A CONFUSÃO DELIBERADA COMO ESTRATÉGIA POLÍTICA – por Francisco Fuchs

 

Lula (a usar óculos de realidade virtual) e Chacrinha.

“Eu vim para confundir e não para explicar.” Esta frase, bordão de um dos mais célebres comunicadores da televisão brasileira no século XX (Abelardo Barbosa, o Chacrinha), desagradava-me profundamente quando eu tinha vinte e poucos anos. É compreensível, já que ela era a antítese de tudo que me era mais caro: pois eu, aspirante a filósofo, viera ao mundo para entender, e não há como entender sem desdobrar, desenvolver, desenrolar, ou seja, explicar.[1] A confusão era e continua sendo meu (seu, nosso) ponto de partida, mas nunca deixei de acreditar que ela pode ser, ainda que com muito esforço, reduzida; o que não significa negar ou apequenar a complexidade do real, mas passar, na medida do possível, da confusão original a algo semelhante a uma complicatio.

Confusão é diferente de mistura. Misturados estão os ingredientes que temperam um prato e os pigmentos que integram as cores na paleta do pintor; misturados estão os corpos dos amantes e as palavras do poeta. No entanto, por mais que o resultado de cada uma dessas mesclas seja único, aquilo que foi misturado não se confunde. As palavras do poeta estão (ou estarão) dispersas nos dicionários; e o olhar treinado saberá distinguir os pigmentos, assim como o paladar experiente reconhecerá cada um dos temperos. Confuso, por outro lado, está o veneno que se misturou ao pão de forma tão íntima que já não conseguimos detectá-lo.[2] Assim, toda confusão é mistura, mas nem toda mistura é confusão.

O passar dos anos não me tornou menos determinado, porém tornou-me mais jovem, ou seja, menos inflexível. Não há festa sem um naco de confusão, e quanto mais dionisíaca for a festa, tanto mais confusão haverá. E isso não vale apenas para patuscadas, entrudos e carnavais. Os primeiros transes artísticos e religiosos tiveram origem em intoxicações e desregramentos dos sentidos, provavelmente antes mesmo que fôssemos plenamente humanos; pois até os animais se embriagam. Mesmo nas mais sóbrias aventuras do pensamento, mergulha-se no caos com o propósito de sair-se de lá com algo que valha a pena. Hoje posso, finalmente, voltar às palavras de Chacrinha sem tomá-las como uma confrontação à minha busca pelo entendimento; afinal, o “velho palhaço” realmente tinha todos os motivos para, referindo-se à condução circense de seu anárquico programa de auditório, apresentar-se como arauto da confusão.

Mas aquilo que tem lugar no circo e na televisão não é (ou não deveria ser) admissível em outros contextos, por exemplo, na política e na diplomacia. O presidente Lula, que comparou a guerra em Gaza ao monstruoso crime cometido pelos nazistas, sabe muito bem que guerra e genocídio são coisas totalmente diferentes. Tal como Chacrinha servia-se de uma confusão (deliberada) para aumentar sua audiência, Lula sempre soube usar, também deliberadamente, a confusão como estratégia política.[3] Neste episódio, porém, Lula superestimou sua capacidade de torcer os fatos a seu bel-prazer, e o tiro saiu pela culatra. A maioria dos brasileiros (entre eles muitos apoiantes do presidente) percebeu imediatamente a má-fé envolvida na comparação.

O conceito de confusão não possui aquele toque de sofisticação presente em conceitos como desinformação e fake news, mas ele é mais abrangente. A confusão deliberada como estratégia política pode ocorrer, como neste caso, entre conceitos (guerra, genocídio) e entre eventos históricos absolutamente diferentes entre si. Mas a confusão como estratégia política também pode afetar diretamente os corpos, como em Gaza, onde são intencionalmente confundidos os civis e os combatentes, as edificações comuns e as militares; e pode afetar instituições de grande porte, como a UNRWA, agência da ONU que confunde, numa só organização, funções de ajuda humanitária e de suporte ao Hamas, além de encarregar-se do ensino básico e da educação vocacional.

A recente polêmica em torno da UNRWA é crucial e deveria estar no coração do debate sobre a guerra em Gaza. Ecoando parte da imprensa mundial, um político espanhol chegou a afirmar que apenas 12 indivíduos, num universo aproximado de trinta mil, estavam sendo acusados por Israel.[4] Sabe-se, porém, que 12 era o número de funcionários da Agência acusados de participar diretamente do massacre de 7 de outubro; mas três mil é o número de professores da UNRWA que participavam de um grupo do Telegram no qual foram celebrados os atos genocidas do Hamas.[5] Em torno de mil e duzentos funcionários da UNRWA seriam membros do Hamas ou da Jihad Islâmica, e parentes de seis mil deles seriam filiados a essas organizações.[6] Por outro lado, trinta mil é o número de funcionários da UNRWA em todo o mundo, mas aqueles que trabalham na faixa de Gaza são aproximadamente doze (ou treze) mil. Desse modo, é fácil perceber que “12 em trinta mil” nada mais é do que uma proporção cuidadosamente forjada para confundir e ocultar os números que realmente importam: ao menos mil e duzentos semeadores de ódio num universo de doze ou treze mil trabalhadores.[7] Ainda mais importante do que todos esses números, no entanto, é aquilo que pode ser constatado a partir da análise do material didático utilizado nas salas de aula:

“Nossa extensa pesquisa em livros escolares da AP [Autoridade Palestina] mostrou de forma consistente uma inserção sistemática de violência, martírio, antissemitismo notório e jihad em todas as séries e disciplinas, com a proliferação de nacionalismo extremo e ideologias islâmicas em todo o currículo, incluindo livros didáticos de ciências e matemática”.[8]

É impossível ressaltar com ênfase suficiente a importância dessas revelações. Elas permitem compreender que o sistema educacional, em Gaza e alhures, é o grande responsável pela perpetuação do conflito na região. E talvez não exista confusão mais perversa do que essa, que mescla o necessário aprendizado das coisas com a propagação dessa vontade de nada que reserva para o objeto de seu ódio a morte mais cruel, dolorosa e aviltante, e para o próprio jihadista, bem como para seus familiares, o martírio. Somente quem denuncia esse crime, cometido sistematicamente contra crianças com o aval e o apoio da ONU, deseja de fato o fim das hostilidades e de todo o sofrimento que acarretam. A denúncia desse abuso infantil intolerável é a pedra de toque que permite distinguir entre os autênticos pacifistas e a legião de hipócritas que clamam pela paz apenas para disfarçar seu interesse político na perpetuação dos conflitos e da miséria naquela região.[9]

É bastante instrutivo que Philippe Lazzarini, diretor da UNRWA, invoque em sua defesa um argumento que muitos poderiam considerar um ato falho. Segundo suas próprias palavras, se a Agência for extinta (conforme preconizado por Israel), “sacrificaremos uma geração inteira de crianças, plantando as sementes do ódio, do ressentimento e de futuros conflitos”.[10] Seria difícil descrever o principal objetivo da UNRWA com maior precisão, e é difícil enxergar numa inversão tão perfeita da realidade uma simples obra do acaso.

Se a confusão é uma estratégia política deliberada, não chega a causar surpresa que as crianças sejam seus alvos prioritários. Não estou afirmando, todavia, que abusos desse tipo ocorrem apenas numa única região do planeta ou em uma única civilização. Posteriormente farei um esforço para caracterizar aquilo que define, em termos gerais, um sistema educacional abusivo. Identificar com precisão o veneno que tantas vezes é mesclado à educação formal é o primeiro passo para indicar um antídoto.

[1] https://www.lexilogos.com/latin/gaffiot.php?q=explico
[2] https://www.lexilogos.com/latin/gaffiot.php?q=confundo
[3] https://www.youtube.com/watch?v=xobn0qcW9wU
[4] https://www.aljazeera.com/news/2024/1/28/which-countries-have-cut-funding-to-unrwa-and-why/
[5] https://unwatch.org/the-case-against-unrwa/
[6] https://unwatch.org/evidence-of-unrwa-aid-to-hamas-on-and-after-october-7th/
[7] https://unwatch.org/unrwa-terrorgram/ Yoav Gallant, Ministro da Defesa de Israel, declarou em 2024.02.17 que, entre os funcionários da UNRWA, “1,468 workers are known to be active in Hamas and [the Palestinian Islamic Jihad], 185 UNRWA workers are active in the military branches of Hamas and 51 are active in the PIJ military branch.” https://www.timesofisrael.com/unrwa-chief-says-israel-waging-campaign-to-destroy-palestinian-aid-agency/
[8]https://www.impact-se.org/wp-content/uploads/UNRWA-Education-Textbooks-and-Terror-Nov-2023.pdf
[9] Lula afirma que Brasil fará doação para agência da ONU de refugiados palestinos denunciada por Israel. O Globo, 2024.02.15.
[10] Agência da ONU para a Palestina é alvo de ‘campanha deliberada e planejada’ por Israel, diz chefe de organização. O Globo, 2024.03.05.

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Francisco Traverso Fuchs é graduado em História pela UFF e mestre em Filosofia pela UFRJ.

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