Aproximamo-nos da come- moração da passagem dos cinquenta anos da Revolução dos Cravos. Volvido meio século sobre o fim do regime autoritário do Estado Novo, por todo o mundo vem aumentando o temor, mais ou menos justificado, de que forças antidemocráticas possam regressar ao poder.
Paralelamente a este fenómeno, vai emergindo um outro, assente num certo fanatismo ideológico referente à defesa da liberdade. Para uma certa corrente ideológica – transversal a praticamente todo o mundo Ocidental –, na correlação de forças que forçosamente deve nortear as prioridades das nossas sociedades, com efeito, a liberdade passou a assumir uma importância desproporcionada. Este amor quase patológico pela liberdade que, como em qualquer amor patológico, tudo à volta acaba secando, de facto, muitas vezes, confunde-se com uma visão egoísta da sociedade.
A liberdade é um valor fundamental. Quanto a isso não há qualquer dúvida. Contudo, o que muitos acabam repudiando é que, de mãos dadas a esse, outros têm de seguir caminhando. Refiro-me a valores importantíssimos como a segurança ou a solidariedade. Um exemplo paradigmático do que acabo de expor pôde ser encontrado na recente pandemia mundial. Muitos dos defensores de uma liberdade a qualquer custo insurgiram-se contra as medidas, decretadas pelos governos um pouco por todo o mundo, de privação da mesma. Essas medidas foram absolutamente necessárias para se evitar o colapso dos hospitais e a morte dos mais vulneráveis.
Esta defesa da liberdade a qualquer custo, que se manifesta também num anseio por uma economia desregulada e onde, novamente, os mais frágeis são os mais sacrificados, consubstancia-se em egoísmo. Não será um acaso que o lema da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade, Fraternidade –, movimento que criou as bases das sociedades e dos Estados modernos, coloque a liberdade como um dos três pilares da referida Revolução e não como um pilar único.
Também os cada vez mais prementes desafios ambientais vêm colocar em evidência a necessidade de se sacrificarem algumas liberdades individuais. Em nome da preservação de um meio-ambiente harmónico e capaz de garantir vida saudável para as nossas sociedades presentes e futuras, o arco das nossas liberdades individuais pode e deve ser reduzido. A título de exemplo, refira-se que certos movimentos de defesa ambiental defendem, e a meu ver bem, a proibição de jatos particulares. É, com efeito, ultrajante que, num voo de algumas horas, um milionário possa emitir uma quantidade de CO2 equivalente à que um cidadão normal produz ao longo de várias semanas ou meses. Vou inclusivamente mais longe e, como certos governos europeus já equacionam, defendo também que os voos comerciais de curta duração e com comprovada alternativa ferroviária devam ser banidos. De igual modo aplaudo medidas como as adotadas por algumas cidades europeias, como é o caso de Lisboa, para se proibir a circulação dos carros mais antigos e poluentes.
Não se julgue, contudo, que apenas aprovo medidas restritivas das liberdades individuais, como as que acabei de referir. Pelo contrário, defendo que a liberdade deve ser o mais possível salvaguardada e não ignoro, deste modo, a importância dos sistemas de incentivos para o alcançar da proteção ambiental. A condução das políticas públicas, como se do pedal de acelerador e de travão de um automóvel se tratassem, com efeito, é realizável de duas grandes formas: as proibições e os incentivos. Existe, contudo, uma importante diferença entre estes dois mecanismos de que, por certo, o prezado leitor já se terá dado conta: se, no concernente às proibições, a liberdade fica comprometida, nos incentivos, não.
Acredito, assim, que, não caindo na utopia de se julgar que o Estado nunca deve exercer o seu poder coercivo, este deve, tanto quanto possível, se abster de proibir, tentando moldar os comportamentos individuais através de um forte e eficaz sistema de incentivos. E muita coisa poderia já ter sido realizada neste campo. É, por exemplo, muito difícil de se entender como é possível que, num mundo a aquecer e que necessita de rapidamente substituir os automóveis a combustão pelos elétricos, os diferentes governos não tenham já isentado estes últimos da totalidade de impostos, taxas, portagens, pagamento de estacionamento, etc. A perda de receita fiscal poderia, inclusivamente, ser compensada pelo aumento dos impostos dos veículos a combustão. Quanto à inevitável contestação, deve dizer-se que governar a pensar na popularidade sempre foi o caminho mais rápido para se governar mal.
Um outro exemplo que a este respeito pode ser dado passa pelos incentivos à reciclagem. Em artigos passados, escritos para esta prestigiada Revista Athena, tive já a oportunidade de me referir à importância da reciclagem por ser esta a forma de se colocar de pé uma economia circular, isto é, uma economia com menos desperdício, menos poluição, menos consumo de matérias-primas virgens e menos emissões de gases causadores do aquecimento global. Acrescento, agora, a necessidade, que cada vez me parece mais premente, de os governos virem a criar incentivos económicos a essa prática. Podemos pensar em centros de recolha que comprassem, aos cidadãos, papel, plástico, vidro, eletrodomésticos, etc. usados, para posterior reciclagem.
Esta medida, com toda a certeza, faria aumentar a prática da separação dos resíduos mas, se a mesma não se mostrasse suficiente, então aí o Estado deveria avançar para outras políticas mais coercivas e punir quem não separasse os seus resíduos. Acredito, assim, que partilhando o mesmo planeta, o mesmo meio-ambiente, todos temos responsabilidades repartidas e uma liberdade absoluta terá forçosamente de ser algo utópico.
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Ricardo Amorim Pereira, Doutorando em Ciência Política, com interesse na área da ecologia política.
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