VINHO FINO PARA OS REIS MAGOS – por Manuel Igreja Cardoso

Conto de Natal

VINHO FINO PARA OS REIS MAGOS

Acabada a escola primária, com passagem no exame da quarta classe com distinção, havia que sair da aldeia para continuação dos estudos. Não era para todos, aliás era a exceção, mas uns tios residentes no Porto abriram-lhe as portas e acolheram-no como a um filho. Evitou assim a ida para o seminário, ou o continuar nos árduos trabalhos da lavoura.

Partiu, pois, em plenos verdes anos para a cidade grande. Foi como uma cortina se tivesse rasgado. Num repente, viu-se num mundo novo. Viajou no tempo, mas não se amedrontou. Amargurou de saudades, chorou por entre os lençóis pelo pedaço da alma que ficou na aldeia, mas foi deixando que o seu ser se fosse vestindo com o manto que a cidade lhe estendia.

Ansiava a cada dia pelas férias. Chegadas elas, corria a todo o correr para apanhar o comboio de regresso ao lar materno. Mal entrava na carruagem era como se já estivesse em casa. O diabo era quando as obrigações impunham o regresso. Dois dias antes, nascia-se-lhe uma amargura que escondia. Só lhe apetecia emperrar os ponteiros dos relógios para suster o avanço do tempo como sucedia nas hortas com a poças de água. Se pudesse, fazia um lago muito grande com o tempo e depois desprendia-o a seu querer por uma toneira. 

No dia certo regressava. Com muito custo, conseguia descolar os pés do chão para seguir, mas continuava no caminho da sua nova vida. Valiam-lhe as recordações do que deixava e que eram como que um amparo para enfrentar o que encontrava feito pássaro saído do ninho. O comboio a seus olhos sempre lindo, podia contar com ele.

Com os primeiros apitos da locomotiva, ganhava ânimo. Olhava pela janela e via o rio Douro. Ajudava bastante o que via. Tinha momentos em que nem sabia se era ele que ia dentro do comboio, ou se era o comboio que ia dentro dele. Não importava. Era como se tudo aquilo fosse ele, e ele fosse tudo aquilo. Sentia-se inteiro e pronto para todos os desafios.

Em todas as viagens de regresso, sentia sentado a seu lado o seu avô Gaspar a contar-lhe histórias de muito antigamente como só ele sabia contar e a desfiar as suas memórias de homem que muito andou e muito passou rio abaixo rio acima no tempo em que o rio era bravio e de mau navegar.

O avô tinha sido Arrais nos barcos rabelos. Era de uma família de marinheiros do rio. Em Barqueiros ele e os seus irmãos aplainavam e moldavam madeira para que fosse corpo dos barcos. Depois, era vê-los graciosos a navegar acartando pipas de vinho e trazendo mercadorias para todos os precisos da região e arredores.

Nos serões em casa, deleitava-se a ouvir o seu avô narrar as viagens quase sempre tumultuosas e duras. Seguindo o rio que na primavera ainda era um cavalo sem freio, os barcos rabelos era verdadeiras cascas de noz que podiam ser quebradas em cada curva do rio.

Acontecia de vez em quando, mas a mestria dos Arraias e a força e valentia dos seus companheiros de jornada e de aflições, venciam a tormenta não temendo o Adamastor a quem respondiam que iam a mando dos homens e das mulheres do Douro, terra de muito querer no erguer de uma obra sem medida.  

No regresso, sem a corrente de maré, valia a vontade. Quando o vento se recusava a inchar a vela da nau, se calhar a mando do mafarrico para os aperrear, não desistiam, contava o avô. Saltavam para a margem e a força de braços ou com ajuda de bois puxavam o carrego para que ele chegasse a bom porto.

Nada os vencia. Nem o medo. Era homens de fé e de vontade. Ainda se lembrava de o avô dizer que o rio era feito de muitos pontos perigosos com a água a fazer remoinhos parecendo que era em cada qual a entrada do inferno. Eram, ainda se lembrava e aqui ficam, os pontos do Saltinho, do Cachão da Valeira, da Caxuxa, do Cadão, da Bula e do Clérigo.

O rio depois de engordar com o inverno e apertado pelas margens que nem cinto estendido ao correr da barriga larga até ao mar, ficava furioso. Zangado por se sentir apertado. Sujava-se com terra para mostrar a sua fúria. Espumava. Não era por mal, mas era de sua natureza.

Dizia o avô que lhe fazia lembrar O Bernardo da Aida, que era um homem do seu tempo de mais novo e que era que uma seda enquanto não estava com o grão na asa, mas que depois de meio litro de vinho no papo, virava um verdadeiro fanfarão a quem só dava para virar tudo do avesso. Mais parecia que como o rio, o líquido lhe não cabia no corpanzil. Era até capaz de bater em si próprio quando não havia em mais a quem fazer alombar com o varapau que sempre o acompanhava.

Na memória de quem isto me contou, ficou marcante um acontecimento narrado pelo avô marinheiro do rio. Um dos últimos. Contou que numa das suas viagens, a mais perigosa de todas, com todos a encomendar a alma ao criador para que Ele as acolhesse no seu jardim sem fim, em frente à imagem da Sr.ª da Boa Viagem esculpida na parede no lado de lá de Barqueiros, o Avô rezou com mais profundeza que nunca, porque queria conhecer o neto prestes a nascer.

Barcos Rabelos

Prometeu à santa que se não morresse ali, todos os anos no Natal, depois da missa do galo, entraria de novo na igreja da freguesia sem que ninguém visse com três garrafas de vinho fino no bolso, do melhor que tinha. Faria questão de as deixar para que a Sagrada Família as oferecesse aos Reis Magnos quando eles viessem de visita com as suas prendas.

Ficaria bem em seu entender. Seria uma retribuição e um agradecimento por parte do recém-nascido e de seus santos e excelsos progenitores.

Não sei. O certo, é que o avô conheceu o neto e conviveu com ele por muitos e bons anos ao ponto de lhe deixar memórias como estas. Ao que parece, a coisa repetiu-se, pois na adega notou-se bem o pipo a mingar.

Pode ter acontecido até que a páginas tantas serem mais de três os visitantes daquele presépio. Digo eu. No entanto, corre na terra o dito que no dia de Reis se veem no céu algumas estrelas a moverem-se e a brilharem mais que as outras e que no adro se sentem uns estranhos sons.    

Vá lá saber-se o porquê. Mas Natal é sempre Natal e um cálice de néctar dos deuses a acompanhar as rabanadas sabe sempre bem.   

 

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Manuel Igreja Cardoso, nasceu em 1960 no concelho de Armamar e reside na cidade do Peso da Régua no Alto Douro Vinhateiro.  Licenciado em História, a par da sua atividade profissional da EDP – Energia de Portugal, desenvolveu nos últimos 25 anos uma profícua atividade na escrita de contos, artigos de opinião e de crónicas que tem vindo a publicar em diversos jornais regionais. Tem publicado um livro de contos, um com a história da Associação Humanitária dos Bombeiros do Peso da Régua, e outro com história da ACIR – Associação Comercial.

        

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