos medíocres e seus asseclas?

Daí que não se espantem se no pedaço de eternidade que lhe coube transmudar em set, o touro indomável, vestindo o Parangolé Pamplona de Hélio Oiticica, persevere na quimera, esbracejando, esbravejando o brado retumbante.

“É preciso uma revolução cultural no Cinema, a tomada do Cinema pelos intelectuais de vanguarda ligados às massas para transformar o Cinema numa poderosa máquina cultural e limpar o Cinema de toda essa cambada de comerciantes, picaretas, vigaristas, pseudoautores, pseudorealizadores. É necessário que o próprio conceito de autor cinematográfico seja revolucionado. O único eterno subversivo é o artista!”

Este é o GR que conhecemos, o GR armado, o GR amado, o GR amador, na senda de Buñuel. E mesmo que as massas referidas na proclamação sejam  «massas alimentícias», este é o Glauber que temos o direito e o dever de memorar. .

(Esta evocação afetiva e afetuosa da vida, obra e memória de Glauber Rocha foi dada a estampa no livro ‘Oito e demy’,de Danyel Guerra, edição do selo Aleph, Porto, 2015, pp. 59-66).

*Glossário

Despacho oferenda, ritual mágico e votivo, praticada nas religiões afro-brasileiras. O intuito é o de obter uma simpatia, a favor do ofertante, ou gerar uma antipatia, contra um seu desafeto. É este o caso do despacho que Firmino encomenda, visando atingir Aruã, seu rival, em Barravento (1962), a primeira longa-metragem de Rocha.

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Danyel Guerra nasceu na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, Brasil,  num novembrino dia de Vênus, sob o signo de Escorpião. No ano em que Lygia Fagundes Telles publicava ‘Ciranda de Pedra’, seu romance inaugural.
Editou e/ou publicou os livros ‘Em Busca da Musa Clio’ (2004), ‘Amor Città Aperta’ (2008), ‘O Céu sobre Berlin’ (2009), ‘Excitações Klimtorianas’ (2012), ‘O Apojo das Ninfas’ (2014), ‘Oito e demy’ (2015), ‘O Português do Cinemoda’ (2015), ‘Os Homens da Minha Vida’ (2017) e ‘Corpo Estranho’ (2021).

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