UMA NUANCE NAS NÓDOAS II – por Lucio Valium

Le temps menaçant by R. Magritte

  BLUES

Blues na cozinha. O som entrava pela garganta das botelhas amontoadas. Depois saí da hospedaria para vadiar. Fiquei algum tempo recostado na avenida central. A sala de visitas dos meninos de botão de punho. Gestores de sítios terrestres. Passei na estação. Havia gajos a tocar. Subi ruas estreitas de tascos e putas batidas. Sem rumo. A mente não escrevia. Indiferente, de olhos no chão, ia por vielas sujas lentamente. Ninguém interrompeu esse corpo invisível. Estava fora do ritmo. Temporal cardíaco. Um dia andou por aí um desterrado que caminhava. De regresso a esta mesa escrevi pequenos textos com palavras de outros. Um gozo o roubo de materiais sem proprietário. Nada de novo. Entretanto o mundo segue infetado de sangue e medicado com espetáculo. Infantil, mercantile, infame. Nas redondezas arrancam-se casas como dentes. Instalam-se implantes do negócio devorador. O confronto contínuo, sanguinário. Parcelas de chão para encher os cofres e despojar humanos. Vejo cada vez menos pessoas. Muitos foram-se embora. Vivemos o jogo da vida. Escolher o lugar onde deitar os ombros é escrever um tempo.

“Le Manteau de Pascal” by R. Magritte

ESCRITOS

Entrar no cérebro da escrita é semelhante a desaparecer. Caminhar no seu íntimo, como olhar fixamente os olhos de um gato. Uma distância entre estrelas. Ela faz-se alguém. Devora a carne como duas ausências que dançam em silêncio, paradas. Depois aparece lentamente em ruínas abandonadas, descampados. Pode armar-se um utensílio escrito para vigiar os dias e fruí-los até à demência. Palavras como afronta à imundice. Palavras para fazer. Escrever amar a neve e o rugido marítimo, as noturnas fúrias e cada segundo da chuva não é dizer muito. As palavras veem mais. Sabem. Há nelas um violento sangrar. De manhã com certa malvadez saí da instituição e fui caminhando até aos arrabaldes. Um pouco alucinado entrei numa mercearia e trouxe nabos. Andava a resvalar. Evidenciava um impercetível comportamento desviante. Tinha múltiplas alergias.

SOMBRAS

Por estes tempos ando nas sombras e fico quieto debaixo das arcadas. Não consumo. Evito ouvir. Recuso o que querem mostrar. Pretendo que não me sujem mais a mente. Odeio os objetos e as palavras em voga. Os esquemas e a eloquente falinha mansa dos fantásticos, tão doces e tão convincentes. Em silêncio procuro de novo lugares vazios. Na instituição há pessoas a sofrer e outras nunca chegaram a crescer. Muitas desconhecem o uso cerebral. Tudo normal. Ser especial é proibido. Quase todos se anulam e ostentam o feito com vaidade. Têm sempre a razão. São donos. Não posso fazer nada. Então invento breves encenações. Ando por ali com frases e riso. Lógicas fugazes, indóceis e pouco apreciadas. Fórmulas sonoras, mas nada se alcança. Não há surpresa ou bondade. Aqui alastram linguagens incomunicantes e repetições incessantes do banal. Vou passar no escritório e ler o que deixas na noite. Depois ver a lua e seus bailados. É uma lua amarela algodão de chumbo. À sua volta um cosmos de azuis que giram no tempo como os olhos. A cama é também uma janela e as mantas voam na noite como pássaros raros ou algas que dançam nas águas dementes. Encantadoras de barcos que levam braços rijos e olhares esgazeados.

LAMA

A instituição é a negação da existência. Quer dizer a distorção do ser livre. Uma distopia estúpida como as unhas envernizadas de um tirano imberbe. Não sei como poderei sair daqui com vida. Vou descobrir. Vou saber. Ainda me lembro do que me trouxe cá. Uma noite endiabrada, um ser desvairado, um lugar de ninguém, fizeram brilhar o veneno que já floria nas sarjetas da minha mente. Dois meses após essa noite cheguei. Agora precisava de fármacos e sons. Palavras, música e ampolas alienantes. Morfina e voz. É sabido que se fica mais doente a conviver com seres em coma. As suas vozes matam. Os seus gestos entediam e violentam o arquivário. Passarei a refugiar-me no escritório com a doce memória do teu cheiro. Sentir nos lábios a linha macia da tua pele e deixar que semânticas ébrias me apertem os ossos.

Golconda by R. Magritte

LEVITAR

Deixei ir o corpo na cidade. A mente escrevia. Andei pelas ruas como num palco. Sem papel. Eu andava por ali e havia seres com as suas histórias. Queria escrever histórias de lugares e pessoas. De gente que se liberta dos ferros. A minha cabeça ardia. Em escrita viva. O corpo ia fluindo. Corpo e cidade, o jogo. Só, em escrita sem tempo e esquecido, o corpo entrava num enigma livre. Vadiava como se lesse música. A cidade na mente e o corpo nas suas ruelas. Palavras voavam sem tempo nas veias mentais. O tempo, o maior vadio. O tempo, um lugar onde ir. Alguma música nos escritos invisíveis, íntimos como o olhar. Eu continuava até chegar a noite e imaginava a cidade esventrada, saqueada, convertida, falseada. Para lá do meu fim que eu sonhava longe dali. Ou não sonhava. Não sonhava.

PEDRA

Acordei com peso nos olhos. Apetecia-me ver filmes que levassem os olhos pelo ar. Filmes de teorema desviante que põem fim aos círculos repetitivos. Como um banho frio em noite de trovoada onde houvesse demência de planos. E a lógica desse lugar a um rio agreste com declives e escarpas. À quietude de lagartos avizinhando-se um vendaval. A inversão nos corpos programados, uma poesia física. Carne libertária nos bosques e embriaguez de animais humanos. Como flores heréticas, saciando-se.

ESTRAVIO

Farto de palavras e de mim fui para o deserto. Por lá fiquei horas e horas a ver aquários sem peixes. Entretanto alguém ligou um rádio. Veio uma chuva de algoritmos e adoeci. O médico disse angústia e descoordenação motora. Passei a não sair do quarto. Tornei-me um pouco sedentário. E resolvi dedicar-me ao piano. Mas afundava-me ignorando as alturas. Eu não adquirira os requisites, nem arriscara as profundezas. Ultrapassado por vezes tinha tonturas e perdi o apetite. Também os ouvidos estavam divididos. Comecei a viciar-me em nevoeiro. Só abria a janela para o céu. Gostava do seu cheiro. Havia uma lentidão, mas os sonhos tornaram-se opressores e tive de soltar amarras. Também me incompatibilizei com uma antena. Ela tinha ideias fixas, o que me deixa com arritmias. E parti de novo. No dia seguinte tive uma conversa simples com um casal mexicano muito crente em certa divindade. Dei a minha visão. Cega. Eu não via nada. Depois arrependi-me da sinceridade. Há seres que não admitem o olhar do outro. Uma cena que me feriu. Detetar pessoas espirituais é essencial. Catorze horas de voo para me reenviarem para o quarto com febre. Acordei a meio da noite e tinha os olhos colados. Tive que lhes passar uma faca. Assim percebi que dormias. Beijei-te as costas e as gaivotas calaram-se.

ESPECIARIAS

Passei no escritório e havia cinzeiros cheios de velas melancólicas. Escrevi durante algum tempo sem grandes feitos para relatar. O mais que fiz na vida foi beber e vadiar. Noutros tempos bebia e vadiava muito. Hoje bebo vinho noturno e a mente vadia como um punhal cravado no embuste. Qualquer corpo está sujeito às artes da carpintaria. Um médico gordo disse-me há uns anos “tem dentro de si pequenos caules que libertam vidro negro. Deve evitar álcoois carnes e diversificar legumes. Faça pratos de couve rosa com especiarias”. Em certas manhãs lembro-me dele especialmente quando leio policiais. Não devo procurar a causa, como muitas outras. Na instituição disseram-me para desprogramar alguns dias. Irei escrever e observar telhados. E tu devias passar às tintas. Sei que andas com os olhos cansados. Vi pomada em cima da caixa, mas eles pedem-te cores. Como a noite que deseja as tuas linhas. Também algo secreto em mim anseia pelo que farás. Pelo que sairá do bailado noturno das tuas mãos. Na hospedaria vou acumulando livros. E folhas que uma bibliotecária quase cega me tem ajudado a encontrar. Foi-se o homem das magias e eu sou uma aranha em busca de gotas de mescal.

O finlandês que encontrámos ao jantar tinha as barbas da seriedade e o vermelho de pele da perdição. Um odor repelente. Mas cheirar mal é vomitar na farsa. Por onde terá andado. Como resolveu vir viver aqui. Pergunto. Foi uma conversa muito bela com um ser enigmático muito único. Um homem para quem as palavras ainda são importantes. Que as usa como uma arte, uma espécie de música que se faz com um desconhecido. Voltando à instituição devo relacionar melhor ação e medicação para compor tempo e injetá-lo no desvario mental. Também é importante afastar mentes imundas, servas do óbvio. O belo é estar perto de ti. Vou pedir no laboratório remédios para uma viagem. Desejo uma cerveja pela manhã e ver-te deitada nas areias.

♦♦♦

Lúcio Valium – Um ser em desvio, sem lugar! Um homem vivo, em desordem! Um forasteiro que nos caminhos encontrou palavras e perdeu moradas!

Please follow and like us: