A LIBERDADE ARMADILHADA – por Manuel Igreja Cardoso

Num primeiro modo de pensar e de dizer, será certo que onde existe liberdade não pode haver armadilhas. Sendo a liberdade somente concreta quando não existem impedimentos ao seu germinar, as armadilhas são por natureza própria algo que prende e que impede.

No entanto, neste nosso tempo de ilusão, os condicionamentos existem cada vez mais, nas mais diversas formas e em todas as latitudes. Vivemos sem nos sentirmos acorrentados, não sabemos, mas tecem-nos a todo o memento as grilhetas mentais invisíveis que nos vão formatando.

Porque pouco ou nada sabemos delas e sobre elas, não as sentimos. São elásticas e quase impercetíveis. Fazem teia sub-reptícia tecida por ratos mestres na construção de ratoeiras. Sabem urdi-las, sabem espalhá-las e escondê-las. Sabem vender-nos a ilusão da sua inexistência. Nas que necessariamente são visíveis, sabem provar-nos a sua necessidade, a sua premência.

A maior e mais eficiente armadilha montada à liberdade e consequentemente à democracia, é a falta de memória e de saber sobre o acontecido. Construiu-se um quotidiano que leva os mais novos a pensar que tudo foi sempre assim, que nunca existiram outras formas de vida com cidadania feita.

Não sabem nem sonham, que em tempos não muito recuados, mesmo quando eram acabados de nascer, havia gente que era presa e torturada por pensar diferente, por querer um mundo mais justo e por exigir o direto de escolher. O direto de votar e de ser votado. De escolher e de ser escolhido.

A democracia e a liberdade pressupõem que se não corte a raiz do pensamento, que se tolere, que se exagere aqui e ali, nisto ou naquilo. Que se valorize a diferença, que se aplauda quem vença e se respeite os que são derrotados. Que se aprenda e se ensine que o mundo é de todos e para todos. Que existem direitos e deveres, que deve haver horas de ócios e de lazeres.

Parece fácil. Parece mesmo que é o que sentimos, o que fazemos e o que permitimos no meio em que vivemos, uma nesga, um pequeno canto do planeta que nos coube em sorte e que herdamos para legar aos nossos filho e netos, numa herança que vem de tempos imemoriais.

O que nós andamos para aqui chegar. Mas chegamos. Muita gente guerreou, sofreu, odiou e amou, mas viemos dar a este ponto do caminho que em cada curva foi melhorando graças à obra feita. Até agora e desde há três ou quatro décadas, a ilusão dizia-nos que estávamos perto da perfeição.

No entanto mesmo podendo quase estar, não estávamos. Pelo contrário, infeliz e insanamente, afastamo-nos. Com o saber conseguido, aumentaram-se os desequilíbrios, espalhou-se a ignorância, fomentou-se a ganância, cimentou-se o medo, fechou-se o cofre dos segredos.

 Os ventos foram incumbidos de espalhar os novos formatos de pensar e de ver as causas das coisas e mais os desejos mais imediatamente sentidos como algo a alcançar, nem que seja sem olhar como e quando, desde que seja agora. O já e o para mim, são as bases dos novos tronos. A coroa régia em cada cabeça com sua inquestionável sentença, dita o tempo e o modo.

O resto não conta. Esvaziou-se a essência da democracia levando a que comece a ser tida como não imprescindível. Pode não parecer, mas acontece, está a acontecer. Os ditadores com novo cariz estão quase a ganhar. Fingem que não o são, iludem, apontam o que dizem ser os inimigos e garantem ter as soluções. Vivem com medo de perder, não são felizes, são paranoicos, mas estão a instalar novas formas de vida.

A prometida estabilidade ansiada, está a armadilhar a democracia. A liberdade que é uma maluca que gosta de beijos, como diz a canção, está a ser menosprezada. Vão escasseando os momentos dos afagos e vão sobrando os encargos. Esquecemo-nos que cada um de nós é sempre o outro. Não nos lembramos que todos somos estrangeiros em algum lugar.

O império pode ruir, porque a democracia foi ferida nas armadilhas que lhe estenderam e que todos permitimos serem eficientes.  Ainda estamos a tempo de as tornar ineficazes.  Digo eu. Não sei. Seremos capazes?

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Manuel Igreja Cardoso, nasceu em 1960 no concelho de Armamar e reside na cidade do Peso da Régua no Alto Douro Vinhateiro.  Licenciado em História, a par da sua atividade profissional da EDP – Energia de Portugal, desenvolveu nos últimos 25 anos uma profícua atividade na escrita de contos, artigos de opinião e de crónicas que tem vindo a publicar em diversos jornais regionais. Tem publicado um livro de contos, um com a história da Associação Humanitária dos Bombeiros do Peso da Régua, e outro com história da ACIR – Associação Comercial.