A POESIA – de Maria Joanna Santos

O VESTIDO BRANCO

Noite passada, eu sonhei com a pureza em forma de vestimenta. Acordei e lá estava, o vestido branco que embevecia quem o visse. O vestido ao qual refiro-me é curto mas modesto, ele espraia candura sobre a curva carnal dos meu ombros, santifica o ser que se sacrifica, e sob a luz do sol de estio lembra o tule de um dossel. O vesti e pela primeira vez pude sentir o gosto adocicado da cor branca, a cor que deliquesce e se esparge languidamente sobre o meu corpo como o leite derramado em um chá servido em uma xícara de porcelana. O vestido é branco como a neve, adornado com fitas de cetim e possui uma anágua de renda que cobre a pele como uma mortalha. Saí do exílio em meu quarto —, a minha fortaleza com aroma de lavanda, o aposento onde durmo plácida em leito celeste e sou assombrada pelo meu próprio reflexo no espelho d’água, e fui de encontro à floresta enveredar o caminho de terra que levou-me às criaturas que vivem ali. Simultaneamente encantada e intimidada pela beleza feérica do lugar, fui impelida diretamente para uma nova espécie de exílio. As flores brotavam timoratas e os pássaros chilreavam baixo quando eu passava. De repente, olhei para baixo e notei que o vestido outrora imaculado estava eivado de sangue como as palavras sagradas de uma litania escrita em papel ebúrneo que fora manchado de vinho sacramental. Fui ingênua ao pensar que a pureza de um vestido branco se sobressairia sobre as nódoas da alma. Mas o ato de velar-me em branco fazia com que eu me sentisse capaz de derrotar a minha própria corruptibilidade ao invés de ser derrotada por ela. Antes mesmo de tê-lo, eu pensava em maneiras de preservar a alvura do vestido. Ele seria mantido no fundo de um baú, mas nunca ficaria empoado. O vestido ao qual refiro-me é branco como as penas de um cisne, uma pérola, um calcário ou um canteiro de lírios. Assim que o visto, ele suscita em mim o sentimento de afundar em um lago de pétalas de camélias brancas.À tarde, acometida por um doce quebranto que inflige em mim vagareza como a de uma langorosa princesa em um conto de fadas, deitei-me sobre a relva embebida pelo orvalho; o meu corpo estava sendo o tronco pesado de um carvalho e a relva o musgo que o envolve em um amplexo. Ao fechar os olhos, senti o vestido branco dissolver pressuroso sobre a grama verde. Dormi e sonhei com pureza. Pureza é violência? Pensei incauta. Sim, pureza é uma das formas mais sacras de violência. Sentia-a agudizar-se ácida sobre a minha língua como se tivesse mordido o pedúnculo de uma tulipa. A cor branca possui um gosto adocicado mas a pureza que provém dela é ácida. Os dias, as semanas e os meses passaram e o meu corpo permaneceu ali, incólume como uma rosa aureolada por uma sebe intransponível.

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MENINA, DEVORANDO

No estágio embrionário, o ser assume a forma d’um canino
Pronto para lacerar os membros carnosos de um ser vivo:
As infinitas artérias, o sangue morno que corre livoroso
Nos filetes de seda e renda que formam o plexo ferino

Pois com a língua nua e virgem ornada por pérolas dormidas
No cerne de uma ostra imaculável, límpida e transluzente,
O amor dá-lhe à boca tímida um gosto levemente pungente
Se ele prova do ouropel pensando-o fruto do toque de Midas

De longe avista-se a incauta menina roubando flores
Para aformosear os longos e sedosos cabelos das sereias,
Mas cada vez que impiedosamente arranca dos Campos Elísios
O pedicelo dos amarantos, Ártemis inflige-lhe as dores

E o fardo de ser mais do que uma simples menina, devorando
O véu nacarado que possui um aroma inebriante e adocicado
Ela percebeu que mesmo depois de despertar de seu sono,
Continua a sonhar com navalhas aceradas transpassando

O tecido da pele em uma corrente intramuscular de dor —
Doce caudal de tormento que percorre lúcido o imo como a
Lua refletida na água que aflui às lôbregas ourelas d’uma floresta;
Em uma sépala, o corpo de uma fada descansa em orvalho e langor

Ela banhar-se-á na limpidez quando for d’encontro ao revérbero
Presente no bosque confim ao lago, mas antes ela terá de cruzar
Os dias, as noites, os meses e os anos, para que no final do caminho
A sua fraqueza tenha se dissolvido e ela possa matar o tricéfalo Cérbero

O monstro finalmente morreu, mas de sua calcinada ossada
Nasceu um ser que era vigilante de si mesmo, um voyeur
Do seu próprio, e particularmente impuro, sofrimento:
O monstro finalmente morreu, mas a sua ira foi herdada.

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ME IMAGINE
à Hilda Hilst

Me imagine vociferar em meio à erva,
Me imagine fabular sobre as sílfides,
Me imagine menina pura e límpida,
Porque me imagino besta que devora

Me imagine transmutada em uma cerva,
Me imagine criatura mística: menina-quimera
Imagine o meu rosto imbuir-se à claridade lívida;
Me imagine floco de neve consumido pela frágua

Me imagine colher flores com as dríades,
Me imagine rodopiar em espirais de diafaneidade,
Imagine lábios translucidamente rosados pelo sumo d’amora;
Me imagine à beira do lago recitando belos sonetos à água —

Me imagine menina-poeta, criatura inquieta, lírio-no-espelho.

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Maria Joanna (Maria Joanna da Rosa dos Santos) é graduanda do curso de Psicologia e reside na cidade de Santa Maria, no estado do Rio Grande do Sul. Escreve contos e poemas desde os seus seis anos de idade, quando aprendera a ler e a escrever. A sua escrita aborda o misticismo acerca da infância, que se revela ubíquo na vida de toda menina nefelibata, assim como a dicotomia da passagem de menina para mulher — o delicado e o selvagem; o efêmero e o raro. Inspirada por Sylvia Plath, Clarice Lispector, Hilda Hilst e Virginia Woolf, a perspectiva feminina impera sobre a sua escrita.

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