As desgraças, quando não sentidas na própria pele, muito agradam aos homens, o que as torna em assunto fecundo para as mais variadas histórias. A história que aqui vos trago é a de Isabel, uma história com desgraças, como qualquer boa história, conseguida a expensas do muito que sofreu. É importante, porém, não esquecer que convém manter a desgraça a uma saudável distância do coração. Não se quer que o verdadeiro peso do sofrimento do mundo invada o nosso íntimo, que isso seria mais trágico do que qualquer tragédia, quer-se, antes, que o leitor sinta com a razão, com a mesma razão abstrata que está na origem das coisas do mundo. Com aquela razão, que não é a razão dos homens, que transforma a morte num bem necessário à vida e que faz
do sofrimento a mais eficiente das estratégias de sobrevivência. Que a morte e a dor, ainda que por demais penosas para os indivíduos, são um bem quando vistas através dos olhos do mundo e nós não somos mais do que matéria fugaz no grande carrossel da natureza. Se na vida, tal distanciamento não nos é possível, aproveitemos as histórias para treinar o nosso olhar sobre um ser que, na luta contra a morte e contra o sofrimento, acaba sempre por lhes sucumbir, cumprindo assim os desígnios mais altos da sua natureza.
Isabel morreu jovem,
Foi-se o corpo e o espírito, que os dois andam sempre juntos.
Muitos a choraram em vão,
Mas o choro secou rápido,
Que todos tinham outros afazeres e ela era órfã de pai e mãe.
Rapariga saudável, ou assim se pensava,
Que estava apenas no sítio errado na hora errada.
O despiste de um carro atirou-a contra a parede de um prédio
E o embate na nuca ditou-lhe o destino.
Faria vinte e dois anos no mês seguinte,
Conheceria o homem dos seus sonhos meio ano depois.
Daí a um ano casaria com o homem dos seus sonhos.
Dez anos depois, concluiria que afinal não era o homem dos seus sonhos.
Divorciar-se-ia com três filhos para criar e um salário mínimo para pagar as contas.
O homem, que afinal não era o homem dos seus sonhos,
Mudar-se-ia para sítio incerto, sem dizer palavra.
E de beleza esgotada, pobre e com filhos para criar,
Viveria cada dia como se contra a morte lutasse.
Duraria tempo suficiente para ver um filho morrer, outro meter-se na droga e outro ter
filhos.
Veria os seus netos ignorarem a avó e ater-se-ia às coscuvilhices das vizinhas para
passar o tempo.
Morreria sozinha e seria descoberta morta quando o cheiro invadisse os corredores do
prédio.
Dir-me-ão que deliro em imaginar que tais coisas aconteceriam a uma só pessoa!
Mas o mundo tem destas coisas,
Só quem ainda viveu pouco, e viver pouco não é apenas um questão de idade,
Não foi surpreendido pelo mau fado,
Que alguns nasceram de costas voltadas para a sorte
E os deuses não são piedosos.
O que surpreende é que mesmo se tal vida Isabel houvesse vivido,
Continuaria a agarrar-se a ela como se de um bem precioso se tratasse.
A isto escapou com a morte rápida que o condutor incauto lhe destinou.
Certamente não seria uma vida fácil,
Mas, para Isabel, fácil ou não, boa ou má, era vida e isso bastava.
Com desgraças ou sem elas, há que aceitar o que a vida é, porque se algo é, faz
parte dos desígnios do mundo e não vou eu ousar contra os poderes que nos regem, e
aquilo que não compreendo, aceito com a mesma bonomia que fez Deus aceitar a
existência do mal. O que cada um há de ser, cabe à fortuna decidir, especialmente no
que toca a fatalidades e amores. E assim o mundo corre, com cada um a acreditar
naquilo que melhor lhe sustenta a vida e a fazer aquilo que pode com o que o destino lhe dá.
Mas como o destino nem sempre é pródigo, e isso muito peso tem nas contas da vida, já dizia a minha tia, mulher do povo que não sabe o que é a metafísica:
Quem não rouba nem herda, pode ir à merda.
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M. H. Restivo nasceu em 1984 e vive no Porto. Licenciada em filosofia e em música, dedica-se ao ensino e a projetos de índole artística.
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