POEMAS DE ISI DE PAULA

alóctone

tenho memórias que molham
as plantas que crescem
enquanto observo o tempo
de suas raízes

tenho novos amigos
que me são morada
tenho novos amores
que são meus países

não sou daqui
desse chão

mas nele enterro os meus pés

♣♣♣

rascunhos para um romance

o cenário é essa cidade
anti-utópica pós-europeia
triste ainda que trópico
e ainda
que construção também já ruína

o cenário é essa cidade
sobre a qual paira sempre
uma camada fina de suor e saudade

somos duas protagonistas
que esqueceram as réplicas
atravessando as pontes
entre os continentes

nesse capítulo que não é feliz
mas também não é final

♣♣♣

filtro com nome de cidade

resgato
de dentro
da nuvem
milhares
de nuvens

cópias de risos sem som
inéditos como cada céu
sob os quais beijamos um verão
que os últimos raios de sol
dissolvem

♣♣♣

abro mais um vinho e ofereço
uma taça aos fantasmas do passado

ainda há palavras presas no gatilho
e o passado é um poço
onde cada gota de agora vai pingando

a isso brindamos
e escrevemos juntos
um poema auto-psicografado

♣♣♣

uma borboleta bate as asas na ibéria
e provoca assim esse teu sim de última hora

por isso nos encontramos
na esquina do acaso

viver é isso:
nunca poder prever
qual será o movimento
que ativará o mecanismo
da máquina do destino

♣♣♣

pausa para um café

a toalha de mesa repleta
de grãos de lágrimas
é com estrelas que adoço
o céu da boca

é carne viva a memória
que o açúcar estanca

duas colherinhas
decantam o verso e a nossa
versão dos fatos

escrever um poema
à dissolução
na palma da mão da mãe
prever o passado

linhas moldadas no massap
todo açúcar vem do mesmo barro

e toda terra vem do mesmo céu
onde agora ainda brilham estrelas
que já se apagaram

♦♦♦

Isi de Paula (Recife/Brasil), jornalista e doutoranda em Literatura comparada pela Universidade de Lund.