MUNDOS DAQUI E D´ALÉM (II)– por Adelina Andrês

VIVER NESTE CHÃO ou NASCER NATURAL(MENTE) CRESCER

Na noite e à luz acesa do interior de um quarto. No chão num tapete ao lado das botas do pai que não estava de momento. A trabalhar lá fora e o trabalho de parir cá de dentro. Que iria demorar pensava a mãe pela experiência passada e penosa da outra vez. O irmão tio não estava que tinha fugido de medo. De medo e de susto daquelas coisas que não conhecia nem queria. De medo e de fuga. Não demorou não demorou e nasceu logo. Só a espanhola vizinha apareceu e já estava tudo acontecido: a criança, a mãe, as botas e o tapete. No tapete. Foi só a ajuda de chamar a parteira para cortar o último cordão umbilical.

Veio lá de longe longe para aqui tão perto tão cheia de matérias molhadas de sangue de líquidos tão matérias escorridas. Escorreu saiu a correr para as vidas de aqui. Tão perto tão perto tão de longe. Perto das botas do chão da Terra de um quarto. Para morar no chão e percorrer tanto chão de caminhar da vida devida que lhe coube acontecer e fazer. Anda. Anda. Limpa o sangue limpa as mágoas e limpa os caminhos. Teus dela e dos outros. Para todos caminharem melhor. Neste chão de todos os quartos, corredores e salas do Mundo. Vai!, respira, caminha e vai. Vai!

Cresceu cresceu na Rua da Conceção de onde veio e em outras ruas todas. Com cidades e aldeias umas de cada vez, e depois outras todas ao mesmo tempo. Com meninas e meninos uns grandes e outros pequenos de brincar. Bonecas casinhas um mano pela mão e muitos pavões que nunca conseguiu apanhar. Na Quinta da Conceição de correr e de brincar. Lindo pavão tolo a correr a pavonear. Grande leque de cauda a mostrar e desafiar. Mas nenhuma pena para dar.

Penas. Penas de leque de cauda de pavão a pavonear. Penas. Penas de lousa para escrever fazer contas de contar. Números letras de escola para ensaiar – ser grande e escrever e contar. Com livros na pasta de brincar.

Uma vontade um apego grande grande da escola para andar. Para aprender fazer contas redações outras coisas de verdade. Para ter professora e pasta sem ser de brincar. A mãe conseguiu a matrícula um ano antes e agora é que vai ser! Vai para a escola vai para a escola vai para a escola!!!

Escola. Escola para chatear. Chatear! Tantas horas sentada sentada ali quieta quieta sem poder conversar. A chatear. Ir embora dói a barriga não pode mais que não aguenta. Não aguenta!! Ir embora dali para se salvar. Embora! Embora! Sai e corre depressa depressa nem olha para trás. Que seca que gasto tanto tempo a gastar. Embora! Embora! Vai vai vai. Corre corre corre!!! Para longe dali! Longe longe muito longe!!!

Lá na mesma rua e num mundo outro, a Lurdes e a Zabel e o Toninho não vão à escola. Estão sempre pela rua e pela casa deles que é a rua. É um portão grande maior que eles e abre-se e é a rua. Tem portas portinhas de casas casinhas onde mora gente gentinha de poly pocket, uns de calças outras de sainha de cinto grosso com muitos buraquinhos de enfiar. Cabelos amarelos e cores de brilhos de encandear. Cinzeiros grandes grandes com fumos a abarrotar. Riem-se riem-se e estão sempre felizes e contentes vê a Laurinha. É o que vê a Laurinha.

Mas vai sempre escondida de gozo do crime que é não poder lá entrar. Porque a mãe não deixa proíbe não permite não quer não suporta, e diz que não porque “têm umas tigelas de café que sujam a roupa toda”. Mas o café-cevada-mistela da tigela a escorrer é tão bom, tudo tão bom que a mãe não sabe porque não quer saborear. Laurinha sabe e saboreia e vai lá outra vez. A Lurdes e a Zabel e o Toninho bebem sempre daquilo e é por isso que são tão felizes e contentes. As mulheres amarelas fumam fumam falam falam, e também bebem daquelas mistelas daquelas tigelas. Toda a gente viva poly pocket faz o mesmo, e Laurinha é uma daquelas bonequinhas.

Vai lá com o irmão Fredo e ele é quem tem a culpa toda. O irmão faz mais coisas do que Laurinha porque é maior. Anda sempre com gente gentinha poly pocket, e rouba lenha da doca dos barcos para a rua deles. À chuva é quando é melhor. Assim a lenha é mais pesada e o feito também é maior. Mas é preciso ter cuidado para não chegar a casa borrado sujo das borras do tal café. Para não revelar o crime hediondo de ter participado nos rituais de outros mundos da mesma rua.

A gente poly pocket, às vezes – em vezes marcadas e acordadas – junta-se às outras gentes da rua maior para todos confraternizarem em outros líquidos rituais: é a altura de cortar milhares de laranjas em quartos para lhes retirar a casca para a confeção do bolo-rei. O Joaquim pai poly pocket, que é todo o ano “Joaquim da Burra”, hoje é rei porque é o dono das laranjas todas que atapetam a rua e é ele que oferece as laranjas descascadas a quem as descascar. Ele é o rei é o rei é o Rei! Tem um olhar condescendente com as descascantes todas porque é o Rei! Perdoa as rejeições e os desconfortos e os insultos calados daquele ano; e olha de cima, com longínquo desdém, o sumo derramado e peganhento das laranjas que, aos poucos, se vai colando às mãos e aos corpos e às roupas daquelas mulheres a amarelecer de sumo seco. Como as suas amarelas mulheres poly pocket. Mas não se demora nestas cogitações: o que realmente lhe interessa são as cascas das laranjas…

A Lurdes e a Zabel e o Toninho andam sempre despenteados descalços com roupas esfarrapadas e sujas; os outros meninos da rua Laurinha, Fredo, Tita, Belita e Nené andam limpinhos penteados e calçados, e andam na escola. Brincam todos juntos alegres e livres cá na rua quando não os obrigam a fechar-se quietos calados e parados lá na escola.

OUTRA VEZ A OBRIGAR A ESTAR A VIGIAR

Outra vez de vigilância de outra coisa de outro exame qualquer agora de inglês. Não sei que diga ou que escreva soletre devagar. Devagar. O tempo passa devagar muito. Muito devagar o tempo a passar pouco. Que seca que sono.

Escrevo devagar à espera do tempo passar. Este tempo é de esperar passar lento pouco demorado chato quieto. Estou quieta todo o meu corpo. Até a caneta não escreve como deve ser. Caneta gasta desperdiçou azul na data.

Passa, passa, tempo!… Tempo lento a teimar entorpecer a gastar tinta que quase não tem! Tempo, não tenho tinta. Anda, anda, passa! Passa. E passeia assim sempre por aqui neste silêncio de folhas a abrir de dicionário inglês-inglês.

A repetição das coisas: passa passa, tempo tempo, inglês inglês!

A fazerem exame e a não quererem que o tempo passe. E eu a querer, a querer. Eles são onze, e eu sou uma. Vou contar até onze. Já não conto que é muito chato…

Um, dois, três, trinta e nove, vinte e sete. Onze não cheguei lá. Não me apetece.

É mais ou menos violento estar aqui. Lento, lento, lento.

Uma já vai que tirou os óculos. Dicionário devagar para a pasta. Foi-se embora agora mesmo.

Ó tempo, que passas lento!… Uma paz sossegada de ir embora. Agora, daqui!

Sala funda clara verde calada. De ruídos baixos de folhas a virar! Gente a pensar outra vez. E a teclar também! A caneta é chata e faz ruidinhos de enervar. Tenho que usar outra. De silêncio. Silêncio. Silêncio… De palavra esdrúxula que não se diz. Só se pensa silêncio.

Não tenho relógio para medir. O tempo passa lento. Passa paaassa!… Quando acabar o tempo… Quando será, se não sei que horas são?!

– “Uma folha!” Com os dedinhos no ar! E logo outra:

– “Outra de rascunho…!”

  • “Uma ou duas?!!”

Passos grandes conseguidos, pisados no chão ritmados a atravessar a sala a todo o comprimento quase! De soslaio e à vinda são onze e um quarto – ou menos um quarto?!! – Tanta hora p’ra passar e eu a vigiar…

Uma caneta deve ser brasileira amarela e verde. Não sei se a dona é porque está calada. Só fala para o papel de escrever. Deve ser azul de escrever a caneta brasileira e está mas é a disfarçar. Está a disfarçar mas não me engana – eu escrevi logo azul porque vi logo tudo. A rapariga calada agora tapou a boca com dois dedos da mão. Abertos em ângulo agudo, e deixou a boca ao meio. Calada de todo. Agora tapou os olhos e já destapou outra vez.

Começam a cair as folhas. São I, II, III, IV, V grupos de respostas perguntas dos exames alunos e daqui a bocado vou-me embora VIVA VIVA VIVA!!

Afinal são onze e meia! São onze e meia onze e meia onze e meia ai que bom!

Que mau p’ra eles coitados que estão apressados. A fazer mais – “Mais uma folha…” – que é p’ra ver se conseguem acabar. Acabar. A meta ai coitados p’ra chegar ao fim!

COSTURANDO UNIFORMES

Como nos tempos idos
afinal ficados
parados
estados novos
Sempre velhos não antigos
Daqueles dos velhos
da velharia velha guarda velhaca
chamados novos
p’ra vendar p’ra enganar
Como naqueles livrinhos lá da escola
velha
de meninos
homens pequeninos – porque falta crescer para minguar
para formar deformar ficar acabar
Uniformes
Só para marchar
E de meninas também
Mulheres pequeninas – porque falta crescer para minguar
para formar deformar ficar acabar
Uniformes
de saiinhas de parecer querer a esvoaçar
Esvoaça cai tenta outra vez
Esvoaça cai tenta de novo
Esvoaça cai tenta de velho
Não esvoaça não tenta mais já não pode
já não quer
Não voa
Só vai
Vai só
Vão sós
Juntas uniformes
Sempre a marchar
Para uma frente – que não é o caminho
Marcham com os homens pequeninos
Ao lado deles mas um nadinha atrás
A (a)parecer tontinhas
Lá na capa do livro de mostrar a convencer a enfeitar
desse livrinho da escola velha sobretudo
Sob a capa
sobtudo
subtudo
afinal tudo aquilo ensinar
Com sorrisos rasgados
Na cara carne rasgada quase toda
Remendada
A mente operada
rasgada
E paciente mente
aturada mente
aterradora mente
Verdadeiramente cosida costurada chuleada
Com agulhas finas
de enfiar de espetar para costurar
E botões e casas de linhas
que são portinhas
para o botão sair e entrar
Mas aqui só para fechar. A ferida.
Para remendar esconder e ficar
acabar
A penas
Uniforme.

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Adelina Maria Granado Andrês nasceu no norte do país e aí vive,  em vizinhança próxima com o mar de Gaia e pelo interior transmontano. É docente do ISCAP-P.Porto. Os seus interesses focam-se no pensamento e na obra de Agostinho da Silva e para além do ensaio, dedica-se a outros tipos de escrita, sendo autora de livros infantojuvenis, poesia e prosa poética.