UM NADA SEM PRANTO – Januário Esteves

 

Um nada sem pranto
Alento ou vaga de ar
Trémulo de encanto
Só por si me faz o mar
Sozinho no espaço
Me quebro em cautério
Dando-me, enlaço
Nenhum mistério
Por isso sou possuído
Dum canto esvaído
A um outro mar
Impossível de navegar

♣♣♣

Pus os olhos na vida e chorei
Aos ventos a minha miséria
O que fui, o que sou, o que serei
Não é coisa muito séria
Quedo mudo e triste
Atravesso os níveis sociais
Ao que me toca, avanço em riste
Deploro sentimentos triviais
Tarde chego aos finalmente
Ardem-me os olhos de tédio
Preguiça muita abissalmente
Me toma de assédio
Íntimas por fim vasculho
Dolorosas e revistas renúncias
Em luz firo o meu orgulho
Na boca o amargo das pronúncias
Do entendimento sem razão
É como torcido me avenho
Dar nome ao coração
Imolar a raiz do lenho

♣♣♣

Argivar

Paisagem arranjada de testemunhos, ermos e fundos ribeiros
Interactiva a neurose psicossomática do stress
As árvores de folha caduca, depenam inutilidades
E a terra colhe numa sopa alquimica toda a fervura
Dos sentimentos apenas humanos, que se colam
Às ramificações do sentir perene
Cava fundo a delapidação das águas
Nos delicados leitos do eu
Confinam margens para o ser
Imperecível
Ali sobre os outros seres,
Ali com os outros
Olhando-se
Mirando-se
Perscrutando
Em homília silenciosa
Em compassada sedução
O inenarrável
Acontecer das coisas.

♣♣♣

Eis o sentimento que se aflora
Como miragem no deserto
A buscar a felicidade na hora
Por entre arremessos de desacerto
Busca na dor o consolo
De humano sua condição
Age o Destino com dolo
De se Ter um coração
Mas por detrás disto tudo
Congemina Dioniso as tropelias
Do ser em Vésperas de Entrudo
Discorrem nulas as filosofias.

♣♣♣

Horologium

Por muitas horas contadas percorremos o horizonte
equidistante da estrela anã vermelha de Gliese
e cartografamos as orbitas dos seus exoplanetas
na maré gravitacional que nos empurra para o eixo
de uma tempestade que acaba de deflagrar no Céu
de Gliese d, o planeta azul que orbita treze dias
e pousamos suavemente numa cratera rochosa
sobranceira a um mar esponjoso e vermelho
que refletia como um espelho convexo as formas
igneas das montanhas que se perfilam ao redor
na atmosfera nebulosa de cor alaranjada vimos
um crepúsculo que se torna roxo quando chega a noite
e pernoitamos numa vigília de sonho extasiados
comunicando à Terra que está tudo bem, nós e as
máquinas e amanhã vamos explorar outras latitudes
sobretudo os leitos gelados de cristais que brilham ao longe.

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Januário Esteves usa o pseudónimo “Januanto”. Nasceu em Coruche, Portugal (1960).  Escreve poesia desde os 16 anos. Em 1987 publicou no Jornal de Letras e participou ao longo dos anos em algumas publicações colectivas. Publicou na revista brasileira Musa Rara, na revista americana EIGHTEENSEVENTY .POETRY.BLOG., na Revista Brasileira LiteraLivre, na revista romena Poesis, na revista australiana Otoliths, na revista americana BlazeVox, na revista americana Harbinger Asylum, na revista americana Ducor Review, na revista indiana Taj Mahal.